Capítulo 11 – Noite Maldita

Yomi não vira nada da destruição que seus soldados afirmavam que viram, do gigante que foi derrubado num redemoinho de fogo negro. Não precisava ver, com aquela misteriosa visão do mundo que tinha através de seus olhos eternamente, cruelmente fechados. Ele sentiu, pelovibrar do chão, quando parou, sobre as rochas que levariam ao acampamento dos mercenários, num dos extremos ao longe do cerco feito por Mukuro ao redor da floresta. Ele somente votou o rosto naquela direção, longe demais para escutar os urros da fera, mas perto o suficiente para sentir sua força de matança. Todavia, uma outra muito mais selvagem, terrível por ser de fato uma abominação de sua natureza, a fêz calar-se. O Rei de Gandara, alí, mais uma vez o bandoleiro de anos antes, não economizou um suspiro, pensando se poderia bater-se de frente com um inimigo como aquele que destruía, num calor sobrenatural o youki distorcido e caótico de um monstro. 

Pois certo que não, já que ele já tinha problemas demais tendo somente aqueles desafetos. 

Aquele youki dominante o fêz por um momento pensar no arrogante Capitão da Guarda de Mukuro, a quem todos sabiam que ela não continha um estranho olhar. Yomi poderia ter notado isso ainda que ele não houvesse escutado de outros. Aquela ameaça de morte que recebera na sala de reuniões de seu palácio servira para confirmar uma coisa óbvia, somente.

Quando chegou ao platô das rochas, onde ainda era preciso descer por um caminho mais ou menos tortuoso até o resto da trilha para o acampamento, pôde sentir que o sol tocava seu rosto, sinal de que as nuvens do temporal evidente estavam se desmanchando. Um Dragão Negro? Somente o morto Capitão da Guarda conseguia fazer a chuva estiar, quando o Dragão Negro, aquele golpe que era toda a concentração de seu mortífero youki concentrada de uma vez, usando o metal da espada para conduzí-lo. Ninguém nunca sobrevivera aquele golpe.

E o vento que agora soprava era carregado de um cheiro de carne queimada que o fêz engolir em seco, enojado não com aquilo, mas com o que isso o fazia lembrar. Seu pecado de matar um youko.

Ele matara Kurama, o Youko, pelo fogo. Aquele mesmo ser a quem ele jurara amor e ódio eternos estava morto por vontade sua. Mas Yomi não encontrava-se arrependido. Não como qualquer outro se encontraria. Ele lamentava ainda não poder ter olhado por uma última vez naqueles olhos dourados, aquele amarelo de crepúsculo, cheio de lascívia e desejo. 

“Desejo satisfeito em braços de outros...” – Sussurrou, sem som algum, enquanto pisava duro, sentindo uma satisfação inigualável de estar fazendo aquilo de uma certa maneira ainda por Kurama, o Youko, ou o que restara dele, que vivia naquela rosa. Por ele, Yomi aceitara de própria decisão quebrar um velho julgamento, e vestir aquelas roupas de novo, tanto tempo guardadas, feito se secretamente ele soubesse o que iria acontecer...

“Até quando pretende ficar aí, Yomi? O chefe quer falar com você!” – Um youkai de pele escamosa, completamente amarela e aspecto de serpente falava com uma sombra. Os outros, que estavam mais longe, seguramente ao redor de uma fogueira e muito perto dela olhavam para ele com curiosidade, achando que falava sozinho. Riam-se dele, que ignorava os olhares. Sabia que Yomi estava lá, apesar do silêncio, entre a escuridão da mata.

“É a minha vez de fazer a vigia.” – A voz profunda de Yomi trespassou de medo e respeito os que riam, não muito dele, sem o perceberem em meio aos troncos. Eles silenciaram e chegaram mais perto do fogo ainda do que estavam. 

“Assassinos de elite não fazem vigia. Você é o único... Hah, essa é boa!! Vamos, saia daí e vá falar com ele antes que ele nos arranque o couro.”

“Hm, hm.” -Foi então que ele saiu das sombras, parecendo estar vestido delas. Aquele era o traje que vestia quando ia executar as ordens, ele era o matador preferido de Kurama, o Youko, dentro do bando, nunca deixara uma testemunha, nunca deixara um de seus procurados vivo. Com aquelas vestes de couro negro, Yomi praticamente desaparecia na noite, seus cabelos serviam bem para completar a confusão que ele causava, deixava-o muitas vezes cair desfeito sobre o rosto pálido, sobre o pescoço longo e muito branco também. Chegara a ter tanto respeito em meio aqueles lacaios sujos, aquela escória que seguia Kurama em seus saques, em suas matanças, que ele era então o sub-chefe. As ordens que não fossem daquela raposa haveriam de serem sua. E de mais ninguém. As mortes que não fossem pelas mãos ou pelo chicote dela, haveriam de serem dele. Era a única forma de estar perto dele, seguindo-o, obedecendo-o, beijando o chão que Kurama pisava. 

Era Kurama quem tinha seu nome dito com pavor em todos os pequenos reinos que formavam o Makai naquela época, mas quem fazia os grandes senhores da guerra terem medo de dormir com as janelas abertas era ele, Yomi, que matou, naqueles tempos em que vestiu negro, todos os que se atravessavam no caminho de um bando de ladrões, pulhas e falsários, enganadores, saqueadores e matadores. E principalmente, matou a todos a quem Kurama, o Youko, odiava. 

Poderia ter se suicidado se Kurama assim o quisesse. 

Poderia ter vendido sua alma, posto que ela estava perdida devido ao sangue que estava em suas mãos e também estava em seu coração. Posto que ele por completo estava perdido, entregue a humilhações que nunca imaginara, suportando-as todas com prazer. 

Seu rosto estapeado, sem motivo e por motivos ridículos. Seu nome dito com desdém. Suas palavras desfeitas na frente de todos. Seu desejo aceso para depois ser renunciado. Seu amor mantido e depois destruído. Seu orgulho sendo pisado. Ele todo, sendo pisado. E permitia-se tudo isso, por vontade própria. Por amor a Kurama, o Youko, e também por ódio. 

