Como Morrer Bem
Capítulo 2
Saulo esfregava os olhos e bocejava profundamente
quando Belle entrou na sala com uma bandeja contendo uma xícara
de café.
-
Parece que esse café vai lhe fazer melhor
do que eu esperava.
-
Ah, obrigado, Belle. Preciso me manter acordado.
-
O que aconteceu pra você ficar assim?- Belle
diz então com um direto tom de censura- Você ficou até
que horas aqui ontem?
-
Não, não... eu não saí
tão tarde assim.- Saulo responde entre um bocejo- Quando eu saí
era mais ou menos meia-noite...
-
O que? Como você fica até esse horário
com meu menino provavelmente caindo de sono?!
-
O Gui dormiu no carro... mas isso não foi
nada.- ele sorve um gole do café amargo- O reator do meu prédio
queimou justamente na hora do meu banho.
-
E como o zelador está com a perna quebrada...
-
O executivo de multinacional teve que sujar as mãos
de graxa. Oh, pobrezinho...
Saulo olhou atônito para o rosto de Belle esperando
alguma expressão dela além de descrédito pelas suas
palavras. A velha senhora realmente não acreditava que uma madrugada
inteira em claro pudesse fazer o Grande Saulo perder o sono. Para ela,
Saulo podia fazer tudo, era como um herói ou algo muito próximo
disso.
Com os cabelos curtos tingidos de castanho penteados
elegantemente para trás, com uma roupa fina e discreta e a personalidade
ativa e dinâmica, Anabelle não se parecia em nada com uma
senhora beirando os sessenta anos. Amiga de infância do pai de Saulo,
trabalhou como secretária do presidente da empresa até a
morte deste, quando passou a cuidar apenas dos negócios de Saulo.
Ele, então com trinta e cinco anos, sentia-se
meio sem graça de ter alguém tão protetor acompanhando-o
nas reuniões. Lembra até hoje, com muita vergonha, em uma
das suas primeiras reuniões com a diretoria, quando Belle repreendeu
o sócio do seu pai só porque ele fez uma crítica ao
"menino que está só começando!". Menino que na época
estava com vinte e oito anos e arrancou muitas risadas de todo o pessoal
da mesa de reuniões.
-
Filho, com essa desculpa você não vai
muito longe, não...
-
E qual desculpa seria mais adequada?
-
Me diga quem foi a mulher que eu lhe digo o que não
dizer...
Saulo terminou seu café apoiando a xícara
na bandeja. Dando pouca importância ao comentário de Belle,
virou-se para a tela do computador e começou a digitar.
-
Obrigado, Belle. Agora preciso trabalhar...
-
Você nunca me dá esperanças...
não as que eu quero!
-
Já falamos sobre isso, Belle. Agora eu quero
os telefones dos clientes que ia visitar hoje.
-
Por que você não sai, menino?
-
Porque eu não saio com mulheres, é
isso?
-
Porque você já sabe a resposta. Sabe
que depois de Natália, ninguém mais vai interromper a minha
vida. Nem a do meu filho.- antes que a senhora pudesse pensar em mais algum
argumento, Saulo disse amigavelmente- E você é a única
que ainda me importuna com isso, pois sabe que eu nunca vou perder a paciência
com você. Mas por favor, Belle... me deixe trabalhar agora, sim?
Belle saiu da sala silenciosamente. Saulo não
pretendia magoá-la, mas não queria mais entrar nesse assunto
morto e acabado. Agora era apenas ele e seu filho Guilherme. Ninguém
mais iria atrapalhar sua família.
*****
-
Não acredito que estamos aqui!!!- Silvia gritou
na direção de Leonardo tentando se fazer ouvida
-
Não acredito que seu pai te deixou vir até
aqui!
-
Eu escutei isso! Quero saber porque você está
aqui se ele não deixou!
Silvia não responde. E por um instante, Leonardo
amaldiçoou o fato de estarem a duzentos metros do chão e
quatro metros distantes um do outro. Mas depois, pensando melhor, não
era problema seu se a sua sobrinha tinha mentido ou escondido algo dos
pais dela só para viajar com ele até o interior. Certo que
não era uma simples viagem.
Depois de falar com Silvia no telefone, Leonardo
saiu para encontrá-la no Castelo Branco Km 67, restaurante de beira
de estrada, onde iam comer antes de qualquer viagem. Mas, não estava
nada combinado, eles iriam apenas jantar juntos. Então surgiu a
idéia, Leonardo estava com todo o equipamento de segurança
no porta-malas da Pick-up, Silvia disse que iria telefonar pedindo autorização
aos pais... e eles foram.
Dormiram no carro e logo de manhã começaram
a escalar. Agora estavam voltando com o sol se pondo, quase no meio do
caminho. E Silvia lhe vem com uma dessas! O melhor a fazer é nem
se incomodar e deixar a bomba explodir mais tarde na mão da sobrinha.
