Presença de Yukito



 

Por Astasia

Capítulo 2

 

É tão bizarro. Sinto que não sou mais dono das rédeas da minha vida.

Ele pede que o chame apenas de Frost, e diz que não gosta de seu nome. Descubro que seus cabelos não são tão cinzentos quanto me pareceram sob as árvores, e sim, são castanhos, muito claros, e têm as pontas ligeiramente encaracoladas. Eu mando que ele tome um banho antes de dormir. Ele vai se vestir com uma das minhas camisas, o que para ele será como um grande camisolão de dormir. Encontrei um cigarro esquecido dentro da gaveta do meu criado-mudo, no quarto, logo depois de mostrar a Frost onde era o banheiro.

Nunca um cigarro foi tão bem vindo quanto agora, depois de uma noite tão confusa. Talvez eu deva agradecer a Eriol Hiragizawa por ter conseguido faze-la mais divertida. Preciso de um café bem forte. Pura sorte amanhã ser sábado, não vou ser necessário na coordenação da pesquisa. Queria poder dormir até tarde pelo menos amanhã, mas eu sei que tudo o que me aguarda é um sofá esta noite. O chuveiro cessa seu ruído após um tempo, e alguns minutos depois, Frost, seus cabelos pingando, seu rosto constrangido e temeroso, seu corpo e seus contornos que surgem com a luz da lâmpada que está acesa dentro do banheiro, surgem diante de mim. É como se ele não vestisse nada, vejo seu corpo quase por inteiro através do tecido de algodão branco da camisa. Ele foi corajoso. Desde a hora em que telefonei para o hotel, ele não disse mais nada e me obedeceu. Medo? Ele poderia ter gritado, poderiam ter escutado seus gritos até no quarto da Rainha. Confiança? Ele evita meu olhar e tenta não se aproximar de mim.

Devo ser um monstro para ele: meus olhos e meus cabelos são escuros como não o são os daqui, e a cor da minha pele e meu humor habitual não ajudam muito. Com certeza, se alguém lhe contou histórias do Bicho Papão, ele devia ter uma descrição parecida com a minha.

"Você vai dormir alí."

Faz que sim com a cabeça. Levanto-me do sofá e faço com que ele vá para a cama, e quando ele se senta nela, seus pés deixam de esbarrar o chão. Frost... Você não sabe como é bonito. Ele ergue o rosto e segura a minha mão. Preciso morder a língua com toda a força para não lhe dar o beijo de boa noite que essa boca merece.
 
 
 
 
 
 

Estou quase conseguindo cair no sono quando uma mãozinha fria segura a minha. A revista que estava no meu colo cai pelo chão e o cinzeiro quase a acompanha.

"O que foi?"

"Me desculpe... eu tenho medo de..."

"... de escuro?"

Sakura era quase paranóica com esse tipo de coisa, e eu nunca tive muita paciência com ela, mas tenho com Frost, que está ajoelhado ao lado do sofá, esperando alguma reação da minha parte.

"Eu estou lhe causando problemas...!"

"Não." – Ele não parece estar tão mais temeroso em relação a mim. É normal que não queira ficar no escuro, vai ter pesadelos, não há ninguém que ele conheça aqui. – "Você teve pesadelos?"

"Sim."

Suspiro, sem saída. Volto com ele para o quarto e ele se deita para dormir de novo, fico sentado ao seu lado, e digo que só vou sair quando ele adormecer. Ele sorri de um modo doce e confiante. Realmente, não muito tempo depois ele adormece, e sua mão cerrada segura com vontade a manga da minha camisa. Estou preso. Não posso sair, e também não posso continuar aqui. Mas antes que eu imagine em como sair desta situação, eu adormeço também.

E eu também tenho meus pesadelos, é um sonho inquieto, em que não é mais a luz e, sim, minhas mãos que devassam o corpo adolescente que se oculta sob a camisa larga e comprida. Neste sonho, seu beijo me pertence não uma, mas várias, todas as vezes, e nele, Frost diz coisas que ele jamais poderia, numa língua que certamente ele jamais escutou.
 
 
 
 

Como se toda a minha vida nesses anos desde que Yukito morreu é que fossem os pesadelos, eu acordo achando que estou no meu quarto de adolescente, e tenho medo de rolar muito na cama e cair dela. Tenho medo também do despertador tocar e me dizer com seus ponteiros, que é hora de ir para a escola. Continuo de olhos fechados, respirando fundo, juntando forças para levantar. Uma coisa quente está perto de mim, sobre mim. Ainda não sei o que está acontecendo, mas se for um sonho, que eu não acorde agora. Já sei que dia é hoje. É o dia seguinte à noite em que dormi com Yukito pela primeira vez. É ele quem está ao meu lado, dizendo meu nome. Seu rosto se volta para mim, sem os óculos, ele fica tão diferente, o castanho dos seus olhos é tão bonito... Abro os meus para não perder isso por nada neste mundo.