Quando chegou à entrada da caverna, tão estreita que para entrar, ele, com sua altura, com seus ombros, precisava curvar-se e passar de lado, as pontas de pedras passando com força em suas coxas longas, quase atravessando o couro. Depois da passagem, um corredor um pouco mais largo e um sentinela que lhe sorriu e mostrou a palma da mão calejada, sinal de que poderia ir em paz. 

Yomi segurou os cabelos com uma das mãos, junto a nuca, não os deixando espalharem-se para se queimarem na lâmpada de óleo que estava acesa, pendurada a uma altura que poderia chamuscá-lo, e isso não era de bom agouro. Naquela época, os cabelos de Yomi eram muito mais curtos em comparação ao que o discreto desleixo que adquiriu, o fêz deixar que ficassem. Eram longos, sim, mas somente esbarravam seus ombros, e tanto eram leves que lhe davam ares de uma fera. Passou por alí já sabendo o que poderia esperar ver depois da última curva, quando a caverna deixava de ir para baixo, o chão com pequenas poças de água que as goteiras constantes faziam, e subia de novo, para uma galeria mais espaçosa. 

Era naquela galeria que Kurama fizera seu covil, onde recebia seus amantes, mas onde invariavelmente dormia absolutamente sozinho.Yomi entrou, escutando murmúrios, vendo singelas formas sob a luz dos candeeiros, que não eram somente de seu chefe, espalhadas pelo chão, sobre a esteira, sobre a tapeçaria roubada que também forrava o chão. A garrafa de saquê virada, a bebida derramada no chão. Yomi não se surpreendia com nada do que poderia ver alí. 

Desde quando obedecia as ordens de Kurama, o Youko, entrava naquela alcova, mal iluminada, o ar cheio de fumo de ervas afrodisíacas, vapores de chás fortes e estimulantes, suores e suspiros de excitação. Ele não era indiferente a nada disso, muito pelo contrário, certamente ninguém que entrasse alí era afetado mais do que Yomi por todas aquelas impressões, sensações... Mas nada era tão devastador, nada o deixava mais fora de si do que ele mesmo, Kurama, o Youko. 

Ele sempre estava, quando naquele compartimento, quando dedicado a seus prazeres, com seu corpo longo e pálido solto dentro do quimono muito branco que vestia, o nó afrouxado, seus amantes, mais de um dou mais de dois, às vezes muitos, outras vezes, mesmo sozinho, permitindo que eles metessem suas mãos curiosas pelas fendas do tecido. O que Yomi não teria dado, naqueles anos, para ter suas mãos sobre aquela pele?

Um dia ele dissera a si mesmo que poderia dar um olho por isso. Ah, se ele soubesse que esses desejos custariam muito caro... 

Quando estava alí, em pé, assistindo calado aquele pequeno espetáculo de luxúria, Kurama, o Youko, olhou-o por longos momentos, calado, somente sorrindo, seus olhos de crepúsculo também sorrindo. Ele beijou os lábios de um de seus amantes e voltou-se para Yomi:

“Eu sabia que não ia se negar a vir.” – Ele riu baixo e beijou os lábios de um outro belo e jovem youkai que estava esparramando-se a seus pés, suspirando seu nome.– “Não interessa o quanto você demora, você sempre vem.”

“Isso é tudo?” – Disse, em resposta, sabendo a qual perigoso jogo aquela conversa inicialmente inofensiva o levaria. De tanto que era vítima daquela perversão, conhecia cada maneira de ser introduzido a ela. Tantos anos de amor e ódio dedicados aquele desgraçado, dando sua vida, sua morte, corpo e alma, e era apenas isso o que poderia esperar, mesmo sabendo com todas as suas forças que Kurama não poderia lhe ter apenas desprezo e aquele desejo terrível que somente Yomi poderia satisfazer. 

“Você sabe que não.” – Kurama falou, sem deixar de sorrir, mordendo o lábio, perverso como somente ele era naqueles anos de glória. Ele sabia da força de sua beleza, sabia o quanto cada gesto seu tinha poder sobre a vontade de Yomi, e sabia o que seu subchefe faria por uma migalha de amor. Ambos sabiam disso. Sacudiu suas franjas prateadas, sedosas, cintilando no amarelo das lâmpadas de óleo, enquanto se deixava escorregar, da liteira para o chão, sobre os tapetes, onda se deitou entre seus amantes, o nó de seu quimono terminava de ser desfeito nas mãos ávidas deles.

“Eu não sei de nada.”

“Você sabe dos meus desejos, e para você, eles devem ser tudo, Yomi.” – Já não sorria, suspirava. 

Seus amantes puxavam agora o tecido estampado da túnica por debaixo do obi branco, revelando sua pele inteiramente. Yomi baixou os olhos, seu rosto longo e branco, continuava sereno como antes, mas um rubor corava seus lábios, agora. Ele olhou para o corpo de Kurama, o Youko, enquanto este lhe falava, a voz falseando, alternando-se de suspiros e gemidos:

”Eu gosto quando você me olha assim, Yomi. Não! Não se mova, não se atreva a me contrariar. Fique assim mesmo, olha para mim, Yomi. Olhe bem nos meus olhos.”

Odiando-se, ele fazia exatamente o que o líder do bando mandava que fizesse, era como se ele tivesse poder até sobre seus pensamentos. A impressão que tinha era que Kurama sabia até de seus mais secretos pecados e desejos.

“A sua alma me pertence, e tudo o que há nela também.” – Ele disse, após um longo silêncio, seus olhos cerrando-se, um dos jovens youkai ajoelhando-se entre seus joelhos, esfregando-se em seu colo, as costas contra o seu peito, seu corpo todo nu no meio das roupas espalhadas. 

