Como Morrer Bem
Por Umi no Kitsune
Capítulo 4
-
Tá pensando o que? Que eu me jogo na frente
dos carros pra conseguir dinheiro?- a voz dele era cheia de raiva- Pois
eu não preciso da merda do seu dinheiro, eu não preciso da
merda da sua boa-vontade, eu não preciso de nenhum velho acabado
que acredita no poder do dinheiro e que maltrata os filhos!
O jovem de cabelos loiros olhou para o irmão
sem deixar de pressionar o braço recém-engessado contra o
pescoço do pai que estava perdendo o ar. Olhando de volta para o
pai, ele grita mais uma vez:
Leonardo solta o pai, que cai no chão.
O menino mais novo olhou para o irmão e depois
para o pai no chão.
-
Você não pode ficar! Ele vai te bater
de novo!
-
Então você fica? Fica do lado dele?
-
Parece que só ele ainda não percebeu
isso!
Um grande silêncio invade a sala, apenas a
respiração ofegante do velho no chão se faz presente.
-
Nós... ainda vamos nos ver?- o menor pergunta
meio receoso da resposta que teria
-
Claro. Ainda somos irmãos, não?- Leo
estende o braço engessado, apenas os dedos aparecendo na massa branca
distorcida. Seu olhar era firme e sério como o de um adulto dando
confiança necessária a uma criança perdida
-
Somos.- sem deixar a sensação de alívio
transparecer, o menino fica sério também e aperta firme a
mão do irmão
*****
-
Desculpe... eu não devia ter feito isso.
Leonardo observa a mão estendida na sua direção.
-
Não precisa se desculpar...- sentado no chão,
Leo ignora a mão e abaixa a cabeça
-
Não, você já estava debilitado
e eu...
-
Já disse que não precisa!- Leonardo
o interrompe dando um tapa na mão de Saulo
-
Hn. Fique claro que eu pedi desculpas pelo soco,
especificamente. O que eu falei ainda tem validade, aliás, provada
agora: você é infantil.
Saulo começa a andar para o interior da casa.
Sentindo-se estranho por ser deixado sozinho, Leonardo levanta-se:
-
Preparar a janta... alguém tem que trabalhar
nesta casa.
Depois de observar Saulo lhe dar as costas e sumir
por uma porta, Leonardo suspirou profundamente. "Por que eu reagi daquele
jeito? Ele não é igual ao meu pai... não merecia ouvir
aquilo." De alguma forma, sem saber como, ele sentiu uma necessidade extrema
de desculpar-se. "Foi só um mal entendido... eu confundi as coisas,
as pessoas, meus sentimentos." O loiro se levantou fazendo o caminho de
volta para o quarto, mas antes que pudesse controlar suas pernas elas o
fizeram seguir o caminho feito por Saulo. "Certo... pedir desculpas pra
ele não deve ser tão difícil..."
Atravessando a porta, Leonardo avistou Saulo de
costas, mexendo em alguma coisa na pia.
-
... quer ajuda?- ele disse enfim.
-
Acho melhor você ir descansar.- Saulo disse
sem se virar- Quando tudo estiver pronto eu chamarei os dois.
Apesar de concordar com a cabeça diante da
proposta de Saulo, Leonardo continuou na cozinha observando e pensando.
-
Se vai ficar aqui por que não se senta?- Saulo
interrompe os pensamentos do loiro
À sua direita, Leonardo avistou uma mesa redonda
com quatro cadeiras de madeira. Fazendo mais barulho do que queria, ele
afasta uma cadeira e tenta, em vão, sentar-se silenciosamente. Um
"nhhheeeeeeeck" alto saiu do assento fazendo o loiro congelar seus movimentos
até ter certeza que não iria cair. Ele não queria
ter mais problemas com o homem, mas podia jurar que ouviu ele rindo baixinho.
-
Então o que?- Leonardo pergunta assustado
-
Dá pra perceber que você está
aqui tentando me dizer desculpas.
-
E-eu? Desculpas?- Leonardo ficou ligeiramente vermelho
com o comentário- Hn... sim. É que... bom eu não...
-
Não precisa se explicar. Apenas diga que sente
muito e fica por isso mesmo. Aí você poderá ir descansar
em paz.
-
Mas você é muito metido mesmo, hein?
"Ele acha que eu estou aqui apenas pra tirar um peso
da minha consciência?", Leo pensou bravo. Pra falar a verdade, ele
nem sabia porque diabos estava lá... tirar peso da consciência
é que não era.
-
Não sou metido. Sou prático. O que
quer que tenha feito você me atacar daquele jeito deve ser muito
pessoal, logo, eu não quero te aborrecer pedindo explicações.
