Boas Lembranças


Escrito e Traduzido por Morgan D.
Parte I

Kurama deixou o banheiro resmungando uns palavrões com raiva, esfregando a toalha áspera contra a nuca ao entrar em seu quarto no Hotel Kubikukuri. Ele já havia se habituado a conviver com todos os aspectos desagradáveis de ser um demônio encarcerado num corpo humano — conter suas inclinações naturais ao roubo, manter a discrição, fingir ignorância sobre assuntos que um adolescente supostamente não dominaria, ocultar seus segredos de uma mãe muito afetuosa, bloquear a renomada luxúria dos Youkos por mais de uma década de celibato... Ele tinha conseguido superar a angústia provocada por esses anseios. Mas havia ainda um aspecto que não conseguia suportar, uma cruel alteração imposta por seu renascimento como Shuuichi Minamino que ele lamentava a cada dia de sua vida humana.

"Eu quero meu cabelo antigo de volta!" ele berrou, jogando a toalha com fúria sobre a cama.

Do peitoril da janela onde se empoleirava, Hiei pareceu nem notar a presença de Kurama no quarto, a não ser por um rápido arquear das sobrancelhas. O Demônio de Fogo continuou admirando a floresta e a praia distante lá fora, sob os raios de sol que se esparramavam preguiçosamente sobre a ilha.

Kurama não esperava nenhuma reação dele, já que não havia recebido nenhuma nas outras vezes em que se queixara sobre o seu cabelo na presença de Hiei. Apenas uma vez Hiei agraciou-o com algum comentário, grunhindo qualquer coisa como, "Youko vaidoso, ningen idiota!" muito baixinho.

Sentando-se na cama, Kurama pôs-se a correr os dedos pelas mechas úmidas, tentando desfazer a confusão de nós que caia sobre seus ombros. Ele tinha decidido deixar o cabelo crescer numa tentativa de recuperar um pouco do seu antigo charme e da beleza exótica pelos quais Youko Kurama era famoso no Makai. No entanto, esta nova cabeleira era muito diferente dos fios suaves e sedosos que pareciam ganhar vida ao serem soprados pelos ventos sombrios de seu mundo natal. Poucas vezes ele havia tido problemas pra pentear seu cabelo prateado naquela época, pois aquele podia enfrentar chuva, ventania, água do mar, ou a mais complicada luta, sem se embaraçar em nós horríveis como os que as grossas mechas vermelhas sempre arrumavam.

"Eu devia cortar tudo de uma vez," bufou, sabendo que jamais o faria. Embaraçado ou não, era um cabelo bonito e Kurama estava orgulhoso dele. E com certeza ele não daria esse prazer a Hatanaka-san, o... ahn... "namorado" de sua mãe. Ele não tinha qualquer queixa de verdade sobre o homem — ele parecia honesto e respeitável, mesmo que meio antiquado, e se importava sinceramente com Shiori — mas seus comentários engraçadinhos sobre seu longo cabelo ruivo, sobre o modo cuidadoso com que Kurama se vestia e sobre seus gestos educados sempre o aborreciam. Alguns humanos eram tão tapados às vezes...

Depois de uma centena de escovadas a nuca de Kurama doía muito, e não poucos fios haviam ficado presos ao redor dos seus dedos, mas pelo menos seu cabelo parecia finalmente livre dos nós mais feios. Mas ele ainda tinha que tentar o pente...

Pelo canto do olho, ele viu Hiei mover-se de sua postura contemplativa. Trouxe uma perna para mais junto de seu peito, enquanto a outra balançava solta alguns centímetros acima do chão. Kurama notou como o Jaganshi segurava a katana com o punho frouxo, e compreendeu que, em comparação com a tensão brutal pela qual ele passara naquela ilha terrível, Hiei estava bastante relaxado agora.

E ele certamente merecia isso. Todos eles mereciam. Afinal, eram os novos campeões do grande Torneio das Trevas. Custou-lhes demais, e nenhum deles seria o mesmo novamente.

Um sorriso travesso cruzou o rosto do ruivo. Quão mais relaxado o Demônio de Fogo seria capaz de ficar? "Hiei, você pode pentear o meu cabelo?"

Suas palavras ainda pairavam no ar quando a katana caiu no carpete com um baque surdo. Ah... tão relaxado assim?

"O quê?!" Hiei sentou-se de costas para a janela para encarar o Youko. Kurama não tinha certeza da verdadeira essência do redemoinho de sombras que ele podia detectar nos olhos de seu amigo, mas o simples fato de que ele era capaz de enxergar a confusão do outro era suficiente para provar o quanto Hiei havia baixado a guarda naquele breve momento de paz.

"Meu cabelo tá todo embaraçado de novo. Me ajuda?"

Hiei fungou, pisando rapidamente no punho da katana, fazendo com que a espada pulasse no ar num arco gracioso, aterrissando diretamente na palma de seu dono. "Eu te ajudo, claro," disse ele, postando-se em posição de ataque.

"Larga essa coisa!" Kurama usou o pente para "cruzar espadas", sorrindo brincalhão. "Ou eu faço um monte de cachinhos no seu cabelo."

"Queria ver você tentar." Mas não havia um desafio real no resmungo de Hiei. Como prova disso, o youkai se aproximou lentamente da cama, largando a katana sobre os lençóis e sentando-se às costas de Kurama. Dedos hesitantes correram pelos fios avermelhados, e Hiei apanhou o pente com sua mão enfaixada. "Tá ensopado," queixou-se.

"Esqueci o secador em casa."

"Hn." Num movimento brusco, Hiei passou o pente pelo cabelo molhado.