Humilhante saber que não poderia deixar de se afetar com o cheiro dele, que se sobrepunha a todos os outros, pior ainda igualmente saber que também era desejado. Era o seu nome que era suspirado, logo alí, no chão, aos seus pés, quando ele via Kurama, o Youko, segurando com muita firmeza a cintura do youkai ao mesmo tempo em que outro, que estava ao seu lado enterrava seu rosto em seus cabelos prateados, quase brancos naquela luz. Ele chamava seu nome, jogando a cabeça para trás, quando penetrava o jovem, puxando-o para si de uma só vez, fazendo-o ficar de quatro no chão, ignorando seu grito. Ele também não deixava de olhar Yomi muito fundo, na cor de carne de seus olhos.

“É meu até o seu amor... O seu desejo... Mas nunca será seu o meu corpo...” – Ele sussurrou entrecortadamente, enquanto arremetia, indiferente aos pequenos e curtos gritos que arrancava de seu amante a cada vez que se lançava dentro dele, indiferente também ao fio de sangue que corria pelas coxas do youkai ajoelhado, que contorcia-se inteiro, os outros esfregando-se em Kurama, segurando com firmeza seus cabelos aos punhados, cheios de um desejo muito selvagem, disputando seus beijos, as fêmeas passando com força as unhas em suas costas lisas e nuas, e um outro youkai segurando firme seus ombros fazendo ele se inclinar para a frente. 

Yomi fechou os olhos para não ver aquele tal, qualquer um, não importava, fazendo seu o que ele sempre desejara. Mas então, o grito o fêz olhar a cena a sua frente. Sem sair-se do jovem, Kurama inclinara-se para frente, seus cabelos presos entre as mãos do outro youkai, feito rédeas, e Kurama chamava seu nome, arquejando, embriagado de prazer nos braços de todos aqueles, os outros tocando seu corpo por toda a parte, arranhando, lambendo, suas belezas todas parecendo muito vulgares agora, em expressões de êxtase, amando-o, amando-se entre si, amando somente a luxúria que aquele cheiro de cio lhes inspirava. Kurama chamava o nome de Yomi, chamando-o, estendendo-lhe uma das mãos, tirando-a de sobre a anca do youkai que se contorcia enlouquecido, completamente empalado por seu membro. 

Impossível ter orgulho quando até este lhe havia sido há muito pisado. 

Yomi tomou aquela mão suada na sua, com força, como se aquele gesto fosse o mais erótico de todos o que já vira Kurama realizar. E segurou-a com muita força, apertando firme, quando ela também cerrou-se, ele vendo, impassível, cheio de amor e de ódio, cada estremecimento, cada estertor, cada vibração e palpitação do corpo de Kurama, o Youko, sendo penetrado pelo outro também com violência, fazendo entre os três, entre todos eles, um grande balanço, um só ritmo de sexo e penetração, aquela mão na de Yomi afrouxando-se, os dedos tensos esticando-se, seu nome dito com tanto desejo naquela orgia debaixo dos lampiões, velas e candeeiros. Sim, ele jamais teria o corpo de Kurama, o Youko, mas este não lhe era de todo indiferente. Era a sua mão que ele segurava quando permitia que seu corpo fosse possuído, por qualquer um menos Yomi.

“Eu jamais serei seu...” – Ele gemeu, sendo sua vez de contorcer-se, dentro do youkai, e seu outro amante dentro dele, e todos os outros obtendo seu prazer de esfregar-se neles, as peles contra a sua, sua mão soltando-se da dele.

“Eu sei.”

“Mesmo assim não desiste de mim...” – Arfou, seu corpo todo vibrando de êxtase, os dentes de seus amantes fechando-se sobre sua pele, as unhas passando sobre seu peito.

“E você, desistiria de mim se eu o fizesse?” – Precisava saber, sempre precisava ouvir aquilo, alguma, qualquer palavra que significasse que Kurama não lhe era indiferente, para ter forças de suportar assistir a mais uma orgia, e mais outra, e ainda outra depois daquela, tantas mais que pudessem vir...

“Você jamais terá o meu corpo...” – Os movimentos estavam mais rápidos, seu rosto cobria-se do rubor do gozo. Yomi engoliu em seco, sem piscar, sua respiração estava pesada como se fosse ele quem estivesse nas carnes de Kurama, o Youko, como fosse possuído por ele, ao mesmo tempo. Seus olhos dentro dos seus, suas palavras cruéis, seu desprezo, seu fingido desprezo. 

O ritmo daqueles corpos tão suados, as fêmeas esfregando-se nas suas coxas longas, os youkais possuindo-se ao redor deles, pelo chão, inebriados. Yomi nunca poderia ser indiferente a ele. Seu cheiro de cio, que ele exalava quando estava cheio de desejo, tomava conta de seus sentidos também.

“... Eu nunca vou desistir de você, Yomi...” – O ritmo que eles adquiriam fazia com que suas palavras saíssem misturadas a gritos ardentes, urgentes. 

O Youkai que o possuía o fazia com violência e desejo, induzido pelo gozo que se aproximava, fazendo-o estremecer, fazendo com que as investidas de Kurama no outro fossem mais fortes ainda, e arrancando-lhe um longo gemido, e alargando a faixa de sangue que descia pelas coxas dele, desinibido pelo desejo, quase um grito, que foi o primeiro a ecoar pela alcova, até o chão parecia vibrar com aquele orgasmo, que não vinha sozinho, o grito das fêmeas, que tinham seu clímax sobra a pele de Kurama, puxando ferozes seus cabelos, ao mesmo tempo do youkai que estava dentro dele, e ele apenas sentia, sem tirar os olhos dos de Yomi, o prazer que se espalhava ao seu redor, do mesmo modo que se espalhava dentro dele aquele jorro que ele sentia transbordar de si, e descer lento por suas coxas. Mas ele continuou somente arfando, não havia tido seu clímax ainda, estava se guardando, tenso, todo seu corpo arrepiado, poderia chegar ao orgasmo até mesmo se respirasse fundo demais, e foi assim, todo ereto, excitado ao máximo, úmido do sêmem de um de seus amantes, que ele, separado dos outros, deitou-se entre eles, no chão, sobre a desordem que se fazia de corpos suados e lânguidos, e chamou Yomi com um olhar, abrindo as pernas, afastando os joelhos, seu pênis muito ereto apontando para o teto.

