Presença de Yukito

Por Astasia


Prólogo


“ Se eu tiver de morrer, que seja por amor. Nada mais.”






Não sei como dizer a ele, nem mesmo eu sei de onde tiro forças para continuar nesta casa. A mancha do sangue de Sakura parece impregnada no mármore do chão deste palacete. O que será de nós agora?

Todos morrendo.

Restarei afinal apenas eu para enterrar os mortos desta família? E não somente desta família, quanto de todos que atravessam nosso caminho? O que direi a meu pai? Que sua filhinha foi assassinada? Por quem? O que dizer a ele de como Tomoyo está agora? A quem devo condolências? Aos vivos ou os mortos?

O sangue dela está no mármore do chão, exaustivamente lavado por mim. Três dias depois, e parece-me que o cheiro ainda está fresco. O mesmo algo maligno que a matou, que ela buscou, desafiou, jamais saberei, ainda está aqui.

Ela está aqui? Se estivesse viva, hoje seria seu aniversário. O presente de papai chegou antes dele.

Sakura, é difícil dizer isso enquanto contenho as lágrimas que não tive tempo para derramar, você jamais vestirá este lindo vestido dos seus quinze anos. E neste ano, Tomoyo não terá seu baile, papai jamais me perdoará pelo que eu deixei acontecer, Li nunca irá ter paz mais uma vez, a carta de Eriol jamais será respondida, e eu... Jamais dormirei uma noite inteira depois disso tudo, não sem pensar em você, em todos os que me vi perder no caminho...

Mamãe... – Que cuide de Sakura, se puder me ouvir, mãe, cuide dela!...

...Yukito...– Ah, Yukito, o demônio que o arrebatou, dilacerou seu corpo e seu espírito, na noite em que você havia jurado entregar-se afinal a mim...

E agora... Sakura – Tão jovem, tão otimista, tão corajosa. Eu quero acreditar que a sua morte foi rápida, ainda que violenta, mas o medo que eu vi nos seus olhos arregalados e estáticos quando eu a reconheci na frente da polícia, me faz duvidar...

Eu tenho medo, se há um Deus, e eu creio que há, eu tenho medo de que ele nada possa fazer para nos poupar de um destino pior.
 
 

 

“Tomoyo...” – Eu me inclino para frente, tentando olhar através do denso e escuro véu dos cabelos dela, caídos sobre o rosto, eternamente desta forma, agora.

Claro que ela não pode me ouvir. Está em silêncio desde que voltou do hospital. Seus braços ainda estão enfaixados, arranhões profundos cujas cicatrizes ficarão aí definitivamente. Seja lá o que houve, o que os atacou, deixou marcas profundas em sua alma, também. Seu olhar é tão perdido. Tomoyo está morta por dentro.

“Tomoyo, você pode me ouvir?” – Que pergunta estúpida. Ela é tão bonita, mesmo pálida como está, apática nesta cadeira, como está. Sua mãe está inconsolável, Ela prometeu me ajudara a contar para meu pai, quando ele voltar da viajem, mas não sei se isso pode ajudar em algo.

Seu olhar está fixo num retrato sobre a cômoda de seu quarto. Somos nós. Todos nós. Eu tinha dezessete anos, Sakura tinha doze. Três anos atrás. Antes de eu ter perdido a minha visão, antes de ter perdido... Yukito.

“Eu preciso saber o que aconteceu, naquela noite.”

Ela não responde. Por que estou sendo tão estúpido? Tomoyo fechou sua mente num poço escuro de medo e dor, está há um passo da loucura. Esfrego os olhos ardidos, das noites em que não durmo, e das lágrimas que não derramei.

“Toya.”

Olho para a porta, é Li. Está com uma coisa em seu colo, é um embrulho. Como ele cresceu... A dor nos fêz afinal amigos, é incrível. Ele parece ser muito mais o adulto do que eu neste instante.

“Não consegue ver que fazer isso é inútil? Ela não vai responder. Acredite, ela estaria melhor se houvesse tido a mesma sorte de Sakura.”

“Seu... pequeno desgraçado, como consegue falar assim? Você também é responsável pelo que houve, seja lá o que for...!!”

