A Rosa Escarlate
 
Por Astásia
 
 

Capítulo 4 - As Sementes do Mal



 

"Hey, menino!! Como foi que chegou até aí?? Isso não é lugar de brincadeiras!"

Olhou para baixo, com o grito do soldado. Não. Era um guarda. Os youkais da guarda da prisão olhavam para Kurama com desconfiança e fascínio. Estava quase amanhecendo, e aquela era a primeira patrulha do "depósito de pessoas". Kurama estranhou que estivesse sendo visto por outras pessoas senão sua mãe. Gostou da sensação de ser alvo de atenções, mas nem um pouco da forma como um dos youkais olhava-o, como se o medisse, de alto a baixo, quando ele ficou de pé no galho. Pulou para o chão, simplesmente, respondendo que apenas havia subido e nada mais, e que não estava fazendo nada, afinal.

Claro que sua aparência chamou muita atenção, até pelo fato de que seu cabelo não parava de flutuar, mas eles eram todos youkais, e extravagâncias eram comuns a suas naturezas, chifres, escamas, orelhas, caudas, olhos estranhos... Mas poucos que aqueles soldados já haviam visto em toda a existência eram tão belos e delicados.

Kurama aproximou-se deles pronto para perguntar sobre Genkai, mas duvidando de que fossem lhe dizer a verdade. Por que diriam, afinal? Ela era uma criminosa...

"Você está perdido, menino? Não devia estar andando sozinho nesta floresta ao redor daqui." - Um deles disse, com olhos de cobiça. Um misto de nojo e vaidade apossou-se de Kurama. Aquele youkai era repugnante, um aspecto de lagarto em formas quase humanas, mas desejava-o, e de súbito entendia aqueles olhares sobre si. Estavam sozinhos. Três guardas e ele, num pátio vazio da prisão, debaixo de uma velha árvore seca e morta.

"Não estou perdido, estou com minha mãe, mas não sei onde ela está. Eu... Quero ver uma pessoa que está aqui." - Forçou um sorriso e forçou-se a ficar no mesmo lugar e não fugir, e a encarar a cobiça nos olhos deles, crescente.

"E onde ela está?... Sua mãe."

"Longe daqui, eu acho."

Um deles, o mais alto, rodeou-o por detrás das costas encurralando-o, mas também olhando atentamente as formas delgadas sob o tecido da túnica que quase esbarrava no chão, longa, mas igualmente leve, mostrando a harmonia de seu corpo perolado. O youkai quase parou de respirar ao adivinhar o contorno das costas e das nádegas, o vácuo da cintura.

"Hmmm... Você cheira bem, menino. Aposto que não está com sua mãe coisa alguma, e sim é um daqueles escravos de afeto se escondendo, é muito bem tratado para ser livre! Segurem ele!!"

No mesmo instante, os outros avançaram, segurando seus braços, e aquele réptil em forma de gente tentava passear sua língua fria e bipartida pela maciez do rosto de Kurama, contraído de raiva, forcejando para sair daquele abraço.

"Não!! Me soltem!!... Não!!" - Seus gritos eram inúteis. Sabia exatamente, com um conhecimento estranho ao que havia visto até agora, o que se seguiria a isso, o que aqueles youkais queriam dele. Queriam seu corpo, eles também viam a beleza cativante que ele mesmo vira no reflexo da água daquele lago escuro...

"Depois, menino! Primeiro, comporte-se, fique bem calado..." - Aquele mais alto pousou um dedo sobre seus lábios, e Kurama sem querer, obedeceu. Forcejou de novo, mas não conseguia se apoiar para subir, erguer-se, e nem se concentrar tanto para isso, mas conseguia se concentrar para outra coisa... E a raiva que sentiu quando percebeu que o membro ereto de um dos guardas se amassava contra sua coxa, foi suficiente para fazer sua energia ferver. - "... que talvez... você acabe gostando disso, se é que já não gosta!"