“Eu prefiro matar a desistir de quem eu amo.” – Ele apoiou os pés no chão, balançando seus quadris, oferecendo-se, continuando a falar com Yomi daquela forma de sempre, como se fossem apenas eles em meio aquelas pessoas muitas vezes completas estranhas para ambos. – “Venha, Yomi, isto é tudo o que terá de mim. Terá meu amor, mas jamais terá o meu corpo.”

O assassino que sujara as mãos em seu nome aproximou-se um passo, como se de fato fossem apenas eles alí, e ajoelhou-se entre aquelas longas pernas, desejando que elas o envolvessem em um mudo convite, mas isso não aconteceu, e pela primeira vez Yomi atreveu-se a dar prazer a Kurama, o Youko, suas mãos tocando forte o interior de suas coxas, esfregando as palmas em sua intimidade úmida de suor e quente de desejo, sentindo os pêlos lisos e finos em seus dedos, enquanto envolvia com ambas as mãos aquele membro, apertando, masturbando-o com força, fazendo-o gritar de dor e de prazer, afinal, comum alívio de libertação, aquela ponta vermelha vibrando quentíssima, esfregada com ira, quase ferindo, deslizando no suor das palmas das mãos longas de Yomi, e em meios aqueles tremores de prazer que pareciam uma agonia de morte, Kurama se retorceu, aflito, fechando os olhos, gritando seu nome, gozando em suas mãos, o gozo cheio e farto, respingando sobre sua barriga, encharcando os dedos de Yomi, aquele cheiro forte deixando-o tão louco que poderia tê-lo violentado alí mesmo. 

Mas em vez disso, Quando a última gota deslizou de entre aquelas coxas para o chão, Yomi levantou-se, seus cabelos desgrenhados de seu arfar meio encobrindo seu rosto. E Kurama, o Youko, quando descerrou seus olhos, meio desfalecido de volúpia, disse-lhe, sem sorrir, mas passando a ponta de seus dedos pelo rosto do amante que o havia possuído momentos antes, que estava deitado ao seu lado:

“Yomi... Eu não posso deixar de dizer... Eu nunca lhe disse isso... Os seus olhos são tão bonitos...”

Ele achou que era apenas mais um escárnio, mas não deixaria isso abafar a sua satisfação, havia tocado o Youko, dado-lhe prazer, era o seu nome que ele gritava quando estava no auge da paixão, era a ele que amava, mesmo que jamais e entregasse. 

Havia quantos anos que estavam juntos, unidos até que a morte os separasse, unidos pelo amor e pelo ódio? Muitos, não sabia quantos, mas era muitos, e pela primeira vez Kurama prendera-se a elogiar seus olhos. E permitira ter aquele privilégio de tocá-lo como somente seus amantes podiam tocá-lo. Por que agora, depois de tanto tempo? Ele não sabia.

Ele também não poderia saber que quando saísse dalí, em seu passo apressado, exultando de uma alegria pervertida, não iria muito longe, na verdade, mal teria tempo de sair da caverna e logo encontraria, saindo pelo atalho do outro lado do rochedo, aquele mesmo que possuíra Kurama, o Youko, perante seus olhos, pronto a matá-lo, arrancar seus olhos e levá-los para seu chefe. 

Mas ele não conseguiu cumprir a ordem que lhe fora dada.

Yomi chegou ao acampamento, os mercenários o reconheceram naquelas vestes, o chamaram pelo nome. Muitos alí conheciam seus feitos de assassino e de bandoleiro, o respeitaram por isso. O fizeram a par do que estava havendo, contaram dos pavores dos soldados que não queriam adentrar a floresta. Fizeram-no sentar-se ao redor da fogueira, saborear o gosto da carne de pássaro, assada, temperada apenas com sal grosso, junto com eles. Eram youkais ferozes, em sua maioria não eram melhores do que ele mesmo fora um dia. Por isso o respeitaram, por isso, o obedeceram, para espanto dos generais que alí estavam. E quando o sol terminava de se esconder detrás do horizonte, numa profusão de violeta no céu, Yomi, alí, naquele momento não mais o Rei de Gandara, ordenava que fossem feitas tochas, para serem acesas em breve. Em que o disse, expulsou seus soldados, sem armamento algum, para voltarem ao castelo, e ele? Ele buscava uma faixa estreita de couro, arrancada das amarras que seguravam as pontas das tendas, para amarrar seus cabelos, pois não perdera muitos de seus costumes de bandoleiro, e um desses dizia-lhe que ter seus cabelos chamuscados pelas brasas não era de bom agouro...

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Hiei continuava olhando-o de uma distância segura. Não gostava de que o tocassem, não sabia por que,mas não gostava, tal deixava-o angustiado e temeroso de alguma coisa. Nem sabia por que permitira-se abraçar quando vira-o chorando. Estava mais curioso agora do que temeroso, na verdade. Não parava de olhá-lo, ainda que não quisesse chegar perto daquela flor que falava e que vira apavorada, ao que também não conseguia se aproximar, em uma espécie de timidez. Kurama... este era o nome? Sim, era, ele lhe dissera, naquela sua voz tão doce, em seus modos ora ingênuos, ora selvagens, ora frios. Olhava-o de cima da árvore, escondido nas folhas, sentado nos galhos retorcidos. Via-o logo embaixo de si, as pernas mergulhadas na água de um dos lagos isolados que o rio formava, onde a água ainda estava limpa, onde as árvores não haviam morrido ao redor, tocadas pelo monstro. Estava tão triste e diferente quanto antes, olhando suas mãos vermelhas, longas, seu cabelo somente espalhado em seus ombros, não flamejavam mais, estavam molhados, sua túnica estava molhada, o melhor que havia feito para limpá-la não havia sido o bastante, colada em sua pele, quase transparente. 