-
Você vai ou não vai?- ele gritou
Silvia olhou pra cima, para a face sorridente do
tio e disse:
Ao chegarem no chão, a menina perguntou meio
que preocupada:
-
Eu não me meto nos seus problemas, assim como
quero que você não se meta nos meus. Se você mentiu
pra sua mãe, é ela quem deve lhe responder se esta brava
ou não... Eu não tenho nada a ver com isso.
-
Eles podem ficar bravos com você.
-
Como eu disse, você já tem idade para
avaliar com bom-senso o que faz ou deixa de fazer, o que pensa ou deixa
de pensar. Seus pais são inteligentes... e conhecem a filha que
tem.
-
Vamos... estou morrendo de fome, e você?
Silvia acena com a cabeça.
Leonardo achou melhor dormirem mais uma noite
por lá e depois voltarem para o carro de manhã. Algo na maneira
de Silvia o fez pensar que ela ficou muito feliz depois que tomaram essa
decisão. E, antes de irem dormir, Silvia ficou estranha com ele.
Sorria de modo diferente, falava devagar demais, olhava demais.
Os olhos negros de Leonardo scanearam o terreno.
Ele deduziu que iria fazer muito calor durante a noite para se ficar dentro
do sleeping, então estendeu o tecido grosso sobre o chão
e deitou por cima, levantando os braços e pondo as mãos na
nuca.
Aos poucos foi sentindo o sono chegar. Leonardo
fechou os olhos e se pôs a divagar. Gostava desses momentos antes
de cair no sono profundo.
Lentamente, Leonardo foi sendo puxado de volta
ao mundo real. Ainda meio sonolento, ele sentiu uma mão percorrendo
o seu abdômen e subindo pelo seu peito. Uma outra mão se juntou
a primeira quando esta foi se esconder nos cabelos de Leonardo.
O que estava acontecendo? Leonardo ergueu a própria
mão e segurou a mãozinha que descia pela sua cintura. Ele
sentiu um respirar forte e pausado bem próximo do seu pescoço
e abriu os olhos.
A escuridão não impediu Leonardo de
saber que a sobrinha estava corando violentamente em seus braços.
-
Senti frio...-ela tentou responder com uma voz falha.
-
Sua...- ele se segurou para não xingar a sobrinha-
Estamos no verão, Silvia, deve ser uns vinte e cinco graus neste
exato momento!
-
Não minta pra mim!- Silvia foi sacudida violentamente-
Eu sei muito bem como uma sobrinha se comporta e como uma mulher se comporta!
Por que fez isso?
-
Não... não...- ela começou a
soluçar- Por favor... não...
-
Não me pergunte... não me pergunte
isso!
Leonardo soltou a garota no chão e disse rispidamente:
-
Arrume suas coisas. Nós vamos embora.
-
Mas... é de noite...-ela disse tentando enxugar
as lágrimas
-
Não dá pra ficar mais nem um minuto
com você!
Não agüentando, Silvia caiu em lágrimas
soluçando fortemente.
-
Não chore! Não quero ouvir um único
som seu! Arrume-se logo, antes que eu resolva te deixar aqui.
*****
-
Pai, eu posso ir até a lanchonete com o Sr.
Bob?
-
Pode, você pode ir a lanchonete com o Sr. Shartell.
Robert Shartell, Guilherme, não Sr. Bob.
-
É muito difícil dizer o nome dele.-o
menino fala baixinho tapando a boca com a mão
-
Então não o chame de senhor, apenas
de Bob.
-
Porque senhor Bob parece nome de sanduíche...
-
Você vai ou não vai na lanchonete?
-
Só um instante. Em qual lanchonete vocês
vão?
-
No Bob´s!- disse o menino rapidamente para
logo depois sair correndo pelo corredor
-
Aí está a razão de parecer nome
de sanduíche...- Saulo disse pra si mesmo rindo
Enquanto o filho esteve na sua sala, Saulo não
parara de digitar no teclado, dirigindo o olhar ao menino algumas vezes
para ter certeza de que ele não se importava de não ter a
atenção total do pai em si. Robert Shartell era o americano
que a empresa contratara há menos de um ano. Com seu sotaque e estilo
alimentar peculiar o estrangeiro conseguiu a amizade de Guilherme no momento
em que foram apresentados.
Robert estava fazendo um bom trabalho na empresa
e era confiável. Já tinha jantado na casa deles várias
vezes e era um bom amigo. Apesar de estar morando no Brasil já há
um ano, Robert ainda não conseguira tirar aquele sotaque forte de
americano e se perdia quando alguém falava em uma velocidade muito
rápida. Isso fazia Guilherme segurar as gargalhadas, já que
Saulo disse para ser discreto com o homem.
