Descobertas
 
Por Astásia
 
 

Capítulo 4 - Eu Sinto Muito


Acabo de atravessar não sei qual distância no mesmo ritmo de corrida. Parece que meu coração vai explodir dentro do peito, e eu acho que vou mesmo explodir se não conseguir o que quero!

Minha camiseta gruda em mim, no meu suor. Queria ser como Hiei, uma mancha escura e quase invisível, de tão rápido, ao se movimentar...

É uma rua afastada de onde moro com minha mãe. Já passei aqui algumas vezes, passeando pelas madrugadas, com Hiei, mas nunca pensei... Encontro o número da casa, uma placa num muro alto, coberto de trepadeiras. Ele morou aqui? Há roseiras no jardim, e desabrochando, o cheiro vem ser percebido por mim na rua e nem preciso me esforçar para sentí-lo. Passos pelo jardim.

Olho por um tempo absurdo para a campainha, avaliando o que estou fazendo.

Antes, eu nem sequer pensava se havia brotado neste mundo feito um cogumelo, e agora descubro que me importo, e muito, com o pai que tive, e estou buscando o mais que posso descobrir sobre ele. É um estranho que eu conheço muito bem, mas que não compreendo. Reconheço, mas não quero acreditar no que meu coração está dizendo.

Aperto a campainha.

Uma senhora atende a porta e arregala os olhos quando me vê. Sei o que há neles. Reconhecimento. Medo. Uma alegria irracional que serei eu a destruir...

"Bom dia, eu..." - Começo a falar. Minha voz sai baixa, mais rouca do que é de fato, ainda ligeiramente arquejante. Tento não parecer ansioso. Seria mais fácil fazer Hiei pentear os cabelos...

"Suichi?..." - Ela fala baixo, também, mais que eu, e eu só sei o quê pois reconheço o movimento de seus lábios. Ela está me confundindo com meu pai? Ou sabe que sou filho dele? Ela é minha avó?!

"Eu... Quero falar com o Sr. Minamino Hirose... Por favor." - Tento forçar frieza e normalidade na voz e nos meus nervos. Difícil.

Ela não desvia o olhar de mim. Quase penso se, na tensão, não voltei à minha forma de Youko, pela forma que a senhora me investiga. Pede que eu entre, que vai chamar a dona da casa. Ouço risos de crianças. Atravessa o passeio do jardim na minha frente, com o princípio de sorriso despontando em seu rosto. Ainda me olha. É uma casa grande, quase uma mansão. Uma vez, minha mãe comentou que o velho Hirose Minamino era um industrial muito rico, que não tolerou muito bem o casamento do filho mais velho, e, entregou sua parte da herança, bem menos do que seria o merecido, e o mandou embora de casa. Com esse dinheiro, ele deixou a casa em que vivo com minha mãe, a única coisa segura que tivemos por muito tempo. Ele não havia cortado relações com meu pai, mas não fazia muita questão de ser simpático com a nora. Depois que ele morreu... Ele quis esquecer de nós.

Mas eu não vou deixar.

Dói pensar que vou perturbá-lo com esse assunto. Eu sou o assunto. Deixo os sapatos no tapete e entro com muito respeito. Sobre um móvel, fotografias de família. Reconheço quem talvez seja meu avô. Está claro aqui, posso ver bem que é sua esposa ao seu lado. Ambos, muito distintos. A senhora que me atendeu, certamente a governanta, pede licença para chamar sua patroa. Toda, pois não. Não, obrigado, eu agradeço sua gentileza, mas não tenho sede. Claro que posso esperar. Obrigado.

Falsidade de raposa em pele de nigen...

Espero de pé, olhando as fotos nas molduras. Uma delas, está com a face voltada para baixo, deitada de propósito. Com um indevido atrevimento, eu me coloco nas pontas dos pés, e ouso erguê-la.

Não me surpreendo quando reconheço meu pai, e eu estou no seu colo (Com a mão toda na boca, babando e olhando assustado para a câmera!! Quantos anos de sua vida Hiei daria para me ver assim?) ao lado de Shiori.

"Não toque nisto. Pegue em tudo, menos nisto." - Uma voz que parece o fim de um trovão atravessa a sala, me assustando. Se eu não soubesse tão bem o que estou fazendo nessa casa, eu teria feito as trepadeiras do jardim arrebentarem cada osso de quem me assustou...!