Mas... São os olhos muito azuis e claros de Yue que estão voltados para mim. Penetrantes, as pupilas finas, verticais como as de uma pálida e sedutora serpente, ou de um esguio felino que se permite uma total languidez junto ao meu corpo. Yue está tão diferente, seus cabelos, não se esparramam ao redor de nós, mas não se parece, ele não tem a doçura de Yukito, somente o apelo terrível e apaixonado de Yue. Está tudo tão escuro ainda... Como posso despertar ao seu lado, se não é você quem eu amo? Eu amo a sua mentira, a sua casca... Yue tem mãos frias e muito macias, que somem e voltam a surgir entre os lençóis, e seus dedos se perdem em mim, eu me perco nele, por inteiro. Sei que meu peso o sufoca, não sei nem como chamá-lo, aqui, agora, não é Yukito, ou é? Seus olhos são os de Yue, esta expressão de prazer quando eu o beijo é de Yukito. E seu corpo, é o corpo de um anjo, perfumado como um jasmim que desabrochou na madrugada. Desabrochou nos meus braços.

Deixe que eu o cubra com o orvalho...

Ele arqueja meu nome, diz que me ama numa língua que eu gostaria de esquecer junto com todos meus pesadelos de dor e morte. Suas pernas confundindo-se com as minhas, seu desejo se confundindo com o meu. Abra seus olhos, minha lua... de gelo.

Seus lábios se abrem para que sua língua atrevida receba a minha. Não sei dizer que o amo, somente que o desejo... Suas unhas afiadas correm em mim, por meu peito e por minhas costas, costelas... Suas mãos envolvem meu pescoço, mas não apertam como secretamente eu sei que é o seu desejo. Ele afasta os joelhos, e morde meus lábios com força entre este beijo maldito. Mordo os seus também, e rasgo o que o veste, arranco os botões, as costuras cedem, e ele também, seus olhos muito abertos, perdidos, rasos de lágrimas inumanas, cheios de dor e paixão.

Ele não corresponde mais ao meu beijo, suas mãos perdem a força com que me prendiam a si, e todo seu corpo treme. Suas lágrimas...

"Não...!" – É o barulhinho de uma criança chorando, baixinho, debaixo de mim. Ele respira muito apressadamente e oscilante. Devo estar enlouquecendo.

Fico longos segundos olhando fixamente no rosto de Frost. Ele está debaixo de mim, a camisa que o vestia está rasgada. Eu deveria estar sonhando, e quase o violentei. Seus lábios estão machucados, os meus estão doloridos, ele deve ter me mordido para tentar me fazer parar. Estou todo arranhado, e ele... Não quero nem pensar no que lhe fiz. Espero que tenha sido apenas isso, mas o meu "apenas" poderia ter lhe feito um mal irreparável. Eu me afasto devagar, procurando ver até onde meus sonhos me levaram. Ele se encolhe em si mesmo, chorando, no outro lado da cama, e eu tento me recompor. Não acredito que isto esteja acontecendo comigo.

Ele fecha a camisa sem botões, escondendo seu corpo, e eu me sento na beirada da cama, a cabeça entre as mãos, tentando justificar para mim mesmo o que eu fiz e o que eu estive a ponto de fazer. Como lhe pedir perdão? Frost está tentando conter os soluços, é só um garoto, ele tem treze anos, eu devo ter sido o primeiro a beija-lo, e logo em seguida, praticamente eu tento...

"Eu o machuquei?" – Digo de uma vez, sei que meu tom é ríspido, mas agora tudo o que eu penso é tentar acalma-lo, para que ele não tenha mau juízo de mim. Começa a me parecer muito importante o que ele pensa a meu respeito.

Ele funga, demora muito a responder e eu repito a pergunta. Sinto que ele está se mexendo sobre a cama. Sei que ele está ajoelhado bem detrás de mim, seu peso faz o colchão ceder. O que ele vai fazer? Não me importo, eu só quero que... Ele fique aqui.

"Não." – Me responde uma embargada voz de adolescente. Ele encosta-se a mim, repousa seu peso sobre minhas costas e a cabeça sobre meu ombro. Não tenho mais nada para lhe dizer, todas as palavras que eu poderia ter dito para me desculpar morrem em meus lábios. Estou surpreso com isso, e muito envergonhado do que fiz, mesmo sem querer. – "Eu tenho medo de você."

Engulo em seco. Não posso mais fugir. Em que bela enrascada eu me meti, quando parei naquela praça.

"Me chame de Toya."

"Toya." – Ele repete meu nome sem dificuldade, mesmo sendo tão diferente dos nomes ingleses. Não sei quem é Frost, de onde ele é, nem o que é para Eriol, e nem quero imaginar o que será para mim a partir deste momento, mas se ele me odiar, eu o entenderei. – "To-ya." – Ele repete mais uma vez, lentamente, e um arrepio de reconhecimento corre por minha espinha.

"Não me chame deste jeito."

"Por que?"

"Não importa. Não me chame mais assim."

A umidade de suas lágrimas atravessa o tecido de minha camisa. Ele ainda tem medo. Mas ele sabe que não vou machuca-lo, se bem que nem mesmo eu ainda tenho certeza disso, levando em conta o que estava fazendo quando acordei. Ainda é madrugada, esta noite está se mostrando interminável.

"Você me assusta, Toya." – Frost se estreita mais em mim, respirando fundo e ruidosamente. Para evitar uma vergonha maior para nós dois, eu não acendo a luz do abajur.

"De onde eu venho..." – Começo a falar, como a tentar faze-lo me esquecer, dormir de novo. Há muito tempo que eu não tenho com quem falar, amantes de uma noite só geralmente não estão interessados em conversar. – "... O seu nome poderia ser ‘gelo’."