Mas aquela sensação, quando o hálito quente atingiu sua nuca, depois que o youkai tornou a rodeá-lo, e a perspectiva de ser aquilo que em seu sonho lhe dera tanto prazer... Quase tudo isso o distraiu de seu medo e do ódio de ser acuado. Mas não voltou a tentar se soltar. Deixou-se dar ao perigo de soltar um suspiro quando suas coxas foram acariciadas pelas dele, longas quanto as suas, mas vestidas no couro do uniforme de soldado. Dentes morderam delicadamente sua nuca e Kurama pestanejou. Seu corpo era sedento de sensações, de prazer. Aquelas carícias brutais satisfaziam sua sede...

"Eu não disse que você ia até gostar?... Se for intocado, nós poderemos... quem sabe, ficarmos mais amigos depois de hoje..."

"Aaaahh, sim... Não duvide... Nunca." - E Kurama atirou a cabeça para trás, concentrando o mais que podia a energia que descobrira como usar naquela noite, direcionando-a em um rumo só. E o gemido que escutou lhe encheu de mais prazer do que o toque do youkai na sua pele virgem.

O youkai tombou sem cair, e os braços de Kurama foram largados imediatamente que os outros dois notaram o sangue se espalhar no chão. Então, suas mentes confusas e apavoradas concluiam que o gemido profundo não era de prazer, mas sim o último suspiro de quem vê a morte pelos espinhos de uma rosa. Espinhos que se projetaram na forma de afiadas raízes que vararam as pedras do calçamento do pátio. Ficaram um tempo indeterminado se entreolhando, os grandes olhos, infernos verdes, que eram os de Kurama, a rosa, fascinando os guardas, fazendo-os desejarem tocá-lo, mas a morte dependurada naqueles galhos negros, bem detrás de sua costa, os fazia desistir. Havia um estranho desejo naqueles olhos, não o que queriam ver, mas o que rezavam para não encontrar.

Desejo de matar.

Aquele belo menino era um animal sedento de sangue.

Aquela forma de manipular plantas... Típica de youkos. Mas aquelas formas delicadas e frágeis... típicas de nigen. E o cheiro suave que seus cabelos flutuantes exalavam... Rosas.

Bastou que Kurama desse um passo a frente, nada ameaçador, realmente, que os guardas desataram a correr e gritar por socorro. Voltou, por acaso, um olhar indiferente ao youkai morto. Idiota. Atrevido. Bastardo que queria-o debaixo de suas botas imundas. Mas Kurama sabia que não nascera para pertencer a ninguém, que era livre, dono de si e de seu corpo. Lembrou-se de Yomi como uma forma de afirmar isso a seus pensamentos. Apesar daquele sentimento que não conseguia nomear por ser estranho às recordações da vida do Youko e da sua, sentia que não queria ser dele. Não à força, e...

O chamado.

Deixou o corpo para trás e procurou por uma porta, uma entrada qualquer que o levasse à fonte daquela voz. Não era nada nigen ou youkai. Acercou-se de cuidados, expandindo sua percepção quando achou uma porta estreita que dava em uma sala imunda, pequena e bem escura, mas a escadaria que ia para baixo e para os andares de cima, pela outra direção, era um breu perfeito. E o sol nem havia nascido de entre as nuvens, ainda...!! Estava com sua fome de planta reclamando de novo. Precisava de luz do sol, pouca, que fosse, mas ela iria servir. Seus pés descalços sentiram o lodo e o limo sobre as pedras do chão, mais surpreendentemente sujas que as do pátio de fora. Não se deteve do receio de descer para debaixo da terra, embora o pensamento de ser sepultado vivo fosse perturbador, e não conseguisse esquecer disso. Acabara de matar um youkai, mas não teve nenhuma sombra de culpa.

Estava se defendendo, somente.

E não era novidade nenhuma fazer aquilo, pelas lembranças deixadas pelo Youko...

Aquilo até que lhe deu um certo prazer.