Me viro bruscamente e não sei quem se surpreende mais. Eu ou o senhor distinto e bem vestido que me achou. Não reconheço-o de lugar algum, mas ele me impressiona por ser tão sério, e mais que por isso, por seu choque quando me vê. Ficamos parados por muito tempo. A governanta retorna, e pede muitas desculpas a seu patrão, por ter me deixado entrar sem a autorização dele e...

"Mas ele se parece tanto com o seu menino...!"

Ele a dispensa duramente, me manda sentar com palavras secas. Estamos só nós dois.

"Não deve ser uma assombração. Então, deve ser meu neto."

Digo que não quero sentar. Não me lembro de ser educado. Não escolho muito as palavras.

"Sou."

"Sua mãe não lhe disse que não quero nenhum dos dois aqui? Ela sabe que não está na escola? O que quer?"

"Ela disse, sim. Ela não sabe onde estou e nem isso vem ao caso. Eu quero saber o que o meu pai falou antes de morrer."- Sou tão seco quanto. Descubro que não gosto nem um pouco de dividir o espaço sobre a terra com ele.

Ele me olha desconfiado, tenso. Devia estar esperando que eu me apavorasse. Tenho vontade de rir de sua cara. Se ele imaginasse a minha verdadeira idade... não sabe que eu era o demônio mais mortífero do Makai? Não se iluda com esse rostinho inocente que o seu filho me deu...!!

"Ele não disse nada. Chegou morto ao hospital."- Seu olhar se desvia do meu e ele vai me deixar falando só se eu não faço nada. Odeio que me deêm as costas quando estou falando. Kuroune sentiu muitas vezes o peso da minha mão em seu rosto por costumar fazer isso quando brigávamos.

"Mentira." - Eu digo, baixo, e sai como um rosnado cruel. De raposa. Seu olhar agora não é mais de tolerância. Eu quero a verdade e digo isso. Ele parece um gigante, nem de longe Suichi se parecia com ele, em nada. Ele me odeia.

"Você sabe, não é?..." - Ele diz, parecendo tenso e, até, temendo minha presença, eu posso dizer, pelo cheiro de medo que não se ocultou.

"O quê?"

"Sabe que ele falou comigo, antes de morrer, sua mãe lhe disse. Somente ela sabe, quero dizer, desconfia. Não acho que lhe interesse, menino."

"O que ele falou?"

"Isso é tão importante assim, para você?"

"Eu não estaria aqui, se não fosse...! É importante para mim, sim."

"Venha comigo, então, antes que eu mude de idéia."

Ele se justifica que não quer que sua mulher me veja, que ela sofreu muito quando meu pai morreu, que eu realmente me pareço muito com ele, se não fosse o cabelo e a falta dos óculos. Isso me faz sentir novamente o aperto dentro de mim. Vontade de chorar, dor por minha ingratidão. Por minha falta de noção das coisas...O meu pai é exatamente o que eu vou ser em alguns anos. Ele me leva até um quarto, no fim de um corredor, trancado. No caminho, uma garotinha se choca com minhas pernas. Pequena. Linda. Faço um agrado em sua cabeça e ela pede desculpas, falando errado. Meu avô olha, crítico, indiferente.

"Ela é sua prima. Tenho uma filha, mais nova que o seu pai."

A menininha não é ruiva. Tem cabelos escuros. Será que minha tia é ruiva como eu?

Vira uma chave na fechadura e quando abre, cheiro de pó e mofo cortam o ar. Forte. Estremeço tão violentamente que acho que ele nota, a energia me envolve como quando abri a maldita caixa, naquela noite de Sábado tão terrível. Meu interior se revolta. Quero fugir mas sei que devo ficar.

Entro e vejo que tanto aquela energia quanto seu cheiro continuam aqui. Ambos pertencem a ele. Estão enfraquecidos pelo tempo, mas ainda bem marcantes.

"Tem uma coisa que você tem de saber..."

"..."

"... O seu pai não era o meu filho de verdade. Minha mulher nunca soube disto. Nosso filho de sangue morreu quando nasceu, e o médico me recomendou adotar uma criança para que minha esposa não se sentisse tão mal...Mas eu nunca disse a verdade."