-
Saulo? Você não vai ficar até
tarde de novo, não?- era Belle que acabara de entrar na sala
-
Não... só vou esperar o sr. Shartell
voltar com o Guilherme, então nós podemos ir embora.
-
Quer dizer que tenho minha carona hoje?
-
Puxa, obrigada... bom saber!
-
Estou indo... estou indo...- disse a senhora levando
as mãos ao ar e saindo da sala inocentemente
Depois de alguns minutos o telefone toca.
-
Saulo Domani. Belle? Porque está me ligando...
Quem?! Ela quer o que?- Saulo ficou um bom tempo em silêncio até
voltar a responder- Deixe-a entrar... sim, deixe! E se o Guilherme voltar
não o deixe, sob hipótese alguma, entrar aqui. Isso vale
para qualquer outra pessoa, até para você, mas principalmente
para o Gui. Obrigado.
Saulo fechou o arquivo que estava cuidando e desligou
o telefone. No instante seguinte entrava uma mulher exuberante dentro da
sua sala. Natália. Sempre que queria alguma coisa ela voltava linda
e sexy, achando que teria ainda algum efeito sobre Saulo. O perfume forte
se espalhou rapidamente pela sala inteira e o tac-tac do salto agulha de
seu sapato fez Saulo imaginar o quanto gastaria para restaurar o piso de
madeira dos arranhões.
-
Olá, Saulo.- a voz feminina ecoou pelas paredes
-
Boa tarde, Natália. O que a traz aqui?
-
Ora... eu não posso fazer uma visita ao meu
ex-marido?- ela disse sentando-se na poltrona confortável cruzando
as pernas, fazendo a fenda da saia verde musgo se abrir mais
-
Isso podia ser feito fora do meu horário de
trabalho.
-
Que pena... estava com saudades...
-
Suponho que sim, afinal, depois de cinco anos sem
vê-lo...
-
Eu tive alguns problemas, você sabe.
-
Com o processo que eu deixei na justiça?
-
Mas ele foi fechado faz tanto tempo... e o dinheiro
que eu lhe dei? O que aconteceu com ele?
-
É... essa é uma questão delicada...
-
Não seja tão duro! Eu fui sua esposa!
Sou a mãe dos seus filhos!
-
Do seu filho, Natália! Nós só
tivemos um único filho! Você está trocando os discursos...
acho melhor você voltar quando se lembrar com qual ex-marido está
falando.
-
Papai!!! Você precisa vir aqui! Precisa ver...-
Guilherme interrompe a gritaria ao ver uma segunda pessoa na sala- ops!
Desculpe-me... eu te chamo mais tarde...
-
Gui?- Natália sorri com incerteza- Guizinho,
é você?
-
Nós já nos conhecemos?- Guilherme pergunta
do jeito que Saulo ensinara-lhe
Natália abre os braços com um sorriso,
enorme agora, esperando alguma reação do garoto. Mas Guilherme
apenas ficou parado na porta olhando sem emoção a mulher
arrumada a sua frente.
-
Quem é esta senhora?- Guilherme continuou
a falar do jeito que o pai ensinara.
-
Ela se chama Natália Laun, e...- Saulo inspirou
profundamente- ... ela é sua mãe.
Guilherme ficou mais um tempo mudo e sem reação
até dizer:
-
Ela não se parece em nada com o que você
me disse...- nesse momento, Natália lança um olhar triunfante
sobre Saulo, que o ignora.
-
Não, ela não se parece...
Então, como se lembrando de algo importante,
o menino disse sorrindo:
-
Pai!!!- ele correu até Saulo pegando na mão
deste- Pai! Pai! Você precisa ver! Precisa ver!
-
Gui... mas... o que aconteceu?- ele perguntou já
sendo puxado pelo filho sala afora
-
Mas... o que? Assaltados?! Como... quer dizer, quando?
Chegando no hall onde ficava a mesa de Belle, Saulo
viu Robert falando sem parar em inglês com a velha senhora que tentava
acalmá-lo de algum jeito. O americano estava completamente em pânico,
sacudindo a secretária, em busca de uma ajuda em vão, já
que Belle entendia inglês, mas não o inglês de alguém
desesperado.
-
Here you are! I’m looking for you!- disse o homem
sem parar para respirar
-
Hey, Robert! Calm down! We gonna resolve this! Everything
will be allright!- Robert começou a falar rapidamente, até
mesmo para Saulo, sobre a perda de seus documentos- We will recover yours
documents and everything more than you lost. Just calm down, ok?
-
Saulo! Não me deixe aqui sozinha!
-
O que você quer, Natália?
-
Eu preciso falar algo importante com você!
-
Pois então procure os meus advogados! Eu não
sou mais responsável por você e nem o quero ser de novo, por
favor, vá embora! C’mom, Bob! Let’s go to my room. Guilherme, você
vem junto.
Continua...