“Você me escutou?” – Ele perguntou, afinal, falando com a voz um pouco mais grave que antes, por causa do choro, ou talvez fosse somente impressão de Hiei. 

“Sim, eu escutei. Mas eu não sei lhe responder isso.”

“Você pode tentar? Por favor?” – Voltou-se para cima, olhando exatamente na direção de Hiei, como se pudesse vê-lo mesmo com a penumbra do anoitecer. 

“É importante para você?”

Essa pergunta... Kurama mordeu o lábio, pensando afinal, no que era importante para ele. Sim, Shiori era muito importante. Não havia dúvida alguma. Aquilo que estava acontecendo com ele agora, de estar tão mal, seu youki sumindo... mesmo que ela não pudesse fazer nada para ajudar, não queria estar longe dela agora.

Ele fêz que sim, ansioso. Quase em seguida, Kurama, a rosa, via o terceiro olho de Hiei, aquele Jagan violeta e estranho, cintilar, brilhar no meio do escuro das folhagens. 

“Não!” – Ele disse, precipitadamente, fazendo menção de se levantar, e Hiei não imaginava a razão daquilo.

“Não é fogo.” 

“Eu sei. Mas venha para cá! Para perto de mim!!”

“Por que?”

“Por favor, Hiei!...” – Ele se encolheu mais para o lado, deixando uma parte maior da margem para Hiei ficar alí, e encolheu-se mais ainda, abraçando os joelhos, trêmulo de frio e um nervoso inexplicável, mas ainda tentando sorrir-lhe, inspirar-lhe confiança. 

Hiei não soube por que perdeu seu tempo pensando naquilo, naquele pedido tão estranho. Só iria usar o Jagan para tentar achar aquela nigen que cuidara da rosa que lhe sorria agora. Poderia ter dito algo pouco gentil, poderia ter dito simplesmente um não a sua vontade de querê-lo por perto, mas em vez disso, ele desceu do galho, num pulo, sentindo-se muito leve, mais do que nunca, em qualquer de suas lembranças, nem as que estavam nele, e nem nas que vinham agora, aos poucos, como se abrisse os cômodos lacrados de uma velha casa. 

Frio, ele olhou para Kurama por um longo tempo, analisando aquele sorriso que parecia tão inocente, e naquele observar não revelou nenhuma de suas dúvidas, e afinal Hiei sentou-se, bem distante dele, também retraído, mas sem deixar de olhá-lo ainda com aquela curiosidade de antes.

Hiei não havia se lavado, estava ainda sujo, seu quimono manchado e respingado de sangue, seu queixo também ainda manchado, mas não parecia mais ameaçador. Parecia novamente um menino e não uma fera. Um meninotão indefeso aos olhos de Kurama...

Ele mergulhou os pés na água tranqüila, as libélulas passando por perto, as borboletas que ainda apareciam em busca do cheiro de Kurama, muito mais fraco do que antes, quase não poderia ser percebido com a mesma facilidade, agora. Kurama voltava-se devagar para acompanhar seu movimento, vendo como a terra em seus tornozelos se desfazia. Ele empertigou-se e respirando fundo, Hiei fechou os olhos, concentrando-se para fazer aquilo de novo: usar seu jagan. Ele não era mais como antes, aquele aspecto de seu poder, aquela visão total que poderia ter das coisas, atravessando tempo e espaço, agora era muito mais sensível, e quando tentava, precisava de muito menos esforço do que antes, e quando sentia, quando tinha as visões em sua mente, elas eram muito mais fortes, e não vinham com a dor de antes, aquela que acompanhou-o em sua antiga vida desde quando apoderou-se do olho demoníaco. 

“Você pode ver?...” – Kurama perguntou, após um longo tempo de silêncio, em que viu somente os olhos de Hiei movendo-se ligeiros debaixo das pálpebras. Ele estava imundo, como sua pele poderia respirar debaixo de tanto pó e terra?

Mas que pergunta... o menino vestido naquele obi negro ainda guardava uma certa arrogância das capacidades de seu jagan. Aquilo não fora posto em sua testa de graça e nem sem sacrifício, ao menos isso Genkai fizera por ele, dera-lhe mais uma maldita existência, mas tirara a dor de ver através dele. 

“...Posso. O youki de Genkai está atrapalhando, está muito forte onde ela está.” – Disse, evitando seu olhar, abanando o ar para afastar as libélulas que queriam prender-se em seu cabelo muito negro e espetado, liso demais e muito leve para deixar-se cair, e então, seu youki fazia-os flamejar naquele reluzir azul. 

“Mas a minha mãe está?...”

“Preocupada.”

“Ah...” – Ele sorriu de uma forma muita aberta e muito doce. Não era mais aquela rosa selvagem, era só uma flor pálida, não havia o que temer. Hiei tentou olhá-lo nos olhos quando escutou seu riso, mas estes eram tão verdes, tão profundos quanto abismos, prometiam uma absoluta perdição, tão completa que o deixava confuso. Ele corou e desviou os olhos de novo. 

“É claro que ela está viva. Deve estar.. preocupada com você... Se é que ela se importa tanto assim.”

“Ela se importa.”

“Como você a sente?”

“Do que está falando?...” – Seu sorriso, mesmo não tendo o mesmo viço de antes, ainda iluminava seu rosto pálido, sua pele que melhorara muito pouco daquela palidez de morte de antes. Ele encheu uma das palmas em concha e derramou sobre o joelho descoberto de Hiei, fazendo-o encolher-se e esconder-se mais sob o obi. – “Não fique com medo... É apenas...”

“Chuva.”