E continuou descendo as escadas, relutante na treva compacta que começava a tomar consistência após a curva da escadaria. Não seguiu para as torres, de repente, teve um medo súbito e inexplicável de torres... Quando começava e mergulhar nas trevas, começava a ouvir também sons bem reais, gemidos e lamúrias dos prisioneiros. Risos de loucura e pedidos de piedade. Recuou num pulo e ficou hesitando. Onde estavam os outros guardas? Seu youki os percebia ao longe, para cima, nas galerias acima daquela ante-sala suja. Embaixo, como tudo que é enterrado, todos estavam esquecidos.

Não podia demorar-se nem hesitar. O chamado era mais urgente. Precisavam dele alí. Eram vozes de... Mas como, numa escuridão como aquela?...

E aqueles guardas que haviam fugido... Deveriam voltar logo com reforços.

"Filho!! Kurama, por Deus, você está bem!!"

Virou-se, assustando-se em escutar a voz de Shiori. Estava irreconhecível, ofegante, suja, e pelos rasgos nas mangas de seu quimono que um dia foi branco, soube que ela estava correndo na mata, mas fugindo do quê?...

"Mamãe!! O que houve?!"

"Não pergunte agora!! Não temos tempo!!!" - Ela veio correndo e tomou a mão de Kurama na sua, seu cabelo finalmente solto do eterno coque, desgrenhado em torno do rosto transtornado. Segurou a mão de sua amada rosa e apertou-a, enquanto com a outra tentava se livrar dos farrapos , do excesso de tecido do quimono, tudo muito rapidamente, embora que tremesse tanto. - "Eles já sabem que não estamos mortos! Eles estão por toda parte!!! Vamos, venha!!! Eu conheço o caminho!!!" - Gritou, levando-o consigo, perdendo-se nas trevas de paredes cintilantes de sal.

Desta vez, Kurama não hesitou antes de desaparecer dentro dela.
 
 

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Descendo inúmeros degraus, nada demorou para que ambos percebessem o fulgurar das tochas seguindo-os pelas escadas abaixo, quando olhavam para trás, e junto com a luz das tochas, o som distante todavia presente e assustador das ordens...

"Olhem por todas as galerias! Vocês! Vão para as torres! Quero guardas em torno de todas as saídas!!...!"

Mas não paravam de correr pelos degraus sujos e escorregadios. Tilintar de espadas, passos duros das botas, nada deteve Shiori e seu filho. Ela corria na frente, tirando forças do nada e se fazendo empurra mais pelo medo do que por coragem. Não queria ver seu sonho morrer, ver sua flor tombar morta, de um caule partido por seu fracasso. A imagem de uma borboleta esmagada antes de abrir as asas não saía de sua mente. Não, se Kurama fosse pego pelos soldados, se os youkais conseguissem, ele não seria morto. Talvez fosse mais feliz do que nunca se isto acontecesse, no entanto, ele era um botão, ainda não uma rosa adulta... E ele sobreviveria a isto?

Kurama ainda segurava firme sua mão, obedecendo quando ela mandava que a não a largasse por nada. Passavam por galerias iluminadas por uma única lâmpada de azeite, com as celas abarrotadas. Os gritos vinham de lá, e o corredor entre os dois lados das grades dos calabouços era tão estreito que era impossível passar sem quase ser pego pelas garras, e mãos e tentáculos dos prisioneiros.

O fedor era nauseante,, cada vez pior quanto mais a luz perdia a intensidade, e tudo ficava mais negro, o chão encontrado por acaso sob os pés, engordurado.

Kurama tentava expandir seu youki, uma forma de se proteger, entender as formas do lugar onde estava, mas tudo que conseguia descobrir era que sua mãe o levava pelo caminho certo, rumoi ao chamado impossível nas trevas... e que nenhuma planta brotava naquele lugar.

"Você também sabe, mamãe?"

"O quê?"

"Eu estou sentindo aquilo de novo!"