"AI, AI!" Kurama gemeu de dor. "Vai com calma, Hiei! Assim você arranca a minha cabeça fora!"

"Ia ser bem mais fácil com a katana." Mas a tentativa seguinte foi bem mais suave, quase dava cócegas. "Tá parecendo um ninho de rato."

"É? Então vamos falar desse seu cabelo espetado..."

Hiei não respondeu, focando sua atenção em sua nova tarefa. Kurama sorriu, seus pensamentos flutuando sobre as ondas de calor provocadas pelo toque gentil do Demônio de Fogo. Hiei estava surpreendentemente relaxado, comparando-se com seu jeito lacônico de sempre, como se estivesse cansado demais pra manter a fachada sisuda.

E vai ver ele estava mesmo. Dividir aquele quarto de hotel por longas semanas não deu a Hiei muita oportunidade de estar sozinho, pois Kurama esteve fora do seu campo de visão por raras vezes; longe dele, nunca. A gente se conhece por quase quatro anos, mas ele sempre pôde ir e vir quando e como quisesse, pensou o ruivo. Desta vez ele ficou encalhado comigo.

Kurama tinha esperado encrenca. Brigas, discussões, troca de insultos... Mas o mau humor do pequeno youkai nunca excedeu o normal durante aquele período. Os dois passaram muitas noites naquele quarto num silêncio confortável, Kurama com um livro, Hiei empoleirado contemplativamente no peitoril da janela, enquanto Kuwabara e Yusuke se divertiam com as meninas. Um respeitava o jeito reservado do outro, e o companheirismo entre eles pôde navegar sem ser perturbado pelas águas.

Mas...

Tem sempre um "mas", não é verdade? Kurama lamentou.

Às vezes o silêncio entre eles parecia confortável demais. Deixava o Youko pensando em alguém que põe uma colherada de açúcar no café, sem saber que aquele açúcar veio de uma plantação de cana onde garotinhos de sete anos de idade trabalham por trocados na colheita, comumente tendo seus braços e pernas mutilados pelas ferramentas do corte. Os dois demônios se aconchegavam, cada um no seu canto, mudos e confortáveis, esforçando-se em ignorar a virulenta tempestade de areia que soprava lá fora. Ao menos era assim que Kurama se sentia.

No que exatamente essa "tempestade de areia" consistia, o Youko não sabia dizer. Era só um sentimento vago, uma pálida sensação, uma leve intuição de que um segredo rondava ali junto a ele. Junto aos dois. Mas até que ele obtivesse uma impressão mais apurada do problema, Kurama não o mencionaria.

Por agora, ele iria apenas saborear a restauração daquela amizade, sabendo o quão sortudo ele era por ainda tê-la. Kurama perguntava-se se qualquer outro demônio teria perdoado uma traição como a que ele cometera durante o roubo dos Tesouros do Mundo Espiritual. De vez em quando Hiei ainda demonstrava alguma amargura em relação à coisa toda, mas nada da fúria e do rancor que o Youko esperara. Pelo jeito o Demônio de Fogo simplesmente não era o tipo de cara que guardava ressentimentos. Nem mesmo quando deveria.

Por vezes aquela abertura parcial e ausência de rancor que Hiei lhe oferecia tentava-o a se meter em jogos perigosos. Provocar o youkai era quase irresistível, tão cômicas eram as suas reações... Ele tinha aquele tipo de austeridade e de atitude orgulhosa que deixava um kitsune travesso como Kurama morrendo de vontade de pôr uma casca de banana sob os pês dele só para vê-lo escorregar. E o ruivo ainda podia zombar da sua baixa estatura, do cabelo espetado, do rostinho de bebê e da sua linda irmã caçula, e vê-lo ficar vermelho de indignação, sabendo que os rosnados malignos de Hiei não teriam nenhuma conseqüência mais grave. Em última análise, o diminuto youkai era a vítima perfeita para as travessuras de um Youko.

Kurama tinha total consciência de que algum dia ele poderia passar dos limites com seus gracejos. E o perigo fazia parte da diversão. "Que gostoso..."

"O quê? Ter um ninho de rato na cabeça?"

"As suas mãos no meu cabelo... Alguém já te disse que você é um coiffeur nato?"

"Um o quê?!" Hiei olhou-o, desconfiado. Ele já tinha sido chamado de muitas coisas na vida. Normalmente coisas nada boas. A resposta dele a tais chamamentos costumava ser rápida e definitiva.

O Youko deu uma risadinha. "Um cabeleireiro," ele explicou. Mesmo depois de tantos anos vivendo no Ningenkai, alguns detalhes da cultura humana ainda eram um mistério para o youkai. Não que ele pareça muito interessado em aprender, de qualquer forma...

Hiei franziu o cenho. "Tá falando daquele boiola com aqueles brincos ridículos que corta o seu cabelo todo mês?" Ele soou realmente ofendido. "Eu devia mesmo era cortar essa maldita juba de uma vez..."

Mas Kurama estava se divertindo demais para dar atenção à ameaça. "Não acredito, Hiei! Você andou me espionando no cabeleireiro?" Ele não precisou olhar para trás para saber que o Jaganshi estava todo corado.

"Hn. Nunca tem nada pra fazer nesse mundo miserável." A voz de Hiei parecia um bocado com a de um garoto apanhado com uma revista pornográfica no banheiro.

"Nada melhor que me assistir no cabeleireiro?" Não era à toa que Kurama adorava provocar Hiei tanto. Inari, ele é uma gracinha!