" ‘Gelo’?" – Ele se assusta, com a estranheza da palavra. Eu poderia rir se fosse uma situação normal. – " E se meu nome fosse neve? Neve é gelo, não é?"

"Sim, é verdade. Gelo caindo do céu."

"Então como seria meu nome?"

"Seria Yuki."

Meu corpo inteiro enrijece de tensão, quando digo esta palavra. Como isso pode estar acontecendo? Yukito me chamava de To-ya, quando estávamos sozinhos, e eu... Eu o chamava de Yuki. Apenas isso. Neve. Gelo que cai do céu.

Estou perdido. Não posso continuar aqui, creio que nunca mais poderei erguer minha cabeça depois disso, como eu não notei a semelhança? O sorriso e a expressão de abandono de Frost, quando o vi perdido na praça. Eram iguais às expressões de Yukito. E seus olhos, tão azuis... São da mesma cor que os olhos de Yue. Sua palidez, seu cheiro. É como estar sendo abraçado por um Yukito muito mais jovem do que o que eu conheci e por quem me apaixonei. Eu me sinto atraído por este menino por que ele traz em si uma semelhança mórbida com uma parte do meu passado. Se eu ceder ao meu desejo, eu lhe estarei fazendo uma coisa abominável.

Levanto-me da cama. Não posso nem continuar no mesmo lugar que ele, quanto mais sentir sua pele tocando a minha. Meu desejo é indecente e ridículo para alguém como eu. Eu estou me deixando levar.

"Frost, alguém já fêz amor com você?"

Ele não gagueja, não hesita, e nem foge da pergunta. Responde uma negativa direta e muito baixa. Eu pergunto mais, pergunto se há alguém que ele ame. Ele suspira e demora a responder. Não consigo olhar para ele, e também não consigo me afastar o bastante para deixar de sentir sua presença perturbadora.

"Sim." – Ele responde com a mesma segurança e limpidez com que me disse que era virgem.

"Então..." – Eu respiro fundo e penso bem no que vou dizer. Que maravilha, um cego guiando outro. Quem sou eu para dizer certas coisas? – "... Então guarde-se para esta pessoa. Aconteça o que acontecer..."

"E você?"

"Eu?"

"Há alguém que você ame?"

Fico estático. Os rostos de Yukito e de Yue se confundem ante meus olhos fechados. Yukito, como eu pude amar uma pessoa que nem sequer existia, era apenas uma casca? Yue, como eu pude desejar uma criatura que nem era humana? Onde começava meu amor e até onde ia meu desejo? Será que talvez quem eu amasse fosse o demônio que estava debaixo da pele de Yuki?...

"Eu não sei."
 
 
 
 
 
 

Ligo repetidas vezes para o hotel onde Eriol estivera hospedado, tentando conseguir um endereço, um telefone, um nome de cidade para tentar encontra-lo. Se todos confirmam que ele é um hóspede freqüente, por que raios ninguém tem um cadastro para a confirmação das reservas? Simples, é como se ele sempre soubesse quando há vagas ou não. Típico dele.

Eu poderia estar muito mais desesperado. Mas não consigo. Não quero me desesperar. A campainha toca. É o almoço. Yakisoba. Não é como o que eu mesmo sei fazer, mas com certeza é mais rápido. Pago a encomenda e calo as perguntas do entregador, que já me conhece de tantas as vezes que faço esta encomenda, só que geralmente somente um prato, com uma pesada gorjeta. Sim, boa tarde, vá pro inferno e não me amole.

Sirvo a mesa. Acho que nunca ninguém fêz as refeições comigo desde quando estou vivendo aqui. Não sei que fim levaram meus talheres, tenho poucos, e como raramente como em casa, não sei onde estão. Mas há hashis. Menos mau. Isso traz lembranças de casa. Hmpf, vejam só: o restaurante mandou sakê, além do yakisoba. Nunca experimentei o sakê que é feito aqui na Inglaterra. Deve ser horrível.

"Frost!" – Chamo baixo. Eu sei que do quarto, ele está atento a tudo que está acontecendo, sentado no chão, vestido em sua bermuda preta e desta vez em uma camiseta quase tão azul quanto seus olhos. Quando passo na porta, eu o vejo me seguindo com os olhos. – "Está com fome?"

Ele se levanta da cama e vem prontamente.

Quando chega junto à mesa, é como se seus sapatos houvessem sido pregados no chão.

"O que é isso?" – Ele aponta para os hashis que estão ao lado de um dos pratos.

Eu respondo. Ele me sorri e diz que não sabe como se usa. Eu poderia beliscar suas bochechas. Não, ele não sabe como é bonito...

Faço um sinal para ele se sentar e mostro como se seguram as hastes. Mas ele não olha para minha mão. Olha para mim. Quando nossos olhos se encontram, ele baixa os dele e cora. Ele está fazendo o quê? Me seduzindo, com estes modos tão inocentes e tímidos? Acho que sim, sinto uma coisa estranha quando ele faz isso.

Frost se levanta e dá a volta na mesa.

