Descobertas

 
Por Astásia

 
 Capítulo 6 - Truques do Medo


Até parece que estou preparando uma emboscada para minha mãe. Estou esperando por ela num escuro agradável, na sala. O Sol já dobrou, mas falta bastante para anoitecer. É Primavera, afinal, e a tarde é morna como um beijo apaixonado. Inevitável não pensar em Hiei, mas como eu posso querer que ele fique do meu lado depois de Ter feito tanto mais do que normalmente sua natureza permitiria? Às vezes acho que ele é de pedra, então, ele me surpreende, como hoje, me abraçando, o que é sempre tão raro, sua mão (Mais que uma falange menor que a minha! Quanta doçura num demônio tão perigoso quanto ele!) molhada passando em meu rosto, me acordando de mais uma bobagem de nigens.

Se não fosse por ele, talvez eu acabasse me esquecendo de quem sou realmente, entretido demais entre as panelas da cozinha, empregos de Verão e deveres de casa.

Antes, eu achava que essa vida de nigen era tão vazia, que não oferecia nenhum mistério de que dependesse minha vida. Minha maior preocupação era convencer minha mãe a me emprestar o carro

Agora, eu entendo por que sempre ouvia um não.

Na melhor das hipóteses, nem mesmo eu sei o que estou fazendo aqui. Nunca corri para Shiori por nada, mas agora eu a quero, numa necessidade humana que descubro que também tenho. Não sei se quero mesmo falar com ela, enchê-la de perguntas vazias que só a fazem chorar ( E como me dói descobrir que não gosto de vê-la chorar...!!).

Descubro que Ter o amor de alguém, assim, tão gratuito, só pelo fato de eu existir, me dilacera e me faz Ter vergonha de mentir, existir, omitir, de ser.

Minha mãe-youko me odiava só por eu viver.

Meu pai-youko, eu não sei. Talvez eu... Mais um, por Deus, mais um entre tantos ódios... Mas...

Sim, eu acho que também ninguém nunca o conheceu realmente.

Exceto eu.

Eu o conheci naquele Sábado à noite, numa caixa escondida de mim.

Penso de novo, com pesar, no Makai, não no pântano de Nogai, que foi a única testemunha do fim da minha vida naquele mundo. Penso em meu pai-youko. Sendai. Eu amaldiçoei seu nome por infinitas vezes, antes, mas pensei nele como num pedido de desculpas quando eu vi meu fim se aproximar.

E penso também nas exatas e únicas três vezes em que o vi na minha vida, antes de correr em Nogai, fugindo dos caçadores.

Três vezes.
 

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A primeira vez, há muito tempo, mais do que posso recordar. Mas a primeira lembrança que tenho de Sendai é o seu cheiro, parecido com o meu, sim, mas diferente, singular. Depois, se torna um cheiro de medo que me contamina. Penso tão intensamente quanto, no seu abraço, em sua voz. Na música que me ninou na primeira noite de minha existência no MaKai... Tão longe.

 
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A Segunda vez, também há muito tempo, é também quase tão apagada quanto um sonho esquecido. Minha mãe me esbofeteou e me sacudiu pelos ombros. Meus lábios estavam arrebentados de seus tapas, mas eu segurei o choro, com cinco anos eu contive as lágrimas. Ela me mandou ficar quieto e não sair do lugar. E eu fiquei, no meio dos arbustos, me consolando com as amoras que já estavam maduras, que brotavam lá. Ela se foi e o tempo passou. Escutei passos, e dez longos e pálidos dedos surgiram no meio da folhagem, abrindo-a sobre a minha cabeça, e antes que eu soubesse o que estava acontecendo, (E se soubesse o que ia acontecer, teria ficado calado...), reconheci no meio de uma massa densa de cabelos castanho-avermelhados, o cheiro que me reconfortou do susto. Ele me abraçava, e quando falou, sua voz era a mesma de antes. Ele disse que era meu pai, que se chamava Sendai, que eu devia ficar bem quieto, que dalí em diante, ele iria cuidar de mim, mas que teríamos que ir para muito longe para que tudo ficasse bem. Que não voltaria a fazer a vontade de ninguém e tornar a me deixar. Quando me soltou de seu abraço, eu vi seu rosto, bem de perto pela primeira vez (Hiei diria que talvez fosse a minha versão ruiva...). Era estreito, longo, ainda com traços bastante juvenis, e seu sorriso, inocente, o que sempre foi raro aos Youkos, mas ele era assim, impressionante; olhos muito verdes e alongados. E eu não entendia a sua expressão urgente e feliz ao mesmo tempo. Quando Sendai se levantou eu vi o quando era alto, eu mal chegava nos seus joelhos!! Puxou-me delicadamente pela mão, olhando sempre ao redor, sua orelhas, tensas e arrepiadas, me chamando para antes que minha mãe voltasse. E eu disse que queria ficar sozinho. Foi quando ele me mandou tomar cuidado com os meus desejos, mas ainda me levava pela mão. Mas os outros, eu nunca vi tantos Youkos juntos, não sedutores como sempre se apresentam, eles se mostravam ameaçadores alí, vindo com minha mãe, afastando Sendai de perto de mim, arrastando-o entre gritos terríveis e ofensas piores ainda, levando-o para longe, e eu fui também, fugindo, deixando o desespero que senti para trás, e me embrenhei de novo na mata, desta vez para não mais ser encontrado, correndo o mais rápido que podia, agora e pela primeira vez sob a pele de uma raposa de dois rabos.