Eles se encararam por um instante que pareceu uma eternidade. Desta vez foi a vez de Kurama sentir-se envergonhado. Hiei lembrava-se de suas palavras, ele se lembraria do seu beijo?... Como saber? Ele só sabia que gostaria muito de beijá-lo mais uma vez, e não somente mais uma. Aqueles lábios tão pequenos, ainda manchados... Aquele gosto tão doce de flor.. será que teria agora o inconfundível gosto de sangue?

“Eu quero saber se você é grato pelo que ela lhe fêz.”

“Ela me criou. Uma parte de mim, pelo menos.”

“Mas isto o faz grato?Você a ama? Lhe tem ódio? Lhe tem consideração?”

“Eu não lhe tenho ódio. Nem rancor. Ele me tirou de um pesadelo e de um sonho verde, que eu nunca mais vou voltar a sonhar... Mas eu não lhe tenho ódio...” – Ele continuava a encher a mão de água, espalhando-a pela parte da perna de Hiei que o obi não conseguia encobrir.– “E você? Por que tinha tanto rancor por Genkai? Ainda tem?”

“Você a ama?”

“Por que não amaria? Eu poderia morrer, poderia ser uma aberração. Poderei me tornar uma, e ela ainda estaria ao meu lado.” – Ele passou a mão úmida sobre a perna de Hiei, que simplesmente olhava-o fazer isso, alheio, ou distraído demais com suas perguntas, era difícil saber. Mas seu coração era tão acelerado agora quanto o de uma caça assustada, e os olhos de Kurama eram tão estranhos...

“O seu pesadelo... Era o fogo?” – Estava com aquilo atravessado na garganta havia muito, não poderia continuar segurando aquela dúvida em si. Vira-o daquele jeito, transtornado de medo, disposto a deixar até mesmo sua consciência e sua alma para escapar ao temor do fogo. Que segredo era aquele que estava agora entre eles, que o fazia silenciar enquanto esperava por uma resposta? Ele silenciava e podia escutar o pequeno coração dentro de seu peito quase explodir, tantas eram as coisas que sentia, várias e simultâneas. E aquela mão fria subindo por sua perna...

“E o seu, é não me deixar te tocar.”

Ele saltou na água, sumindo nela, fugindo da pergunta e da proximidade de Kurama. O lago agitou-se, a água agitou-se na superfície, escureceu mais com a terra que se desfez de sua pele, e o obi flutuou, sozinho. Quase não houve som quando Hiei pulou, tampouco respingos. Kurama deixou a roupa molhada, ou o que restava dela, da luta e dificuldades que havia tido com aquela fera que queria devorá-lo, pesar, livre, para baixo, por seus ombros de adolescente, quando se esticou, pronto a ir atrás dele, sem querer ainda pensando-o indefeso, imaginando todo tipo de fera tais como a que enfrentaram, se escondendo em cada sombra do bosque. Ainda tremia quando pensava naquilo, e mais ainda, não negava, quando pensava no fogo.

Colocou-se todo para frente, tentando pegar o obi que as pequenas, mínimas ondas na água, traziam para perto da margem onde estava, seus dedos resvalando nele, seus olhos passando na superfície da água escura, em busca do vulto pálido do corpo dele, temendo que ele fugisse, o deixasse sem mesmo a lembrança de um último beijo. Nunca nesta vida ele imaginara que um ser pudesse ser tão presente em sua vida. Agoras, todas as suas decisões dependiam de Hiei, não do que ele dizia, mas somente por ele estar em sua vida, e ele na dele.

Quando esticou-se mais, quase segurando a seda molhada com sua mão ainda vermelha,foi que aconteceu. Hiei surgiu na sua frente de novo, saindo da água tal um fantasma de afogado. Colocou-se de joelhos bem na sua frente, fazendo força para olhá-lo nos olhos, cheio de atrevimento, e colocando-se para olhá-lo bem de perto, seus rostos muito próximos. Seus hálitos misturando-se com um estranho reconhecimento. Seus olhos encontrando-se, prendendo-se um ao outro, irremediavelmente, completamente. 

“Se você teme o fogo, por que não teme brincar comigo?...” – Foi o que Hiei lhe sussurrou, seus lábios pequenos e avermelhados, sua brancura destacada na penumbra do crepúsculo, seu corpo pequeno, feito que de mármore, projetado sobre o de Kurama, completamente desnudo, entregue a suas próprias dúvidas.

“...”

“Por que insiste nisso? Em me tocar?... Em me salvar?...Se eu nada sou para você?...”

“...”

“Por que quando fala nunca está respondendo o que eu pergunto?...”

“...”

“Eu não sou nada para você. Por que se importa tanto comigo?”

“... É verdade. Você não é nada para mim...”

“...” – Ele olhava como se não pudesse deixar de apreender até mais do que o sentido daquelas palavras.

“... Mas também eu sinto como se pudesse ser tudo.” 

Seus olhos... Hiei olhava em seus olhos, enxergava aquele verde profundo, enxergava um abismo... mas não via seu fundo. Da mesma feita, Kurama olhava-o como se pudesse atravessá-lo com um olhar, como se soubesse que ele tinha uma alma muito mais antiga do que parecia, tão atormentada quanto a sua. E por que ele não o tocava? Por que não o beijava? Estava com o rosto tão próximo do dele que bastaria um gesto, uma mudança na dureza daquele olhar que Kurama, aquela rosa estranha, teria feito-o. Do que Hiei poderia ter medo se sabia, se tanto havia visto-o tentando salvá-lo, que ele não o machucaria?

Um arrepio de frio fêz com que Kurama estremecesse, seu corpo cedeu mais, seus ombros soltos, desnudos, deixaram seus corpo quase cair no próprio peso. Mas antes que o fizesse, aquele menino que ele salvara tantas vezes, como que em penitência, tomou-o em suas pequenas mãos, quentes como se houvesse fogo correndo sob sua pele pálida, não permitindo que caísse com as costas de uma vez sobre as raízes escuras, sobre o mato que cercava as margens. Ele o amparou, outros arrepios vindo do fundo de seu corpo, o toque de Hiei sobre si trazendo uma estranha sensação de reconhecimento. Sentiu aquele calor de suas mãos, e logo de seu corpo todo, sobre o seu, o tecido de suas roupas, molhado, escorregando entre eles, desaparecendo entre eles, entre seu corpo e o de Hiei. 