O telefone está tocando. Frost está alheio a tudo, ele somente se senta no meu colo, atravessado, vindo investigar de perto o mistério dos meus dedos segurando a haste. Tenta imitar. Olho por cima de seu ombro, e vejo que ele tem sucesso. O telefone já não parece importante. Seu pescoço é longo e toda sua pele é muito lisa, leitosa. Ele balança os pés, enquanto está no meu colo. Volta-se para mim com um sorriso largo, de hálito que eu reconheço de pronto, dos quase acidentais beijos que lhe dei desde ontem. É como se o conhecesse há muito tempo. O medo e a distância que havia entre nós diminui até quase desaparecer, agora. Ele me mostra sem palavras a sua mão, segurando sem problemas, um pequeno camarão. O telefone pode até explodir, a estas alturas, não estou mais nem aí. Somente sua presença importa, seu sorriso, seu rosto perto do meu.

Ele então traz o camarão até meus lábios. Eu mordo, e seu sorriso se ilumina mais. Apimentado, quente, delicioso. O sakê acalma o ardume que passa sobre os pequenos machucados que os dentes de Frost fizeram em meus lábios. Os dele estão mais avermelhados do que antes. Ainda estão machucados, posso ver as marcas, rosadas, em seu queixo, ao redor da sua boca. Quando ele nota que meu olhar se fixa alí, seu sorriso desaparece lentamente, até restar somente o fim dele, e eu, mirando o centro deles. O telefone está quase indo pelos ares. Ele fica como se mais pesado em meu colo e toca o meu rosto. Segura-o entre suas mãos e passa um dedo por meu queixo, curioso, e também mexe no meu cabelo, que escorrega, de tão liso, entre seus dedos. De repente, ele vem para cima de mim e me beija até quase me derrubar da cadeira, desajeitadamente, como se nunca houvesse feito por conta própria nada igual. Eu tento segura-lo, porque agora eu sei que não é um desejo apenas meu – Eu ainda devo ter a maior parcela de culpa nisso, mas é impossível não me sentir assim, tão desarmado, ao ver um rosto tão parecido com o de...

"Yuki..."

... Frost se contorce, num riso travesso em meu colo e escapa de volta, correndo, para o quarto, como se estivesse triunfando. Vejam só o monstrinho que eu ajudei a criar, de ontem para hoje...

"A-alô?" – Eu gaguejo no telefone, tentando não sorrir, ainda que ninguém fosse ver este gesto.

"Senhor Kinomoto? Conseguimos localizar Eriol Hiragizawa. Gostaria de anotar o número?"

O recepcionista do hotel nem precisa falar duas vezes. Em um instante eu estou discando para fora da cidade, não importa qual. Demora. Conto cinco toques e ninguém atende. Começo a pensar em desligar. Não seria de todo mau ficar com Frost aqui, meu pensamento me assusta, eu me flagro pensando em como foi bom ter seu corpo de anjo sob o meu. A primeira coisa que escuto quando atendem é uma voz estranha e conhecida ao mesmo tempo. Não é possível, mas como me surpreender se eu já sabia? Mizuki é quem atende. Peço na mesma língua em que um dia escutei ela dizer que não me queria mais, quando eu tinha a idade de Frost, que quero falar com Eriol. Ela engasga e pergunta quem é. Eu respondo. Ela silencia por um momento, mas escuto-a chamar por ele. Ouço a ambígua voz de Nakuru, também.

"Eriol. Espero que venha buscar o seu aluno imediatamente. Vou deixa-lo no mesmo hotel em que você estava. Não tente fugir de mim. Isso não teve graça nenhuma." – Sou muito direto e tranqüilo ao dize-lo, embora eu fique muito desconfortável em imaginar-me agora longe de Frost.

"Toya? Um momento! Não faça isso! Eu posso exp..."

"Não diga mais nada. Você não tinha o direito de fazer isso nem comigo e nem com essa criança. Adeus, Eriol. Espero sinceramente nunca mais voltar a vê-lo, e nem ter notícias suas." –Minhas palavras não são ditas com raiva. São muito mais calmas do que imaginei que pudessem ser.

"Por favor, Toya, não faça isso!! Não faça isso!!!!"

Desligo o telefone na sua cara.

Não sei o motivo de sua preocupação, já tenho muito com que me perturbar. Não sei em que tipo de perversão daquele mago que Frost se enquadra, mas imagina-lo a sua mercê me faz pestanejar. Não me sinto feliz em devolvê-lo a seu mestre. Não me agrada imaginá-lo ao lado de qualquer outra pessoa, nos braços de outro alguém.
 
 
 
 
 
 
 
 

Frost volta a se esconder dentro daquele casaco muito maior do que ele. Segura a maleta com as duas mãos e espera que eu o mande me acompanhar. Não sinto alívio, somente pesar. Queria poder fazer alguma coisa, ele não parece feliz em voltar a ver sua "família", como havia dito. Tenho muitas perguntas a fazer e pouco tempo para obter as respostas. É só um garoto cujo rosto me impressiona, não saberia responder a maioria delas.

"O que você já aprendeu com o seu professor?" – Pergunto enquanto calço os sapatos. Não tenho um bom pressentimento em me afastar de Frost.

"Quem?"

"Eriol... Ele lhe ensinou alguma coisa?" – Tirar coelhos da cartola, por exemplo, eu me contenho em dizer.

"Muito pouco. Mizuki me ensinou mais. Ela é minha professora também."

Eu acredito mesmo que ela tenha ensinado... Eu tinha a idade de Frost quando me envolvi com ela. Não foi uma boa experiência. Foi pior ainda quando ela disse que eu só servia para esquentar a sua cama...