“Eu?” – Com um passo largo ele atravessa a linha que divide o quarto do corredor, e com mais outros, dados sem desviar os olhos dos meus, ele se aproxima até ficar em pé, na minha frente. Olho para cima com raiva, seu rosto de menino com olhos tão cruéis quanto um dia vi que poderiam ser os de Sakura também.– “Eu só estava lá para protege-la, eu não ajudei-a a fazer nada do que provocou toda esta dor.”

“Por que não a impediu?!” – Eu sei que estamos em uma casa estranha a nós dois, por isso, como em um silencioso pacto, travamos nossa luta em absoluto silêncio.

“Sakura sempre fêz o que quis. O poder que a iniciou na Magia contribuía para fazer dela tão dona de si. E Tomoyo...”

Li dispensou à amiga indiferente um longo olhar de indefinidos sentimentos, que afinal culminaram numa raiva terrível, contida, e por isso perigosa:

“Tomoyo, pobre Tomoyo... Ela amava tanto sua irmã que a seguiria até se Sakura quisesse abrir as portas do inferno, e a verdade não está longe disso, Toya, é só o que posso dizer.” – Ele não muda seu tom, sempre brusco e seco, sua voz de adolescente não combinam com estas palavras. Ele acende a chama de minha curiosidade e antes que eu pergunte mais, ele diz que é tudo o que terá a me dizer, e me manda esquecer definitivamente os mortos. Todos eles.

“E você, Li? Esqueceu os seus?”

“Se está falando de Yukito, eu faço questão de esquece-lo, e se você fosse mais prudente, faria o mesmo.” – Ele estende o embrulho que está em seu colo, e eu hesito, quando vejo que a maior parte estava oculta sob seu casaco. Afinal, o que é isso? – “Da mesma forma que faço questão de esquecer sua irmã. Por mais importante que ela tenha sido para mim.”

Eu seguro aquela coisa pesada, que fica atravessada a muito contragosto em meu colo, Li endireita os ombros como se nada de mais estivesse acontecendo e simplesmente diz, antes de me dar as costas e sair porta afora, tão frio quanto entrou:

“É a minha espada. Não vou mais precisar dela. Mas talvez você precise. Um dia.”

Não acredito no que escuto. Li está dando as costas a tudo o que houve, à lembrança de Sakura, à Magia a qual dedicou sua vida. Olho para a espada em minhas mãos, é bem mais leve do que imaginei, mas o peso amargo da culpa e da destruição que ela já semeou, por todos seus ancestrais,o poder que ela carrega, justamente por isso, a faz insuportável. Li deve ter enlouquecido. Ele mostra sua tristeza de uma maneira muito estranha. Ele está mesmo indo.

Levanto-me, sem deixar de demorar um olhar inevitável sobre Tomoyo.

E ela está chorando.
 

 

“Li!” – Eu o chamo, detendo-o pelo braço antes de ele chegar ao fim do corredor.

“Nossos assuntos e afinidades terminaram há três dias, Toya.”

“Não! De uma vez por todas, diga-me o que houve naquela noite.”

“Você não era aquele que conversava com os mortos? Pergunte a eles, então!” – Num puxão ele se afasta de mim. Agora eu vejo o tamanho de seu desprezo por mim. Para Li eu não sou mais nada, por que eu abandonei o dom de minha visão para salvar aquele demônio chamado Yue...

“Não zombe de mim!”

“Não tente arrancar de mim uma verdade que não me pertence!”

“Diga-me o que houve, apenas isso...!”

“Jamais.”

“...”

“Por favor, não insista.” – Ele pede, baixo, seus olhos estão secos, perfeitamente secos, ele não é mais uma criança definitivamente, se é que um dia ele o foi.

“Eu preciso saber.”

“Não precisa. Você está errado. É melhor que não saiba. Melhor que jamais se envolva nisso. Era a vontade de Sakura. Por isso, ela manteve o silêncio. Até o último instante.”

“Mas ela era a minha irmã!”

“Ela está morta.”

Como são duras suas palavras, seu olhar. Ele parece ser a pessoa mais velha que eu já vi em toda a minha vida. Ele o diz com um ódio profundo, nega a verdade com um ressentimento total por  minha irmã.