“Não diga mais nada. Não me faça promessas que não vai cumprir.”

“Não há promessa.” – Ele sussurrou, de olhos fechados, suas pálpebras tremendo, quando voltou o rosto para o lado, evitando aquele olhar que era rubro como seus próprios cabelos. 

“Diga meu nome.” – Ele atreveu-se a segurar o rosto de Kurama entre suas mãos de menino, e com uma voz que não condizia com seu rosto, profunda como o fim de um trovão, disse-lhe isso.

“Você... É uma flor de fogo... Eu vi o seu fogo.”

“Meu nome... Diga meu nome!” – Ele suplicou num fio de voz, como se daquilo dependesse toda sua existência.

“Você é a flor da agonia... Hiei.” – Suspirou mais uma vez, levando os braços para em torno daqueles ombros estreitos, como se fosse Hiei que ainda precisasse ser cuidado e protegido. Ele afastou os joelhos lentamente, entrelaçando suavemente as suas pernas longas com as dele, sentindo aquele calor entre suas coxas, mais uma vez, como quando o beijou uma primeira ver. 

Mas Kurama não fêz mais nada. 

Quem fêz foi Hiei, soltando seu peso sobre o corpo daquela criatura que misteriosamente parecia ter uma alma, sem se importar, pela primeira vez desde que acordou naquela caverna imunda, com os rumos que sua existência tomava,com o seu medo de se permitir tocar, com as mesquinhas preocupações de sua antiga vida. Ele encostou sua testa molhada sobre a de Kurama, cerrando seus olhos, e somente sentindo, aprendendo no meio daqueles braços a escutar palavras a princípio sem nexo, mas que formavam o eco do murmúrio silencioso que sempre estava presente na mata, quer quisesse ele escutar ou não. Era o que Kurama fazia também, naquele transe, naquela respiração em suspenso. 

Então, Hiei o beijou. 

O fêz tão doce e desajeitadamente como Kurama o fizera naquela noite que parecia-lhe distante e nebulosa. E por este mesmo tanto aquele beijo foi o mais delicioso de todos... Nunca antes os lábios macios de Hiei pareceram-lhe tão doces, mortíferos. Ele se largoua tudo o que poderia acontecer. Poderia ser devorado, assassinado, possuído, do que lhe importava, se morreria naqueles lábios que tanto o enchiam de desejo?

Todavia, por mais que aquele gesto aquecesse-o por dentro, por mais exultante que pudesse estar, cada vez pior se sentia, aquele frio que cortava seu corpo em calafrios ferozes continuavam. Quando Hiei afastou os lábios do seus, quando fêz-se entres eles aquele finíssimo fio de saliva, ele sentiu-se tremer mais forte, e o toque em seu corpo, antes tão delicioso, agora era insuportavelmente doloroso, e isso o fêz afastá-lo imediatamente.

“Está vindo!...” – Ele dizia-o com uma certeza repleta de um temor inexplicável. Kurama tentava desesperadamente respirar, suas mãos puxaram mais ainda suas roupas para o lado, ofegando então com desatino.

“O que?...” – Hiei segurava seu rosto, seu corpo desejando aquele toque e aquele aconchego morno entre eles, aquele calor que sempre desejara mas nunca soubera nomear.

“Ele está vindo!... ele quer o meu sangue... ahn...”- Gemeu longamente, levando as mãos à cabeça, cerrava os olhos com força, e Hiei viu, chocado, que aquela agonia não lhe trazia dor. Kurama estava sorrindo de uma maneira que nunca vira antes, e suas palavras... ele falava de dor, da dor que viria, como se não fosse mais aquela rosa quem falasse, como se não mais se lembrasse quem era Hiei. Aquelas palavras não eram dele. Ele dizia um nome que não era o seu. – “... ele deseja o meu corpo... pelos deuses, vai me enlouquecer ... aaannh... fogo!! Está dentro de mim... a morte está dentro de mim... Fogo!...”

Eram derradeiros gemidos de prazer. E em meio a eles, Hiei escutando-os, ele nada compreendeu. Aquelas palavras, o que quer que significassem, eram parte de um passado que Kurama fazia questão de manter-lhe como um segredo. E o nome que ele dizia, era tão baixo, somente um ruído atravessando sua garganta. 

“Rosa... eu estou aqui!” – Hiei falou-lhe, erguendo-se sobre os joelhos, olhando para o corpo abandonado aquele espetáculo de sensações, debaixo do seu.

“Hiei!...” – Ele chamou-o por uma primeira vez agora, como se fosse aquela voz profunda o único elo que não permitia-lhe afundar-se de vez naquela loucura de seu delírio, tantas lembranças juntas, tanta dor... e tanto prazer, aqueles chifres que reluziam diante das trevas em seus olhos fechados. Olhos. Olhos que ele fechara para sempre. Olhos nos quais ele nunca poderia ver a luz de um perdão...

“Kurama! Abra os olhos! Por favor, abra os olhos!!”.

Ele obedeceu, lançando os braços para os lados, num último debater-se naquele chão selvagem. A rosa que olhou-o nos olhos então, não foi a mesma que o beijou, não foi a mesma que o salvou tantas vezes. Era a mesma que temia enlouquecer de tanto pavor, mas não havia fogo. O único fogo que Hiei viu foium lampejo incandescente, no fundo de seus olhos verdes como escamas de serpentes.

“Hiei! Não deixe que ele me leve! Eu tenho tanto medo... de querer ir!” – Ele ofegou, seu peito subindo e descendo, vendo com alívio que não estava mais preso aquela sensação que era somente um vago eco em todo seu corpo, que se apoderara dele logo naquele momento. Hiei inclinou-se sobre ele, sem dizer nada, somente maravilhado, atormentado pelo que julgara ver. As luzes do crepúsculo brincavam sobre ele, mas não poderiam estar sobre Kurama.