"Pelo menos enquanto eu fico de olho em você eu sei que você não está armando nada contra mim," Hiei replicou, na defensiva.

Kurama sorriu. E algumas pessoas ainda acham que as emoções de Hiei são difíceis de se ler... O ruivo não tinha nenhum problema em fazer isso. Para ele, o Demônio de Fogo era um livro aberto, mesmo com toda a sua apatia e reserva. A habitual impassividade daquele rosto angular era por alguma razão incapaz de ludibriar Kurama.

Não havia sido sempre assim, é claro. Que confusão os dois tinham conseguido armar enquanto tentavam enganar-se mutuamente nos últimos anos... Mas depois do julgamento deles no Reikai, quando ambos foram sentenciados a servir como Tantei em condicional, foi como se uma venda tivesse sido retirada de sobre os olhos de Kurama, e duas rolhas arrancadas de seus ouvidos, no que dizia respeito ao jeito de Hiei.

Na própria maneira como ele silenciava, o pequeno youkai dizia muito. E aquela gamação relutante que Hiei sentia por ele não seria mais evidente se estivesse escrita em vermelho sobre a faixa que cobria o Jagan.

Será que eu devo? A idéia já tinha passado pela cabeça de Kurama umas mil vezes. Não parecia uma boa idéia. Hiei era o único demônio que ele tinha como amigo atualmente, o único que o entendia completamente. Criaturas civilizadas como os youkos não viam problema em ter sexo com amigos de vez em quando... Atração física entre aliados e camaradas era quase tão comum ao ponto de ser obrigatório, e podia-se lidar facilmente com isso se todos os envolvidos tivessem o bom senso de não levar seus sentimentos pessoais para a cama.

Mas Hiei? Um mestiço de Koorime e Demônio de Fogo? Jovem e provavelmente inexperiente? Kurama não hesitaria em apostar até seu último fio de cabelo que Hiei com certeza levaria uma trepada casual a sério demais... e assim arruinaria aquele perfeito acordo subentendido entre eles. Não, inquestionavelmente uma péssima idéia.

Ainda por cima, Hiei não era exatamente o tipo de Kurama. Ele é bonitinho e tudo mais... atraente, daquele jeito dele... mas qual é a graça de ter um amante tão baixinho que dá até pra colocar no bolso?

Desde que iniciara sua nova vida no Ningenkai, o mais próximo que Kurama havia chegado de uma transa foi um beijo desajeitado e meio insípido roubado por uma coleguinha de classe quando ele tinha onze anos. Não que ele tivesse perdido o interesse nos prazeres da carne — longe disso. Mas aquele corpo levou longos anos até estar preparado e minimamente equipado para a tarefa... Passar pela puberdade uma vez foi um inferno... mas duas? ele gemeu para si próprio.

Aos quinze anos, ele estava agora mais do que preparado, equipado e interessado. Mas quem ele poderia escolher como amante? Uma adolescente humana com sonhos de casamento e filhos maravilhosos? Um adulto que poderia ser condenado à prisão por sedução de menores? Um profissional que não saberia nada sobre como dar prazer a um Youko, sem a menor chance de se equiparar à inventividade de Kurama? A busca por candidatos adequados havia sido infrutífera até então.

Não raramente seus instintos ansiosos petrificavam-se numa dor incômoda em sua virilha e em sua mente, especialmente durante os anos mais recentes, quando seu corpo começou a ser atacado de forma medonha por enlouquecedores hormônios. E de repente ele se flagrava observando Hiei pelo cantinho do olho, imaginando, avaliando, considerando desavergonhadamente a hipótese de agarrar um garoto para o qual ele não teria olhado duas vezes na sua vida passada.

Por outro lado, a relutância de Hiei em admitir abertamente que estava gamado por ele feria o seu orgulho de Youko. Kurama desejava ao menos ser desejado, e que a sua recusa fosse lamentada. Para seu aborrecimento, Hiei às vezes parecia quase aliviado pelo interesse não ser mútuo.

Assim, provocar o Demônio de Fogo com uma "sedução de brincadeirinha" também tornou-se um jogo irresistível para o kitsune traiçoeiro.

"Onde você conseguiu essa espada nova?" Kurama perguntou com voz suave.

"Não é da sua conta," Hiei sacudiu os ombros.

"Parece maior."

"E o que você entende de espadas?" o youkai resmungou.

Então esta é maior, o ruivo concluiu. "Um bocado. Quer que eu te mostre?"

"Não."

"Vamos lá, Hiei, deixa eu segurar a sua espada um pouquinho que eu te mostro os meus talentos."

Kurama esperava uma bronca inflamada de seu amigo pela proposta de duplo sentido, mas Hiei só deu uma de suas fungadas de desdém. "Hn. Eu é que não deixo você tocar em nada que seja meu.

Sem bronca? Nem ficou vermelho? Kurama estava desapontado. E curioso. O Demônio de Fogo estava subvertendo as regras do jogo: Kurama vê a porta entreaberta e bate com um convite velado; Hiei entra em pânico e fecha a porta. Amedrontar o aparentemente destemido youkai era a parte mais divertida do jogo.

Mas agora Hiei tinha só mostrado a língua pra ele, e deixado a porta aberta ainda, num claro desafio: "Quem tem medo do Youko mau?" Kurama franziu os lábios. Fique com medo, Hiei. Ou eu assopro a sua casinha de palha pelos ares.

"Bom, eu não ligo de deixar você tocar no meu cabelo como você tá fazendo agora," Kurama replicou, se espreguiçando. "Talvez eu devesse te pôr pra pentear o meu cabelo todo dia de manhã."