"Você vai à escola?" – Calço o outro sapato, propositalmente demorando a fazer o laço dos cadarços.

"Não, Mizuki me ensina em casa. Eriol também."

"O resto, eles também ensinam?" – Espero que ele saiba do que estou falando.

"Não entendo..." – Não, não sabe mesmo. – "Eles dizem que eu nada tenho a aprender com eles. Eles só... cuidam de mim."

"E seus pais?" – Imagino que ele esteja mentindo, é impossível não saber, dividindo o mesmo teto com uma criatura como a pantera Spinel Sun, e um ciumento guardião como Nakuru, não importando a forma que vista. – "Onde eles estão?..."

"Eles... estão viajando." – Ele está olhando para mim quando eu levanto. Por que está tão tenso?

"Frost, para onde?"

"Eu não sei."

Ele está tão estranho que não parece mais o menino de antes, parece uma fera acuada. Isso mesmo. Ele se dá conta do que está fazendo? Eu estou na frente de um menino ou de uma fera? Está apertando a alça da maleta com muita força. Ele é mesmo humano ou mais uma criação daquele feiticeiro?...

"Como eles se chamam?"

"Eu não sei."

"Há quanto tempo está com Eriol? Quantos anos?"

"Poucos. Não me lembro onde eu estive... antes." – Ele baixa a cabeça, seu cabelo encobrindo seus olhos, tenta sair de perto de mim, sair porta afora, porém, não preciso de muita força para toma-lo pela cintura e jogá-lo com vontade, ele esperneando e pedindo para ser deixado em paz, sobre o sofá e as almofadas, que amortecem sua queda. Tenho de segura-lo com força, ele tenta se safar de mim, lutar, e tem mais força do que parece.

"Fique quieto!!" – Ele obedece, fica parado no mesmo lugar, os pulsos elevados no ar. Paro de aperta-los e quando sinto que ele não vai fazer mais nada, o largo.

Tiro de uma vez por todas a dúvida que está me inquietando desde quando o vi pela primeira vez.

Ele balança a cabeça numa negativa vigorosa, tentando se livrar de mim de novo, mas não luta mais. Seguro seu rosto com força a ponto que quase machuca-lo. Estou furioso e quero saber ao lado do quê eu dormi, com quem dividi meu teto, preciso saber quem é Frost. Mando sem delicadeza nenhuma que ele olhe para mim. Ele aperta-os mais. Grito com ele. Não deveria fazer isso. Ele abre os olhos muito azuis, sem mecha alguma de cabelo sobre eles para não me permitir vê-los por completo. Vejo o mesmo, exatamente o mesmo que vi, muitos anos antes, quando Frost não deveria nem ser nascido.

"Não tenha medo."

Frost não é humano da mesma forma que Nakuru e Yukito jamais foram, além da aparência. Por que justamente eu deveria descobrir isso? O que esse tal Destino está tentando fazer comigo? Lembro da espada de Li, que está sozinha, na última prateleira do meu armário. Será o momento de usa-la? Era isso que eu deveria fazer, este é o momento certo? Meu destino é mata-lo? Não. Não quero mata-lo. Talvez ele não saiba o que está acontecendo, ou pode ser que seja tudo uma grande mentira... Ele parece saber por que eu fiz isso. Está envergonhado. Não, eu não vou faze-lo chorar. Digo que ele não chore, mesmo seus olhos estando rasos, e volta a me empurrar, esmurrar meu peito, diz que me odeia. São palavras infantis, ditas com uma voz de adolescente, eu não deveria me sentir por isso, mas são palavras que cortam meu coração. Ele continua, furioso, lindíssimo, acabo sentado ao seu lado, agüentando toda sua revolta. Ele me manda que não o toque mais, diz que eu sou um louco, diz que me odeia, e quando está exausto, minutos depois, ele silencia, soluçando, lamentando não ter um passado para me contar, lamentando não saber se afastar de mim. Repousa sua cabeça quase loura no meu ombro, e eu não consigo abraçá-lo. Não o desprezo por qualquer coisa que ele seja, somente não consigo dizer o que sinto, e eu silencio. Ele aperta o tecido da minha camisa em suas mãos, me puxando, e acaba montado no meu colo, encolhido. Diz que não tem mais medo de mim e repete que me odeia. Aí, Frost quase faz com que eu me derreta inteiro, pedindo que eu o beije novamente.

Como negar?

Em breve eu nunca mais o verei. Como negar este beijo? Eu o beijo com a doçura com que as crianças devem ser beijadas, e com o calor que nunca dispensei em beijos sequer a meus amantes, fossem humanos ou não.
 
 
 
 

No táxi para o hotel, eu continuo tendo um mau pressentimento. Um vidro nos separa do olhar do motorista, e uma rua vazia pelo mau tempo garante que continuemos anônimos neste curto passeio. Ele continua triste, apesar de sorrir e ser educado. Talvez me odeie mesmo. Está encostado em mim, com frio ou por qualquer outra razão que não quero pensar. Não deveria ter feito aquilo. Ver que seus olhos não eram olhos humanos. Na verdade eu não deveria ter feito muitas coisas...

"Você não pensa mais em mim."

Não respondo. Claro que vou pensar, Frost, não duvide, você foi um grande presente de aniversário, pena que tem idade quase de ser meu filho. Pena que você seja muito mais do que aparenta e eu não consiga saber ao certo o que você é. Nunca vou me esquecer de você, meu anjo de gelo.