 
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Sinto minha mãe se aproximar desde quando ela entra pela portinhola do jardim. Agora, ela vira a chave na porta e não segura uma pequena exclamação de susto quando me vê.

" Ah, Shuichi!! Por que não abriu as janelas? Esse escuro vai lhe fazer mal! E você já não estava bem hoje de manhã..."

" Eu também senti sua falta, mamãe." - Digo isso sorrindo, e quase achando tudo muito normal. Um demônio esperando a mãe voltar do serviço. Normalíssimo!!...

" Me desculpe, Suichi." - Ela sorri também, corando, caindo em si de seus exageros. Ela é tão jovem. Dizem que eu tenho seu sorriso, pela primeira vez me orgulho de ter algo tão humano em mim. Me ocorre de que quase nunca conversamos, e que em dois dias falamos mais do que em dezessete anos, como se a metade, pelo menos, do abismo que eu fiz questão de abrir entre nós houvesse se fechado depois daquela discussão.

Tanto que, curiosamente, se senta ao meu lado e segura minha mão, preocupada, por detrás do sorriso.

" Está se sentindo melhor?"

Faço que sim. Quê importa se é mentira? Acho que isso eu ainda sei fazer direito...

" Está mesmo, filho?" - Ela insiste. Pensando bem, acho que estou enferrujando...

Igualmente de maneira inusitada, eu me debruço em seu colo, e coloco minha cabeça sobre suas pernas, sem saber se posso esperar com certeza por afagos, ou por ser repelido, como minha mãe-youko fazia. Nem quando era criança nunca fiz isso, e não sei qual de nós dois está mais assustado.

" É uma pena que o tempo passe tão rápido." - Sua mão afaga meu ombro e o meu cabelo. Eu também lamente, profundamente, porém, em silêncio.

" ..."

" É uma pena que tudo seja uma grande despedida, não é?" - Eu sei no que ela está pensando. Está se lembrando da sua doença que quase a matou e que me fêz ver o quanto a amava e precisava dela.

" ..."

" Eu queria que você o houvesse conhecido. Eu queria Ter aprendido aquela música que Suichi cantava para você, mas era tão estranha..."

Ergo o rosto na sua direção, e me espanta ver que Shiori comtempla o vazio, ainda inconscientemente fazendo um terno carinho em meu ombro, pensativo, intrigada e intrigante.

" Nunca ouvi nada igual antes de ele cantá-la para você. Tão triste."

Penso de novo em sua voz dizendo meu nome, falando dos meus segredos com tanta e tão delicada autoridade, tanto conhecimento. Eu sou um labirinto de paredes derrubadas para ele.

" Parecia ser uma música mais velha do que este mundo. Mas era tão linda... Era como se... ele se lembrasse de algo... que nunca viveu, recordações que não pertenciam ao meu Suichi, o homem com quem me casei, mas que eram dele, e que ele queria que também fossem suas..."

" ..."

" E às vezes nem eu o reconhecia. Às vezes, ele ficava tão diferente do que eu estava habituada, eu tinha ciúmes da atenção que ele lhe dava, do prazer que ele tinha de passar noites todas acordado com você no colo, olhando pela janela, no escuro do quarto e cantando mais baixo do que eu podia escutar ou entender o que Suichi falava...E de vez em quando, nessas noites, eu ia olhar vocês, pela fresta da porta... Às vezes parecia que eu estava olhando dois animais conversando, o pai... e o filhote, e isso me assustava tanto... Que uma vez eu quase pude Ter certeza... de que Suichi tinha uma cauda, como naquelas histórias que os animais do outro lado nascem em pele de gente...!!"

Minha mãe nunca falou tanto, e tão livremente. Não foi à toa que ele se apaixonou por ela. Eu também me apaixono por ela, agora, e não luto contra a vontade de interrompê-la com o pedido mais idiota e mais crucial de toda essa existência nigen.

" Mamãe." - Será que algum dia ela entenderia o quão perto da verdade está agora?

" Sim, filho?"

" ... Por favor, me abrace."

Lembro de que a primeira vez em que nos abraçamos, ela me forçou a isso, quando brigamos, e que antes, eu nunca me permiti estar perto dela, com medo, mais do que indiferença, de amar e confiar tanto em quem me ama sem nem me conhecer de fato...

... Será?
 

 

CONTINUA.....