"Você não acha que eu tenho coisa melhor pra fazer do que pentear o seu cabelo?" Hiei reagiu com mau humor.

O Youko deu um sorriso. "Se você não conseguiu achar nada melhor pra fazer que me espionar no cabeleireiro..."

"Às vezes olhar é melhor que fazer."

A réplica rápida e maliciosa arrepiou os pêlos dos braços de Kurama. Virando o jogo em cima de mim, né? "Então Ningenkai deveria ser um lugar interessante pra você, Jaganshi. Há um bocado pra se olhar por aí."

"Prefiro ficar com meu olho grudado em você," Hiei falou calmamente, mas com uma ponta ardente em sua voz grave. "Todos os meus olhos."

Kurama corou. E sentiu-se patético por isso. "Mesmo?"

"Pode apostar."

Inari... A guinada súbita no jogo estava deixando o Youko francamente excitado. "E você fica me olhando o tempo todo?"

Hiei soltou o pente em seu colo, usando seus dedos roliços para desembaraçar um nó mais intricado junto à nuca de Kurama. "Não vou te dar a menor chance de armar alguma contra mim, eu já falei."

A porta estava totalmente aberta. E se eu tentar entrar de verdade? pensou Kurama, inclinando-se para trás um pouquinho, deixando a cabeça se apoiar de forma relaxada nas mãos do amigo.

"Não vai cair no sono, Kurama," foi a reposta imediata, ríspida. "Não dá pra ver o que eu tô fazendo."

Direto demais. Cedo demais. "Desculpa." Kurama se sentou direito de novo, com um sorriso amargo. "Acho que a maresia me deixou meio grogue."

"Hn."

Viu só, Hiei? Meu jogo. Você não é páreo pra mim. Entretanto, Kurama não pôde saborear a sua vitória. Ele ainda estava sozinho, com uma ereção não atendida espremida pelas calças apertadas. Mas o que ele estava pensando? Ele não estava considerando seriamente a idéia de trepar com aquela coisinha, estava? Talvez fosse bom que eles estivessem finalmente deixando o hotel. Passar tanto tempo tão perto um do outro estava dando a Kurama umas idéias estrambóticas.

Contraditoriamente, agora que o Torneio estava encerrado, ele já não estava tão ansioso por voltar para casa. "Vai entender... acho que eu gosto mesmo deste lugar."

"O quê?"

Eu falei em voz alta? Kurama encolheu os ombros. "Esta ilha. Não é barulhenta, cheia de gente, e poluída como Tóquio. Dá pra respirar sem tossir, dá pra dormir sem ser acordado por sirenes da polícia..."

"Dá pra morrer sem perceber o que te atingiu..." Hiei acrescentou.

"Vai com calma, Hiei," Kurama protestou. "As lutas estão acabadas agora."

"As lutas oficiais estão acabadas," o youkai corrigiu-o. "Por isso voltamos ao velho sistema agora. Sem regras. Sem times. Sem contagem até dez pra determinar o vencedor. Ou você está vivo quando o combate termina, ou não."

"O time continua, Hiei," o ruivo lembrou-o.

"Ah, que ótimo." O comentário saiu puramente sarcástico. "Fico tão aliviado em saber disso..." O Demônio de Fogo retomou o pente, expressando seu descontentamento com escovadas fortes e severas na cabeleira ruiva.

"Uhn... relaxa, tá?" Kurama gemeu. Isso dói! "A gente ainda está em condicional, portanto ainda estamos os dois encalhados com Yusuke e Kuwabara. Mas tenta ver o lado bom nisso tudo."

"Qual?"

"O prazer da minha companhia."

Hiei suspirou, suavizando os golpes do pente. "Você nunca se cansa de você mesmo?"

"Não com muita freqüência," riu o Youko.

"Bom pra você. Eu me canso."

"Oh..." Kurama mordeu o lábio para conter o riso. "Você se cansa de si mesmo?" Você não é páreo pra mim, eu te falei.

Mas ao invés de fechar a cara pela réplica engraçadinha, Hiei tomou-a ao pé da letra. "Não foi isso o que eu quis dizer. Mas acho que muitas vezes eu me canso de mim mesmo também."

Kurama fez uma careta. Por que eu não consigo curtir uma só vitória sobre você hoje, Hiei? "Não me surpreende... Não tem mais por que ficar nesse mau humor por causa deste lugar. Se você parasse só por um segundo com essa paranóia de que algum inimigo vai pular de repente em cima de nós, ia notar como aqui é bonito."

"Era isso o que você estava fazendo quando deixou aquele corvo de cabelo preto plantar aquelas bombas ao seu redor?" o youkai empertigou-se. "Apreciando a vista?"

Os ombros do Youko tensionaram-se instantaneamente. "Me faz um favor, Hiei. Não mencione o nome daquele psicótico nunca mais."

Hiei deu um meio sorriso. "Eu não mencionei."

Kurama revirou os olhos. "Enfim. Eu não estava apreciando a vista."

"Não era o seu tipo também?"

"Não," foi a veemente resposta.

Isso era incomum. O Demônio de Fogo dificilmente era tão direto ao tratar desse assunto. E o que ele quis dizer com "também"? Será que ele tava lendo os meus pensamentos há um minuto?

"Então você queria que os outros apreciassem a vista," Hiei concluiu.

O ruivo franziu a testa. "Que outros?"

"Sei lá. Os outros. O seu público. Você sempre faz de cada uma das suas lutas esse grande espetáculo mortal."

"Você não acha que as artes marciais podem ser belas de se ver?" Kurama argumentou.