No mais amanhã Eriol deve levá-lo embora daqui. Imaginar que tenho até a noite para estar a sós com ele num quarto de hotel me excita a contragosto. Afago seus cachos sedosos e brilhantes. Como eu não notei seus olhos, além de sua semelhança com Yuki?... Quando me ocorre mais um pensamento terrível e que pode fazer toda a diferença do que está acontecendo, o carro pára.

Chegamos. O que descubro não me dá uma sensação melhor do que pode acontecer.

Paro na calçada, vendo o táxi se afastar, segurando a maleta de Frost, ele ao meu lado, abraçado em mim. Como muitas coisas, mais isto, que não deveria acontecer. Como eu posso ter...

"To-ya!" - Ele me chama, e eu permito que me chame assim, inexplicavelmente.

Ele me puxa para dentro do hotel, e me deixo levar de bom grado e pela mão pelo menino de olhos azuis. Ele está se tornando tanto para mim em tão pouco tempo, não sei se estou apaixonado. Se estiver, é o maior erro de toda a minha vida. Ele sorri para mim quando finge me arrastar, é um riso travesso, doce como ele todo. Quando entramos na escura e secular atmosfera do hotel, ele continua a segurar minha mão e a sorrir, e o faz até que não estejamos mais sozinhos na recepção, e antes disso, seu sorriso deixa de ser o de uma criança, e passa a ser simplesmente sensual, natural, mas carregado de uma intenção que não cabe ao rosto de Frost. O gerente vem falar pessoalmente comigo e diz que eu sou esperado. Esperado? Por quem? Ele não sabe. Mas um bilhete dizia-lhe isto. Mostra-me um papel branco, dentro de um envelope sem assinatura, recomendando o mesmo quarto onde o Sr. Hiragizawa estivera. Estranho.

Isso me deixa inquieto. Creio que igualmente afete Frost, ele parece hesitar quando o elevador chega.

"Não quero ir, To-ya."

"Cale a boca. Eriol vem buscar você. Não tenho tempo para cuidar de crianças."

"Também não quero ficar com ele." - O elevador estremece e faço um verdadeiro esforço de não demonstrar que sinto que há olhos espreitando da escuridão dos cantos mais diversos deste lugar. - " Quero ficar com você. "

"Não sei cuidar de crianças, já disse."

"Faça como estava fazendo antes. Cuide de mim..." - Frost sorri, repetindo não sei se de propósito aquele modo provocante de me olhar. Se há um culpado para isso, este sou eu. Eu lhe ensinei sobre paixão quando o beijei pela primeira vez, sobre desejo quando estive a ponto de estuprá-lo e sobre amor...Quando mesmo sabendo que ele não é como eu, eu o beijei. Estou perdido. Apaixonado. - "... Cuide como você cuidou esta noite."

"Se você ficar comigo, eu vou machucá-lo demais, Frost." - Mentira. Eu jamais faria isso, mas não posso estar mais um instante perto dele sem temer por acabar descobrindo que não o amo, e sim amo a semelhança entre ele e Yue, Yukito, não sei. Já questiono se algum dia eu os amei, ou os confundi em minha cabeça. - "Você é um anjo. Volte para o céu de onde saiu. Volte para Eriol."

"Não me mande embora." - As sombras através das grades espiraladas do elevador fazem reflexos estranhos sobre nós, mas principalmente sobre o rosto dele, somente seus olhos brilham, angustiantes. - "Eu venci a morte para estar com você."

Minha surpresa em ouvir palavras tão estranhas a um menino da sua idade é tanta que não noto que há muito chegamos no andar indicado. Devo ter ficado horas olhando sem entender para ele, seus dedos sumindo dentro das mangas compridas demais do casaco que o veste, seu peito estreito subindo e descendo debaixo da camiseta.

Saio quase tropeçando para o corredor, praticamente fugindo dele.

Ele vem caminhando lentamente, e entramos no quarto. Tiro seu sobretudo e mando que se comporte. Seus olhos são frios e duros neste instante, e ele tem uma expressão tão adulta que não se parece com o menino travesso ou sedutor de antes, e muito menos com o assustado Frost que eu conheci naquele parque. Penso em tocar sua franja e me despedir. Penso em tocar seu corpo inteiro, ao mesmo tempo. Há algo de errado aqui. Ele está tenso, e eu me descubro do mesmo modo. Não sei o que sinto, mas sinto algo de muito errado neste quarto. As portas que coincidem para cá estão todas abertas e a luz deste cômodo mostra que todos estão vazios, impecáveis. A intuição que, percebo, não me abandonou nunca, ou volta agora mais forte do que nunca, como se fosse uma coisa afinal devolvida, me faz desconfiar de tudo. O que devo fazer agora? Vou embora, meus temores são criados por minhas preocupações e fantasmas. Não à toa Sakura tinha tanto medo das coisas que eu via e ouvia. Ela era sensata.

"Não me deixe aqui sozinho, To-ya."

"Você vai esperar virem lhe buscar. Eles não vão demorar."

"Mas eu não quero ficar sozinho. Aqui é tão escuro!"