Andei pelo meio do quarto de solteiro de Suichi Minamino. Paredes amarelas, claras. Colcha azul-escura sobre a cama. Há um casaco marrom esquecido em um cabideiro. Seus livros amontoados pelos cantos. Num quadro negro, ainda há sombras de equações de álgebra, feitas apressadamente com giz. Passo os dedos sobre elas. Tão forte... Meu avô continua falando.

"Quando ele veio para casa, chegamos a pensar no pior. Ele era uma criança que nunca chorava. Nunca sorria, quando ficou maior. Quase me arrependi por haver escolhido ele no berçário do orfanato. Achamos que ele pudesse ter algum problema mental, ou mesmo autismo. Por sorte, minha mulher ficou grávida logo em seguida, e ela não teve tempo de notar que raramente, talvez só quando realmente estivesse com medo, ele se comportasse como uma criança normal. Entende?"

"Acho que sim... Mas, meu pai... Eu não fazia idëia...De que ele houvesse tido esses problemas. Eu era assim quando era criança... O que isso tem a ver com o que ele disse no hospital?"

 "Tudo. Uma vez ele, antes de morrer, veio aqui. Estava parecendo preocupado. Eu o amava muito, não duvide. Antes de Suichi inventar aquele namoro com a sua mãe, ele era meu braço direito, o melhor amigo que eu poderia ter tido..." - Começo a notar alguma emoção em sua voz. Agora, não parecem mais somente palavras jogadas ao léu.

"O que ele falou?"

"Que sua família o estava procurando. Deus, eu não sei se ele estava louco, ou se estava mais lúcido que nunca. Mas ele parecia estar realmente com muito medo..."

"Ele tinha família viva?!..." - Eu me viro para encará-lo. Ele está com os olhos rasos, mas quem está chorando sou eu e só percebo isso pois ele estende um lenço para mim. Aceito. Minhas lágrimas ardem, queimam mais que tudo. Começo a soluçar. Meu rosto está quente de vergonha. Desabo na frente de um perfeito estranho!!! Mas o que eu posso fazer? Talvez...

"Não. Eu investiguei isso quando ele morreu. Não há o menor parentesco entre ele e mais nenhuma pessoa viva."

"E o que ele disse no hospital?" - Digo, finalmente, depois de tempos calado, tentando digerir suas palavras. É para ouvir a resposta desta pergunta que estou aqui. Por que raios eu me distraio com relíquias de um morto? Por que raios eu me sinto um nada quando penso no que era antes de ser seu filho? Você está morto, Suichi! Não deveria me assombrar!! MORTO!! Um morto que sabe muito mais que qualquer vivo sobre o Youko...

"O que ele disse?"

Ele ri. É um riso amargo.

"Disse que estava escuro e muito frio. Mas, ele estava com uma hemorragia que não conseguiram estancar. Era natural que sentisse frio, e havia sangue em seus olhos. Então, ele quis se sentar na maca, entrou em desespero, acho que estava em choque, mas o médico me explicou que não foi uma pancada tão forte para provocar delírios... Foi preciso três enfermeiros para mantê-lo deitado. Ele dizia que não queria ir, que eu mandasse a sua família embora, que ele tinha medo... Que não queria deixar a esposa nem você, que você não dormiria, se ele não cantasse para você, à noite..."

Suas palavras são familiares para mim. É um medo que eu conheço muito bem. Não pensei, não imaginei que houvesse sido assim...Que ele se importasse tanto. Saber de sua preocupação... E sua família? Que família seria essa?

"Então, meu neto... "- Arrepio ouvindo o velho Hirose Minamino me chamar assim, de forma quase carinhosa. - "...ele apontou para o corredor da emergência, eu juro por Deus, não estava vendo coisas, menino, o que eu vi... terrível, acredite... foi um bando dos maiores e mais terríveis animais que já vi em toda minha vida. Um pânico dentro daquele lugar. Na verdade, foi por isso que não chamei logo a sua mãe. Entende agora?"

Estremeço. Meu rosto, sinto-o em fogo. Não, senhor, não estou bem. Não, esta palidez é comum, apesar ou por tudo. Que animais?

"Que animais? O que quer dizer com isso?"

"Quero dizer que eu vi, o hospital todo viu, um bando de raposas enormes, furiosas, vagando pelas alas, até pararem naquela emergência... E Suichi me pediu para cantar uma música de ninar. Quase enlouqueci. Quase enlouqueço quando recordo disso. Alucinação coletiva, histeria, eles disseram."