"Elas podem ser," Hiei concedeu. "Poderiam ser. Mas você... você parece achar que elas devem ser assim."

"E daí?"

"Às vezes eu tenho a impressão de que você concordaria em morrer se achasse que seria mais bonito do que matar seu oponente." O youkai bufou. "Você é doido, Kurama. Não faço idéia de como você conseguiu sobreviver por tanto tempo. Você ficou dançando com aquele cara e as bombas dele e as suas plantas... eu me senti como se estivesse assistindo a um peepshow."

O Youko voltou a cabeça de leve para ver o rosto do pequeno youkai. "Te deixou excitado?"

"Não," Hiei replicou com igual veemência. Puxando o cabelo vermelho, forçou Kurama a olhar para frente outra vez. "Fica quieto. Não dá pra pentear o seu cabelo assim."

Aonde a gente vai com esse papo? Kurama perguntava-se, apreensivo. "Acho que você está me dando crédito demais pelas minhas habilidades, Hiei. Karasu foi um inimigo terrível. Eu dei o melhor de mim na luta... e por um momento eu achei que não seria o bastante."

"Ele te assustou," o youkai acusou.

"Sim." Kurama não havia contado a seu amigo sobre aquele encontro em um dos corredores do estádio, ou sobre as palavras de amor e morte enunciadas pelo demônio alto de cabelo comprido, preto e liso. Ele tinha certeza de que Hiei não o entenderia de qualquer modo.

"Então por que você não mandou tudo o que tinha pra cima dele assim que a luta começou? Por que ficou lá brincando com ele?"

"Por que você ficou brincando com o Bui antes de usar o Kokuryuuha?" Kurama rebateu. "E quando usou, por que não absorveu de uma vez o Dragão Negro dentro do seu corpo, já que te deixa tão mais poderoso? E por que diabos você deixou ele te espancar daquele jeito quando ele já não tinha nenhuma chance de te derrotar?"

"Você estava preocupado comigo, Kurama?" Hiei perguntou, malandro.

"Não." Outra vez a negação veemente. Aquele era um jogo bastante interessante. Kurama gostaria muito de saber as regras dele. Foi esse o motivo, Hiei? Ver se eu me importo?

"Eu só estava testando o cara," o youkai balançou os ombros.

"Não, você estava assustado também. Estava com medo de ver até onde os seus poderes poderiam te levar."

O Demônio de Fogo não reagiu.

"Eu estava com medo da mesma coisa," Kurama confessou. "Eu não sou mais o mesmo Youko... mas naquele momento eu era. E eu sabia que se..." Interrompeu-se. "Esquece. Você não ia entender."

Ele achou que Hiei insistiria, o que não ocorreu. O youkai apenas continuou penteando as mechas vermelhas em silêncio. E mais uma vez, Kurama desapontava-se. Fui eu que deixei a porta entreaberta desta vez, pensou ele. Mas você não bateu.

Kurama suspirou, tentando relaxar e curtir o cuidado atencioso que Hiei dispensava ao seu cabelo. Seu corpo ainda estava dolorido devido aos muitos ferimentos causados por aquelas bombas, e ele sonhava com algumas férias — pois em uma semana ele teria de voltar para a escola, com o fim do recesso. Ele até havia cogitado permanecer uns dias a mais na ilha e aproveitar o sol na praia, o ar fresco e perfumado que corria pela floresta verde que cercava o hotel. Mas não era bobo de mencionar o assunto com Hiei. "Enfim. No fim das contas, nos demos muito bem aqui, e até deu pra gente se divertir um pouco."

"Foi, é?" O tom de Hiei era perplexo.

Kurama deu de ombros. "Eu me diverti. Vou levar boas lembranças comigo."

"Boas lembranças do quê? De brigar, correr, matar, sangrar até a morte?"

"Bom, não era disso que eu tava falando, mas por que não?" insistiu o ruivo.

"Você pirou, Kurama," Hiei murmurou.

"Talvez. Mas eu não sou o único. Noite passada Yusuke estava me dizendo o quanto ele vai sentir a falta do Chuu e do Jin, e o Kuwabara ainda tava esbravejando sobre uma revanche contra Rinku, Suzuki e Shishi Wakamaru."

"E do que você ia sentir falta? Das ameaças do Roto contra a sua mãe ningen? Daquela máquina desgraçada que Ichigaki mandou contra a gente na floresta? Da surra que o Bakuken te deu depois que você desmaiou? Hn... ou quem sabe daquele psicótico cujo nome eu não vou dizer..."

"Hiei..."

"Boas lembranças... Você é completamente doido, Kurama," Hiei zombou, pontuando a última frase com um vigoroso golpe do pente.

Kurama estremeceu, tanto pela dor quanto pelas palavras do amigo. "Tá, eu admito que os meus oponentes foram todos um pouco brutos demais pra que eu realmente sinta falta deles."

"Um pouco brutos demais? Um pouco brutos demais?" Hiei estava boquiaberto. "Você tem alguma coisa nessa sua cabeça além disso aqui?" indagou, agora puxando o cabelo dele propositadamente.

"AI! Qual é o seu problema, Hiei? Nunca encontrou um oponente que te fascinasse? Alguém com aquele brilho estonteante no olho, com o espírito absurdamente forte, alguém com quem você quisesse lutar uma segunda vez?"

Hiei ponderou sobre a questão um momento, pondo o pente de volta ao trabalho. "A maior parte dos meus oponentes não vive pra lutar uma segunda vez, Kurama."