Percebo que as janelas estão fechadas. Melhor que continuem assim. Mesmo com as luzes acesas, os móveis vitorianos e escuros a forração estampada das paredes não ajudam muito a melhorar o ambiente. Mais uma vez estou sem saída, ele continua sério, mas suas palavras são de cortar o coração, que o diga o meu, tão endurecido por tantos anos de solidão, e eu sinto que me encanto cada vez mais por ele. Digo que vou ficar até que alguém chegue, se ele se sentir melhor. Ele parece mais conformado. É difícil imaginar minha vida sem ele daqui em diante.

Cruamente ele pergunta por que eu nunca sorrio.

Não tenho nenhuma resposta mais simples. Digo que já não tenho razão para fazer isso. Frost então pede que eu sorria para ele. Só uma vez. Ele está me assustando. Me vejo sendo empurrado para a cama e ele se aninha do meu lado, sem perguntar mais nada. O que eu devo fazer agora, se não consigo mais gritar com ele e nem ser rude? Ficamos deitados, um do lado do outro, olhando para o teto de madeira corrida, pintada de branco. Ele apaga a luz e ficamos escutando o ruído de uma chuva que está começando.

"Você não gosta mais de mim?" - Eu me pergunto quem está falando neste momento.

"Eu não disse isso."

"Mas agora é você quem está com medo de mim."

Talvez por acaso, ele passa uma perna sobre a minha, e se aninha mais próximo ainda. Pouco tempo depois um trovão estala pelo céu.

"É verdade."

"Eu tive medo de você esta noite."

"Pelo que eu lhe fiz?"

"Pelo modo que você olhou para mim. Eu não sou um monstro, To-ya."

"É disso que eu tenho medo. Você me dá medo. Por que me chama desse jeito?"

"Você me chama de 'neve'." - Ele brinca com o botão da minha camisa. Suas palavras me deixam cada vez mais desconfortável. É como falar com um adulto e com um velho conhecido. E Frost é justamente o inverso disso tudo. Na verdade estar ao lado dele, é tão bom e acolhedor quanto estar ao lado de um amante. - "E o meu nome é 'gelo'."

"São seus olhos. Azuis como um pedaço de gelo."

"Eu não quero ir embora. Me deixe ficar com você, Toya."

"Não posso. Tenho medo de estar cometendo um engano."

"Apenas me deixe ficar."

"Você é só uma criança. Olhe para mim."

"Eu não sou o que eu pareço." - Ele reclama, numa birra que só noto quando o vejo fazendo uma expressão amuada. - "Eu não sei o que eu sou, mas eu não sou o que você pensa."

"Não importa." - Passo um braço por sua cintura frágil e o trago para cima de mim. Por todos e quaisquer deuses, do bem e do mal, Frost é terrivelmente belo. Quero fazê-lo sorrir, seu sorriso é lindo. - "Por que você não cresce logo?"

"Por que?"

"Aaah..." - Desta vez eu tenho de rir. É uma risada como há anos não me permito. Ele estreita seus olhos, e mesmo sorrindo seu rosto volta a ser como o de um adulto. - "Esqueça... Está errado. Está tudo errado."

"Você quer continuar o que queria fazer comigo?..." - Ele diz num sussurro em meu ouvido, depois de um longo silêncio entre nós.

Não respondo. Melhor silenciar. Claro que eu quero, mas sei que não é possível. Eu estarei destruindo a sua inocência, e a mim mesmo. Frost sussurra que eu o abrace com força, como eu havia feito antes, quando ele dormiu em minha cama. O que ele pretende? Seja o que for não tenho mais forças para me negar a nada do que ele queira. Estou irremediavelmente, desesperadamente apaixonado pelo anjo de olhos azuis. Ele apenas se entrega. Fica quieto, deitado sobre mim, estremecendo de vez em quando, em que eu respiro fundo o cheiro dos seus cabelos. Jasmim. Ele todo tem esse perfume. Sinto o cheiro de sua pele, sem me atrever a fazer mais nada. Suas mãozinhas desfazem meus botões, todavia... Ele olha para o lado da porta e todo o encanto que havia sido criado entre nós desfaz-se num piscar de olhos. Eu olho também e vejo que não estamos sozinhos, ou que pelo menos nossa presença era esperada aqui.

Atrás da porta de entrada do quarto há um grande pentagrama pintado, o símbolo de um grande sol sobre a madeira escura. Alguma coisa me diz que é um selo isolante. Alguém pintou um selo que isola a magia para dentro ou para fora deste quarto. Não há sinal algum de qualquer outro símbolo, somente o sol.

Pulo da cama e vou direto para a janela. Quando afasto as cortinas escuras e pesadas, encontro uma repetição do mesmo selo. Por mais que eu quebre o vidro, e esse é meu primeiro pensamento, apenas eu passarei ileso por ele, para fora deste lugar. É uma armadilha. As outras janelas também estão pintadas, não preciso olhar para saber, é uma cilada cuidadosamente planejada, sei que não há saída neste quarto que permita a fuga de nenhuma criatura sobrenatural. Não é uma cilada para mim, é para Frost, mas não vejo motivo de tanto cuidado. Ele fica do meu lado, muito próximo a mim, assustado. Então, este era o motivo do meu mal pressentimento. Quem poderia querer prender Frost aqui?Não sei o que estes selos são capazes de fazer ao certo, não sei o que significam, mas o sol no centro do pentagrama só me faz pensar num alguém que há anos eu acreditei nunca mais encontrar novamente:

"Cerberus."

Nem precisaria ter dito seu nome para confirmar o que então me pareceu óbvio.