Ele, a rosa, estava deitado sobre a escuridão da terra e sob a escuridão da floresta. Mas era impossível não ver, ainda que sem esforço algum, que em meio ao verde precioso de seus olhos, um rasgo abria-se no fundo deles naquele momento. Um rasgo como em dourado, uma brasa de algo muito mais forte do que poderia conter-se nele...

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Shiori encolhia-se um pouco mais entre as altas voltas, as largas bandas de madeira que faziam as raízes expostas da árvore, projetando-se fora do chão e subindo pelo caule acima, muito além da altura de uma pessoa. Não parava de rezar sem parar as antigas orações que aprendeu quando criança, quando nunca imaginaria as armadilhas que o destino lhe faria. Em seu mundo, nada disso seria possível. O melhor, e o pior, que poderia ter sido feito lá, foi feito por ela mesma. Foram as suas mãos, que ela sentia as palmas machucadas agora, depois do esforço insano que fizera de correr o mais que podia, sem rumo, cega pelas lágrimas, cega pelo arrependimento, que fizeram aquela obra do Mal – assim ela o julgara, assim ela agora o acreditava, ainda que a contragosto... –

A criatura sem alma que os deuses bem fizeram de não permitir viver até o amanhecer. E quando finalmente imaginava-se perdoada por seu erro... Alguém precisava arrepender-se em lugar dela. A flor de fogo... a semente de um demônio... eram todas palavras tão cruéis quanto as de uma profecia, e seu nome era repetido naquela profecia como a mulher que abrira a caixa de Pandora.Não queria por nada de todos os mundo ter de estar passando por isso, por tamanho tormento. Se houvesse um modo de voltar no tempo, fazer as coisas diferentes... Não, ela não imaginava sua vida sem Kurama, era impossível. E pensava nele com todo o amor de mãe que lhe dispensara, desde o instante que permitira-o chamá-la de mãe. Mas ao contrário de quando a estufa foi incendiada, tinha certeza de que nunca mais voltaria a vê-lo.

Ele não voltaria... ela vira o fogo erguer-se para o céu, as nuvens afastando-se com a lufada de ar e calor de encheu o céu. Tanto horror. De repente Shiori sentia-se tão velha, tão incapaz, tão... humana. Como se atrevera a aceitar o convite tentador que Yomi lhe fizera? Quem era ela para aceitar tratos com criaturas que nem sequer eram humanas? Deus... aquilo não deveria ser a vontade de Deus, ela mesma O desafiara. Ela criara vida. Uma vida que não pertencia a nenhum dos mundos... Shiori não parava de repetir aquelas palavras:

“Eu plantei a semente de um demônio...” – Nada a fazia parar com aquilo, nem o soluçar, nem a inevitável lembrança do que Genkai fizera. Preferia morrer, matar-se a fazer o que a louca Genkai fizera, arrepender-se àquele ponto, destruir daquela forma o que construíra. Era vida afinal! Ainda que Genkai houvesse gritado-lhe tantas vezes antes de... quando horror, que visão infernal foi a que tivera... Shiori queria acreditar, que tanto seu filho, Kurama, quanto aquele menino que erguera a espada contra a Doutora Genkai... tinham alma. 

Totalmente mergulhada em si mesma, não entendia o que estava havendo agora, se os híbridos estavam mortos, todos, se a fera que Genkai erguera para matá-los, estava morta também. Não sabia o que estava fazendo que ainda sentia a dor em seus joelhos e palmas esfolados, que não estava morta também. Mas o cheiro de sangue traria a correção de mais este erro, como diria Genkai. Se o que fizera fora um erro, talvez aquela fosse uma solução. Exilada de seu mundo, traidora de Deus, das leis dos homens e das leis Dele, traidora de sua palavra, prometida a Yomi, anos antes... traidora de seu próprio filho, o primeiro... e de Kurama, o último... 

“Eu plantei...” – Ela afinal engasgou-se em suas próprias palavras. Estava tão escuro entre as raízes, entre o chão revirado da floresta, pássaros raros e noturnos gritando vez ou outra. Mentira. Estava mentindo para si mesma, mais uma vez. A noite naquele mundo era silenciosa e sem vida. A floresta toda parecia morta depois do que vira, depois do que seu coração atormentado acostumava-se a crer... – “... aquela semente!...”

Os animais tão ferozes que os soldados de Yomi sempre lhe diziam que infestavam as florestas do Makai deveriam aproximar-se logo. Aquele era o único pensamento que a aliviava... Não tinha coragem de se matar, tentar ter dignidade, Shiori só queria fechar os olhos, como fazia agora... e quando abrí-los novamente, simplesmente ver algo que não a amedrontasse como tudo naquela floresta, e saber que tudo não passara de um grande mal entendido...

Um estalo de folha perto de seu tornozelo (certamente quebrado, ou no mínimo torcido, além de arranhado profundamente...) a fêz sem querer abrir os olhos, o mais que podia, tentando se acostumar com a escuridão densa que havia sob as copas, entre o mato, e rés a terra. Prendeu a respiração, sentindo um estremecimento tão violento que poderia jurar, para todo o sempre, que seus ossos afastavam-se das juntas. 

Uma fera, exatamente tão terrível quanto nos seus piores pensamentos, tão ameaçadora quanto todas as suas culpas feitas carne, vinha devorá-la. Seus dentes branquíssimos reluziam na escuridão.

Incapaz de falar, Shiori mal articulava uma vaga réplica das palavras de Genkai antes de tornar-se aquela coisa negra e maldita, pronta a destruir Kurama e Hiei. 

Mas apesar dos dentes afiados que entrevia, apesar da selvageria de seus olhos e de sua silhueta escura e disforme, nada disso, e nada antes teve tanto poder de assombrá-la quanto a mão quase infantil, pálida e sedosa, que aquele animal estendeu-lhe...

Continua