E estava mesmo.

Sentindo-se cada vez mais próximo. Sentindo que alguém ia morrer. E que os guardas estavam indo pelo outro lado do labirinto, quase afastando-se deles, mas ainda os procurando.

"Não temos tempo!! Temos de achá-la!" - Shiori sentia seu coração quase explodindo, o medo a fazendo estremecer e quase cair. Queria sumir dalí. Mas tinha de achá-la, ela tinha como salvar sua rosa caso o pior acontecesse...

"Genkai!!" - Tentou gritar, mas o grito morreu em sua garganta.

"Genkaaaii!!!!!"- Tornou, mais forte, agora. Repleto de urgência.

Kurama não entendia . Sua mãe gritava, esgueirando-se , esmurrando as portas das celas inutilmente. E ele... Seu youki expandido ao máximo não dizia além de uma única coisa.

Havia chegado ao lugar certo. A lâmpada na mão de Shiori tremia junto com ela. Sentia toda sua pele antes tão translúcida e sedosa completamente grudenta e sentia-se sufocado com o ar viciado, quando estacou na porta da última cela da galeria. Parou e deteve numa suave firmeza que Shiori se desesperasse. Ele se soltou dela e pôs as duas mãos sobre a porta de ferro.

Não haviam plantas em nenhuma parte dos porões, era certo, ou não deveriam haver...

Mas haviam lá...

Eram elas que chamavam por ele.
 
 

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Genkai era sempre inquieta em sua cela no escuro total. Sabia que era manhã pela saída dos guardas da madrugada, e não era bom sinal de que o outro turno não houvesse entrado. Definia com sua audição de youkai gritos ao longe. Uma fuga? A última vez em que ouvira um estardalhaço parecido, foi quando ela mesma fugira de lá.

Seus pequenos monstros acompanhavam sua inquietação.

E de momentos para cá, tudo tomou aquele ar de calmaria de antes de uma terrível tempestade. Sabia que alguma coisa além de suas plantinhas negras escutava as ternas palavras de conforto que dirigia a elas. Percebia um youki agindo, tentando agir, falando ao ambiente ao seu redor, mas sendo perfeitamente respondido por elas, cada vez mais perto.

Genkai ergueu-se de seu tosco catre e ficou de pé ao lado de suas plantas. Aqueles sereszinhos irracionais pareciam esperar por algo, obedientes.

Ela não se conteve de dar um passo a frente,, e colocar as mãos sobre a porta de ferro, sentindo um tipo diferente de calor, atravessando-a, e tentou não se assustar de reconhecer que não estava errada de achar que uma criança escutava atrás de uma porta.

Aquela desgraçada, Genkai pensou, seu rosto maduro traindo a habitual seriedade num sorriso meio que despeitado, ela conseguiu.

Sentiu e não lutou contra o youki que atravessava o ferro e ela mesma, tocando e resvalando em tudo, até chegar até as plantas no chão de sal, cujas raízes esticaram-se tremendamente, indo para a porta, entrando pelo castilho de metal.

Agora via, maravilhada, como as mesmas raízes formaram uma teia perfeita cobrindo a porta. Via tudo na escuridão , pois estava acostumada com ela. A esperança de liberdade lhe causou medo, e ver a porta dobrando-se como se feita de papel sob a força das finas raízes movidas por um youki extraordinário, a fêz arregalar os olhos.

Nem sequer sabia o motivo de tudo aquilo. Pela primeira vez em toda sua vida não soube o que fazer quando deu com uma Shiori que não parecia e nem lhe recordava a que conhecera, anos atrás; esta era selvagem, nada frágil, uma mulher ofegante, corajosa. A antiga Shiori jamais se arriscaria tanto. Ela iluminava sua liberdade com uma fraca lâmpada de óleo. E ao lado dela, a razão de toda esta força, seu sonho e sua vida.

Uma rosa carmesim.
 
 
CONTINUA.....