Ele aparece como que do nada, bem à nossa frente, bem no meio do amplo quarto, surge em meio a uma densa luminosidade dourada, e assim, nós o vemos passar do terrível e imponente leão alado à forma humana, em um garoto de não mais que aparentes dezoito anos, quase da minha altura, vestido em uma longa túnica vermelha e dourada... Não tenho tempo de me alegrar por revê-lo. Frost tem um violento estremecimento de horror e ódio absolutos.

"Toya, afaste-se dele." – Sua voz é profunda como a voz do leão alado. Seus olhos dourados são ferozes e repletos de ira. Ele não é mais o Guardião de Sakura, e todas as cartas foram destruídas. O que ele pode querer de um menino como Frost?

Se ele erguer seu poder contra mim eu estarei morto antes mesmo de cair no chão.

"Não."

"Afaste-se dele! Eu devo mata-lo!"

"Não! Por que quer fazer isso? É só uma criança!"

"Afaste-se!" – Cerberus sacode seus cabelos com força, ele inteiro como se voltasse a iluminar-se. – "Não deveria ter ficado, não deveria tê-lo encontrado."

"Destino."

"O que a minha mão separou, ele não tinha o direito de unir!" – Ele rosna, é como um perigoso animal aprisionado em uma suave forma humana, apontando para Frost, que eu permito que fique escondido atrás de mim. – "Saia da frente e não se atreva a protege-lo ou eu..."

"Ou o quê?" – Não sei de onde vem a minha coragem. Algo me diz para enfrenta-lo. Como eu posso fazer isso? Mas eu faço, confiando nessa força que desconheço.

Ele volta sua ira para mim também. Sente-se traído? Não faz diferença. Mando que Frost continua atrás de mim, e faça o que eu mandar. Cerberus não se move, apenas me segue com os olhos claros e penetrantes. Tento passar por ele e ir até a porta.

"Retire o selo."

"Vai morre junto com ele se passar por onde o selo está."

"Não me importo."

"Não se importa em morrer?"

"Não."

"Morrer por ele?" – Sua voz e seu rosto não escondem um tom de desprezo e asco. – "Saia da frente, pela última vez. Muito sangue está sendo derramado por isso. Deixe-o morrer, deixe que eu o mate!"

"Não."

Se a situação fosse outra, talvez eu lhe fizesse muitas perguntas.

"Eu estou fazendo isso por Sakura! Eu sujei as minhas mãos por ela!"

Não consigo esboçar nada. Estamos á um passo da porta, que continua fechada. Frost não pode sequer tocar a madeira sem sentir-se queimado vivo. Eu sinto a sua dor quando escuto seu grito.

"Suje mais uma vez."

"Não posso permitir que você morra por isso. Não por ele."

"..." – Não paramos de nos encarar por um único momento. Cerberus não tem mais nada daquele que Sakura havia conhecido, confiado, devotando uma amizade maior do que jamais devotou a mim... Este é o verdadeiro Cerberus? Aquele bom e compreensivo amigo era só mais uma mentira?

Eu me decepciono profundamente, por saber que minha irmã confiou e tomou-o por irmão, um dia. Eu encontro a maçaneta da porta, posso toca-la, apesar da dor que sobre por meu braço, imediatamente, é como se eu tocasse em brasas. Não há fogo, somente a sensação. A morte será terrível, eu sei, mas não posso deixar Frost enfrentar um leão furioso.

"Você morreria por ele, Toya?" – Ele parece cada vez mais furioso ao ver que eu não lhe obedeço. Ele parece saber mais do que eu do que sou capaz, saber o tamanho da minha força.

Não sou capaz de responder. Não ainda. Talvez nunca. Mas eu não irei abandona-lo. Não tenho medo de Cerberus, por mais furioso que ele esteja. Ele faz a única coisa que eu não poderia esperar: bate com seu pé direito, descalço como o outro no chão e imediatamente, escuto um som fino vindo da porta. A marca que estava nela simplesmente evapora. Desaparece, e a dor também.

Um instante depois, estamos correndo pelas escadas, o ferro da gaiola do elevador está toda em brasas vivas, fumegantes, o próprio fosso do elevador é um perfeito inferno. Um rugido de leão faz os hóspedes dos outros quartos abrirem suas portas, e eu só escuto os gritos quando eles vêem o que está acontecendo. Eu sei o que estão vendo. É a mesma coisa que corre atrás de nós, pela rua, debaixo da chuva forte, por entre becos, por entre as escuras árvores do parque onde conheci Frost. E ele, ele me pede desculpas o tempo todo, senão com palavras, com seus grandes olhos azuis.

De onde você vem? Por que ele quer mata-lo? Quem é você? Ele jamais me dará respostas, mesmo que as tenha.

Corremos por muito tempo, não há lugar neste mundo em que possamos estar seguros. Cerberus não é um ser conjurado pelas trevas, não há como fugir e nem detê-lo. Ele não pode tentar ver quais serão meus passos, ele não foi feito para vislumbrar o futuro, assim como nenhum dos outros guardiões criados por Clow. Apenas o próprio Clow poderia fazer isso. É como atirar no escuro, mas eu tenho de tentar, ou Frost, que aperta minha mão entre as suas, morrerá... e eu não sei se eu poderia morrer com ele... Ou por ele.
 
 
 
 
 
 

CONTINUA