Tapo fortemente a boca com as mãos. É mais horrível do que parece. Tento com toda a força conter meu grito!! Não, não!! Não posso aceitar isso!! Eu me tornei fraco, sendo meio nigen, e isso é demais para a minha cabeça já cheia!! Caio contra a parede, arfando de uma dor muda, que me enche como um copo até a borda. Ele não entende!! Ninguém entende!!

Como dói, meu Deus, só eu sei o quanto dói!!

Choro descontrolado, tremendo. Acho que vou desmaiar. Meu silêncio é terrível, é um silêncio maior que tudo, maior que tudo!! Está em mim e em tudo aqui!! Ele está aqui!! Eu sinto, perto de mim!! Será que esse homem não percebe?! Está louco? Cego?

Ou louco estou eu?

Uma escuridão se faz dentro dos meus olhos, e nela, eu vejo, num retalho de vida que estava adormecido com lembranças alheias, a última luz dentro dos olhos de Suichi, quando sua cabeça encharcada de sangue pendeu para o lado, e sua mão apontou, débil, para o corredor, onde as raposas olhavam para ele.

E eu sei que eram raposas de quatro rabos.

 

__________

 

 

Saio voando da sua frente. Já sei o que quero. Estou arfando, sufocado de algo que me engasga e não tenho certeza do que é, mas que tem espinhos, e não deveria estar aqui. Tontura estranha. Quero voltar para casa. Meu avô pergunta sempre se estou, se minha mãe está, bem, se preciso de algo, que pode me ajudar; pede que eu não tente falar com minha avó. Pede que eu não me mostre para minha tia. Obedeço automaticamente, como o zumbi que devo estar parecendo, já estava desfeito quando cheguei, e sei que estou pálido como cêra, não sinto meus dedos. Não me despeço dele.

Trocamos um longo e meio vazio olhar. Agora, vejo que é como se seu cabelo houvesse ficado mais branco ainda, e suas lágrimas finalmente deslizam. Penso em minha mãe. Digo que tenho de ir. Noto que já estamos no portão, e eu nem me lembro de como cheguei aqui!!

Sem mais, ele me pede para me abraçar.

Claro.

Não digo, mas eu também preciso de um ombro, embora sempre sentisse falta disso, agora sou humano o bastante para admitir, e depois do que ouvi naquele quarto, sou mais humano do que nunca fui Youko.

 

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Ando sem direção, vagando, vendo cenas de uma vida que não existe mais.

A primeira vez em que olhou-se em um espelho. Uma pipa vermelha subindo no céu. Palmadas. Risos. O primeiropar de óculos. O primeiro beijo. A primeira vez em que viu minha mãe. O amor por ela. A primeira briga séria com seu pai. Ódio. A barriga de Shiori, dilatada. Um chute debaixo da mão que a tocava. Alegrias. Medo. A primeira pessoa a me segurar no colo, quando nasci, em casa. Pesadelos de quatro rabos agitando seu sono. Sombras que o seguiam dentro do labirinto da biblioteca. Lembranças de uma vida que não foi vivida. O primeiro medo verdadeiro. O primeiro acidente, e também o último. Desviar de animais que se atravessaram na pista, animais que ninguém mais viu alí, mas que viram no hospital. Seu medo que foi tão parecido com o meu. A primeira solidão verdadeira, na morte. O vazio. A vontade de fechar os olhos e dormir, somente. O escuro num caminho que Botan sempre disse que é muito longo e solitário.

Me escoro num poste. É quase meio-dia, mas o céu escurece. Vento frio!! Quero voltar para casa, mas sei que corri por uma distância tremenda, e talvez eu não consiga chegar bem por lá... Não quero ficar sozinho.

Ainda estou chorando.

Não estou chorando mais daquela tristeza tão devastadora quanto uma peste.

Choro de raiva. E pela primeira vez em mais de mil anos de vida, essa tristeza que nunca senti antes me faz amaldiçoar toda a minha espécie, todos os Youkos que já caminharam em qualquer um dos mundos.

Tenho vontade de gritar para que me ouçam, mesmo no Makai, o tamanho do meu ódio ecoando em tudo.

Mas meus lábios se abrem sem som.

E tudo desaparece da minha frente.

Eu sinto a minha queda, e os braços de Hiei me enlaçando.

E eu desmaio completamente.

"Eu sinto muito, Raposa."
 
 

CONTINUA....