“Sendo assim, esqueça-a, Toya.”

“...”

“Preocupe-se com os vivos. A mãe de Tomoyo me telefonou antes de eu vir aqui. Ela estava na estação de trem, foi receber o seu pai, e pediu-me para avisá-lo disto. Ela disse que iria contar a ele. O bruxo velho não vai ficar nada feliz, e com certeza vai querer que você mais do que qualquer outro, responda pelo que houve.”

Eu não teria ficado mais chocado se ele houvesse me dado uma bofetada. Senti pela primeira vez a espada em minha mão pesar realmente, quase insuportável. Bruxo velho... Ele assim como Li talvez já conheça as respostas, e vai fingir, como sempre fingiu, que está tudo bem, mas a única coisa que não vai negar é que não vai mais querer me ver.

Li desce as escadas muito lentamente e atravessa o nível entre os lances, olhando brevemente para mim. Quase não acredito no que vejo. Ele está sorrindo.

Desaparece sob a beirada da parede, somente seus passos dizendo que ele ainda está lá, indo embora. Eu sei que nunca mais o verei. Volto, sentindo um frio no fundo do estômago, que há anos não sinto, uma certeza, como antes, como quando eu ainda tinha o dom de minha visão, para o quarto de Tomoyo, por seu rosto bonito e impassível, grossas lágrimas ainda correm. Seus cabelos estão sobre seu rosto. Tomo uma das escovas que estão na penteadeira branca e, ignorando a mim mesmo no espelho, não sei por quê, começo a escova-los, tentando me concentrar desesperadamente naquilo.

Seus cachos tomam forma mais uma vez, e surgem, brilhantes, entre meus dedos, e eu engulo em seco quando o telefone toca. Isso não me surpreende. Continuo com minha estranha tarefa. E, como muitas vezes vi minha mãe fazer, quando eu era criança, começo uma longa e grossa trança de seus cabelos. Sem pressa alguma. O telefone continua a tocar. As criadas estão de folga hoje. Estou fazendo companhia a uma pessoa que não faz idéia alguma disso. A alegre Tomoyo não está mais aí, eu sei. Ato o fim da trança com uma das fitas que estão soltas sobre a penteadeira, ao lado de nosso retrato. Terrível, mórbido, sinistro, e inesquecível, é o rosto de Yukito e Sakura neste retrato.

Eu nunca ignorei que ela o amava....

“Alô?”

Um hesitante silêncio se faz do outro lado da linha. Somente a respiração, e uma voz alta e muito conhecida por mim, ecoa no fundo.

“...Toya? É você?”

“Sim.”

Era a mãe de Tomoyo, de fato. Ela, falando muito baixo, diz que levará minhas coisas até sua casa, que eu poderei ficar o tempo que quiser, antes de voltar para a universidade. Diz que meu pai está muito nervoso e talvez ele precise de um tempo sozinho. Então, eu defino afinal o que o antes tão discreto e gentil senhor Fujitaka Kinomoto diz em meio a soluços de pai desesperado e indignado, como se a dor fosse apenas sua:

“Diga a este desgraçado que nunca mais quero vê-lo! Se eu perdi a minha fila, a culpa é toda dele! Apenas dele!”

Com um doloroso suspiro, ela diz que cuidará de tudo, e torna a dizer que trará minhas coisas. Eu agradeço e desligo. Apenas isso. Afago a cabeça de Tomoyo, seu rosto está claro, seus cabelos estão presos, o melhor que poderia fazer, não tenho experiência com estas coisas. Talvez fosse um dos meus deveres de irmão mais velho saber. Deveria ter sido também cuidar melhor de Sakura, mas como Li havia dito: ela sempre fêz o que quis.

Ainda fazendo um carinho por seus cachos presos, e pelos mais curtos, que escapam à trança, eu torno a pegar o telefone, e disco o número da universidade, e muito antes do final do prazo que o coordenador de meu curso havia me dado para escolher, eu aceito a duvidosa proposta de transferência, a bolsa de estudos que eu havia conseguido na Inglaterra.

Eu também, farei o que eu quiser, a partir de agora.
 
 

 

CONTINUA