E ele não está se gabando, Kurama admirou-se. Não era esse o tom de Hiei, e a declaração refletia nada além da crua verdade. Os ataques do Jaganshi eram bastante pragmáticos: rápidos, indefensáveis, e absolutamente destrutivos. A combinação de sua impressionante velocidade, do Olho Diabólico, e do Fogo do Makai tornavam Hiei um inimigo implacável para qualquer um que se pusesse em seu caminho. Com uma força tão devastadora, era difícil para ele não matar seus adversários, e todos os espectadores em volta junto com eles.

"Bui sobreviveu," lembrou o ruivo.

"Hn."

"Por que você não matou ele, Hiei?" Kurama não precisava perguntar. Mas era sempre interessante ver se Hiei admitiria a verdade ou não.

"Se um cara quer morrer, deveria cuidar disso ele mesmo," Hiei resmungou, "ao invés de incomodar os outros com seu sangue."

É claro que Hiei tem um jeito peculiar de ser honesto, sorriu o Youko. "Fiquei te observando durante aquela luta."

"Apreciando a vista?"

Ainda não se deu por vencido nesse jogo, Hiei? "Na verdade eu estava prestando atenção nos seus olhos."

O pequeno demônio franziu o cenho, mas não se manifestou.

Kurama interrompeu o que ele pretendia dizer, surpreso por não receber nenhuma réplica espertinha. Tão rapidamente quanto havia se aberto, a porta voltou a se fechar. Te assustei de novo? Só de mencionar os seus olhos? "Sabe o que eu vi?"

O ar congelou às costas do Youko. Novamente nenhuma resposta foi pronunciada.

"Puro êxtase..." completou Kurama.

"Êxtase?" Hiei repetiu num sibilo rouco.

"O choque dos seus poderes com os do Bui... o choque de seus espíritos. Eu nunca te vi tão fascinado, tão satisfeito. Nem mesmo quando você lutou com Yusuke."

"Ah... aquilo." O Demônio de Fogo deu de ombros. "Foi bom encontrar alguém que não era um completo panaca pra variar."

Droga! Errei! O que quer que fosse que Hiei temera tanto que ele houvesse detectado em seus olhos, Kurama não conseguiu atingir com seu tiro às cegas. "Então você conhece a sensação. Não ia ser legal enfrentar Bui uma segunda vez?"

"Pra quê? Eu venci."

"Talvez ele peça uma revanche."

"Ele não vai pedir," o youkai disse com firmeza. "Não faria o menor sentido."

"Mas..."

"Desencana, Kurama," Hiei alertou-o. "Ele não vai querer revanche nenhuma. Eu não era o objetivo dele, só um degrau pra que ele chegasse mais perto do que ele realmente queria. Quando eu venci, eu arruinei toda a escalada dele. E agora não importa mais. Se ele tivesse de lutar comigo de novo, não importa quem vencesse essa revanche, tudo o que ele ia conseguir é ser lembrado de uma perda que ele nunca vai poder compensar."

"Hiei..." A tristeza naquela voz... "Você se arrependeu de ter vencido?"

"Eu não me arrependo de nada."

Agora ele tá se gabando! Kurama sorriu, sarcástico. Mas preferiu mudar de assunto. "E quanto a Yusuke?"

"O que tem o Yusuke?"

"Não tá fim de lutar com ele de novo?"

Hiei fechou a cara. "Claro que tô. E eu vou lutar com ele de novo, sim," emendou.

"Portanto..."

"Portanto o quê? Eu não quero uma revanche porque eu tenho "boas lembranças" daquela luta, como você falou. Eu e ele temos assuntos inacabados."

"Ah, qual é?" o Youko repreendeu-o. "Você ainda tá irritado com o Yusuke porque ele te chamou de barata tonta?

Kurama pôde sentir o olhar furioso do youkai queimando sua nuca. "Se eu fosse de me importar com bobagens como essa," Hiei rosnou em tom ameaçador, "você acha realmente que eu teria te deixado viver depois de tudo o que você me fez?"

Aqui talvez ele estivesse se gabando. Por outro lado, talvez não estivesse. Mas Kurama não teve medo. Estava confiante de que o Demônio de Fogo não faria nada para arruinar a confortável amizade entre eles.

Ou é porque eu sou "completamente doido"? Quem mais teria a pachorra de provocar Hiei como ele, com tanta freqüência com que ele o fazia? Não era como se ele não conhecesse as possíveis conseqüências de deixar o pequeno youkai realmente irritado. Mas é tão excitante ter o manipulador do Dragão Negro escovando o meu cabelo...

"Sei não, Hiei... Acho que eu ainda estaria vivo de qualquer maneira," Kurama se gabou.

"Ah, é mesmo?" fungou o youkai.

Honestamente, o Youko não tinha certeza. A única vez em que os dois se enfrentaram de verdade havia sido há muitos anos, quando seu amigo não passava de um demônio da classe D, e o próprio Kurama tinha de lidar com um corpo humano mais jovem e mais fraco que ainda não tinha como suportar toda a extensão de seus poderes de Youko. Se eu pudesse invocar a minha forma real outra vez... Ele às vezes se indagava sobre as conseqüências de um novo confronto entre eles.

"Bom, eu sobrevivi à nossa primeira luta, e com distinção e louvor, lembra?" Kurama alfinetou-o. "E quer saber? Eu tenho lembranças muito boas daquele dia."

Dedos fecharam-se rudemente ao redor das mechas vermelhas.

Kurama ignorou-os. "Principalmente de você caído estatelado no chão," zombou ele, virando-se um pouco a fim de ver a reação do outro.

Ele lamentou a troça de imediato. O rosto de Hiei havia se transformado numa máscara assustadora, olhos cor de sangue estreitados num olhar malévolo, as presas afiadas expostas entre lábios retesados. O Jagan reluzia por sob a faixa branca na testa, e Kurama estremeceu ao perceber o quanto aqueles olhos de rubi faiscante lembravam os do Dragão Negro logo antes de um de seus enfurecidos ataques.

"Hi-Hiei...?" Será que ele tinha finalmente excedido os limites? Não dá pra acreditar que ele ainda seja tão sensível sobre isso!

"Você tem boas lembranças daquilo?" A voz de Hiei era pouco mais que um sussurro rouco, cada palavra latejando nos ouvidos do Youko, o tom de ira mal contida recordando-lhe o rugido ensurdecedor do Dragão.

E lá se foi o clima relaxado, Kurama pensou, sombrio. "Claro que eu tenho," respondeu ele, esforçando-se ao máximo para manter a voz plana. "Foi fantástico encontrar alguém capaz de me apresentar um desafio de verdade." Ele torceu para que Hiei captasse o cumprimento e sossegasse. O modo como o youkai agarrava o seu cabelo estava se tornando cada vez mais doloroso. Kurama aguardou ansiosamente que as suas palavras penetrassem, mantendo o olhar fixo nas íris rubras.

A resposta de Hiei não foi nada do esperado. A máscara de ódio contorceu-se numa careta confusa, sobrancelhas arqueando-se de leve enquanto a pequena boca se abria, perplexa, presas sumindo da visão de Kurama. As maçãs da face tremiam sob a força de emoções convolutas, entremeadas demais para que o Youko pudesse compreendê-las. Hiei assim parecia quase cômico. Quase. "Desafio?" repetiu ele afinal. "Eu?"

Mas o que ele tá querendo? Bajulação? "Qual é, Hiei? Eu sobrevivi mas não venci. Foi um empate, tá? E eu sei que eu estaria encrencado pra valer se você não estivesse ferido quando nos enfrentamos. Agora se acalma e me solta antes que você me deixe careca."

Hiei soltou o cabelo dele, mas a expressão em seu rosto ficava mais estranha a cada segundo; ele encarava o Youko como se nunca o tivesse visto antes. Kurama já estava ficando nervoso. Dá pra acreditar nisso? Eu era tão bom em ler as emoções dele quando ele não demonstrava nada, agora parece que a alma dele tá explodindo bem na minha frente e eu não faço idéia do que tá acontecendo!

Contudo, subitamente a paz retornou às feições de seu amigo, como uma fagulha cintilante desmantelando uma nuvem negra, quando ele enfim compreendeu. "Você tá falando... de quando nos encontramos pela primeira vez aqui," suspirou.

E como se nada tivesse acontecido, Hiei voltou sua atenção ao pente, manejando-o cuidadosamente, tocando cada fio de cabelo com tanta gentileza que Kurama sentiu-se tonto. O Youko tremia, sentindo a repentina queda de temperatura ao seu redor, e percebendo que, em sua raiva, Hiei havia invocado o seu ki negro e quente, banhando a ambos com a energia fogosa de seu espírito. Agora que não sentia mais aquele ki fustigando seus sentidos, Kurama teve a impressão de ter sido jogado num lago de água gelada.

Alguma coisa dentro de Kurama implorou para que ele esquecesse o assunto e desse graças pelo problema ter sido encerrado sem derramamento de sangue, mas ele não podia conter a curiosidade natural de uma raposa. Ele tinha acabado de atravessar um violento furacão, sem saber o que o causara, muito menos como ele havia conseguido evitar a sua fúria. E isso simplesmente não bastava.

Quando nos encontramos pela primeira vez... "aqui"? O que ele quis dizer com isso? Aqui onde? Ningenkai? Mas então... Olhos verdes reluziram, alarmados. "Hiei?"

Hiei não deu sinal de ter ouvido e Kurama moveu-se na cama para sentar-se de frente para ele. O movimento puxou das mãos do youkai os delicados fios de cabelo que ele vinha acariciando, absorto. Mas a única reação de Hiei foi transferir sua atenção para uma das longas mechas laterais do ruivo, claramente evitando encontrar os olhos verdes que o sondavam.

"Hiei?" Kurama tentou outra vez, falando suavemente, quase num murmúrio. "Nós tínhamos nos encontrado antes?"

Um leve franzir sombreou a testa do Demônio de Fogo.

Kurama engoliu em seco. "Antes que eu viesse para o Ningenkai?"

Uma pequena torção nos lábios de Hiei.

Oh-oh... "No Makai? Na minha forma de Youko?"

As pálpebras se semi-cerraram.

"E-eu não me lembro," Kurama confessou, agora sinceramente preocupado. O que diabos eu fiz? Youko Kurama não era nenhuma flor de candura... e algumas memórias daquela vida apavoravam a parte daquela alma combinada que pertencia a Shuuichi Minamino.

"Não é importante," Hiei murmurou.

Não era o que parecia há um minuto, Kurama meditou com sarcasmo. "Mas... a gente realmente se conheceu lá? Quer dizer, a gente chegou a conversar ou algo assim?"

"Mais ou menos," foi a breve resposta.

"E nós nos apresentamos, dissemos nossos nomes?"

O Demônio de Fogo franziu o cenho, pensativo. "Você disse o seu. Eu disse o meu, mais ou menos."

Ai, Inari... "E nós lutamos?"

"Mais ou menos."

Youko Kurama lutou contra Hiei quando ele ainda era da classe D — ou mais fraco ainda? "Não foi uma luta justa, eu presumo," o ruivo mordeu o lábio. Por favor, diga "mais ou menos", por favor...

"Não."

A porta entre os dois foi deixada escancarada. E pela passagem entrou a virulenta tempestade de areia que Kurama havia predito.

Ele tentou desesperadamente se lembrar. Seria possível? Hiei não tinha exatamente uma aparência trivial. Como eu pude me esquecer dele?

Mas essa não era nem de longe a questão principal ali. "Hiei?" ele sussurrou. "O que foi que aconteceu?"

O youkai continuou penteando a pontinha das mechas de Kurama num silêncio profundo.

"Hiei, por favor," pediu o ruivo, segurando as pequenas mãos do demônio. "Me conta."

"Não tem mais nenhuma importância," Hiei suspirou.

"Eu quero decidir se tem importância ou não," o Youko insistiu. "Junto com você."

Enfim o Demônio de Fogo ergueu os olhos para encarar seu parceiro. "Você já decidiu. Você esqueceu."

Isso foi uma acusação? Ou alívio? "Então me faça lembrar. Se realmente não tem mais importância nenhuma, eu vou esquecer tudo de novo. Mas se tiver..."

O youkai ofereceu-lhe um meio sorriso muito esquisito. De certa forma parecia que Hiei tinha retornado ao estranho relaxamento do início daquela conversa. "A gente se encontrou. A gente queria a mesma coisa. A gente lutou. Você venceu."

Bufando, Kurama balançou a cabeça negativamente. "Acho que você vai ter de me dar mais alguns detalhes..."

Hiei hesitou, considerando o pedido. "Sem revanches, Kurama. De qualquer tipo. Eu quero que você me prometa."

O Youko arqueou uma sobrancelha, suspeitando do tom de voz do pequeno demônio. Se eu venci, por que eu iria querer uma revanche? E se eu venci numa luta desonesta, por que ele não iria querer uma revanche? "Não sei se posso te prometer isso."

"Então esquece."

"Eu preciso saber!" protestou o ruivo.

"Por quê?"

Kurama pestanejou, confuso. "O quê?"

"Por que você quer saber? Você não acabou de me dizer que não é mais o mesmo Youko? Isso tudo é passado, história antiga, morto e encerrado. Esquece."

"Você não esqueceu, Hiei."

O Demônio de Fogo soltou gentilmente suas mãos das de Kurama, reclinando-se até apoiar os ombros contra a cabeceira da cama. "Já ouviu falar de um negócio chamado "memória perfeita"?"

Os olhos de Kurama se arregalaram. Tratava-se de uma rara anomalia entre demônios, a habilidade de manter um registro perfeito de todas as experiências passadas no cérebro, intocadas.

Em outras palavras, a incapacidade física de esquecer o que quer que fosse.

Ele tem memória perfeita? O ruivo estava estupefato. "Por que você nunca me contou?"

"Por que eu contaria?"

Bom argumento, o Youko admitiu. Essa era a regra básica, certo? Eu respeito a sua privacidade, você respeita a minha, nós dois ficamos juntos em silêncio. Mas isso já não bastava. "Me diz o que aconteceu, Hiei."

"Sem revanches?"

"Eu..." Era uma promessa delicada demais.

"Se algo foi perdido lá, a gente não tem como compensar agora, Kurama," Hiei murmurou. "Confia em mim."

Um pedido que Hiei não faria sem um bom motivo, o Youko reconhecia. "Tá legal," ele concordou afinal. "Sem revanches."

O Demônio de Fogo assentiu solenemente, e Kurama preparou-se para ouvir a história, ainda indagando-se como ele pôde ter esquecido tudo tão completamente.

Mas Hiei não disse nem mais uma palavra. Ao invés disso, ele desatou a faixa branca de sobre a testa, abrindo o Olho Diabólico e revelando seu maléfico brilho púrpura.

"Espera, Hiei," Kurama apavorou-se. "O que você tá faz...?"

Mesmo para um Youko com o poder e a experiência de Kurama era difícil bater a velocidade daquele Demônio de Fogo. Ele nem chegou a ver quando os dedos de Hiei tocaram sua testa, bem no centro, causando a pior dor de cabeça que Kurama já sentira em séculos.

As paredes do quarto derreteram-se em cores líquidas, jorrando para dentro de sua cabeça pelo ponto em que sua pele tocava a de Hiei. Kurama fechou os olhos contra o redemoinho de formas em chamas que ameaçava esmagar o seu cérebro, quando um assobio cortante lacerou seu ouvidos num uivo desesperado, deixando-o enjoado.

Mas a náusea foi breve, e logo ele se achou muito relaxado e aquecido, sua mente envolta numa luz azulada, aromas acre-doces invadindo suas narinas.

Kurama sorriu. Muito antes de abrir os olhos ele compreendeu que estava em casa.

Não na sua casa suburbana em Tóquio.

Ele estava de volta às verdes florestas selvagens do Makai, sentindo a brisa com cheiro de sangue soprando as mechas do seu cabelo prateado.

~*~



Morgan D morgan_d_@hotmail.com
Escrito em 29 de setembro de 2000
Traduzido em 2 de dezembro de 2000
Revisado por Lekanthir
 
 

Yu Yu Hakusho pertence a Yoshihiro Togashi, Shueisha, Studio Pierrot, Fuji TV e Jump Comics, mas seus extraordinários personagens são simplesmente fofinhos demais para que eu os deixe em paz. Não recebo nenhuma grana por este trabalho, só um monte de amigos tão ou mais malucos do que eu — pagamento mais do que suficiente pra mim.

Shounen Ai.

Para Curruira ("Eu não conheci o outro mundo por querer!")