-
Quer saber por que fiz aquilo?- Leonardo abriu os
olhos assustado com o que acabara de perguntar
-
Confesso que tornaria a noite mais interessante.
Por alguns minutos, apenas os sons que Saulo fazia
com os utensílios de cozinha foram ouvidos. Pareciam até
alto demais diante do silêncio entre os dois homens. Saulo começou,
então:
-
Dá pra ficar quieto?- Leonardo quase rosnou
zangado
A voz de Saulo saiu um pouco triste dessa vez, pelo
menos foi o que o Leonardo pensou. Isso o deixou com um sentimento estranho.
Estava tentando pedir desculpas ou piorar as coisas, afinal? Decidindo
que o assusto deveria mudar de sujeito, Leonardo perguntou num tom mais
amigável:
-
O que aconteceu com você e o garoto?
Tudo parou de repente. Saulo ficou imóvel
por um bom tempo, sempre de costas. Leonardo achou que escolheu muito mal
o novo assusto e tentou dizer alguma coisa para se consertar, mas Saulo
falou antes, sem emoção nenhuma na voz:
-
Ele conheceu a mãe dele hoje.
Recuperado do susto, o loiro suspirou. A mão
direita alcançou uma mexa do longo cabelo e num movimento ágil,
ele fez daqueles fios como prendedor para o resto do cabelo. Sentindo-se
mais relaxado depois de fazer algo com as mãos, ele suspirou de
novo e perguntou:
-
Ela está querendo ele de volta?
-
Hn. Ela que nem pense nisso.- dessa vez a voz veio
com raiva, Saulo voltou a se mexer na cozinha- Veio por causa de dinheiro.
-
Dá pra notar que dinheiro não é
problema pra você...
"Geralmente gente como ele paga para não ser
perturbado...", pensou Leo.
-
Mas é pra ela.- a raiva ia aumentando a cada
palavra, Leonardo podia ver as costas de Saulo ficarem tensas- E ela...
não é problema meu.
-
Tudo bem, cara! Eu não disse nada...
-
Eu sei...- a raiva sumiu de repente- É que
ele está se sentindo culpado...
Leonardo percebeu logo que estavam falando do garoto.
Saulo ficou um bom tempo em silêncio. Leonardo
pensou que ele fosse chorar na sua frente, mas para a sua surpresa o moreno
socou a pia, amassando o aço na beirada.
-
Mas ele não tem culpa! Ela não aparecia
há cinco anos! Cinco anos!
Saulo se vira para Leonardo pela primeira vez depois
que começaram a conversa.
-
Ele nem provou do leite dela! Sabe o que é
isso? Ela não quis amamentá-lo! Ela nem sabia o nome dele
até vê-lo nos braços de Belle na audiência. E
isso foi dois meses depois dele nascer!
Leonardo conseguiu ver toda a dor e raiva que Saulo
estava sentindo através dos seus olhos escuros. Um sentimento de
culpa por tê-lo julgado mal atingiu o loiro. Logo, não bastava
mais apenas pedir desculpas, mas confortá-lo daquela dor.
-
Calma... você tá muito nervoso.- Leonardo
se levantou e fez menção de se aproximar, mas parou no meio
do caminho
-
Eu tenho o direito, não acha?- Saulo explode
-
Claro...- o loiro dá um passo pra trás
quase caindo sentado de novo na cadeira
-
Não é óbvio? Não é
óbvio ele não amá-la?- Saulo se aproxima e segura
Leonardo nos ombros- Ele não conhecia o rosto dela antes de hoje
de tarde! Quem poderia amar um desconhecido? Um estranho?
Sentir-se intimidado por Saulo não foi difícil.
Os olhos castanhos transmitindo raiva e dor, as mãos fortes o apertando
nos ombros, a altura que fazia Leonardo ter que levantar o rosto para encará-lo
melhor... o corpo todo do moreno insinuava-se mais forte e poderoso que
o dele.
Leonardo estava com medo. Medo... um sentimento
que, nas duas últimas décadas, era completamente estranho
ao loiro. E agora voltava para ameaçá-lo. Mas por que o medo?
De alguma forma ele sabia que Saulo não iria machucá-lo,
não mais. Sua mente não lhe dava as respostas, apenas muitas
dúvidas e uma certeza: não aconteceria nada de mal com ele
se ficasse ao lado de Saulo. Mas por que? Por que ele pensava desse jeito?
E por que, sabendo que não lhe aconteceria nada, por que tinha medo?
Na verdade... do que tinha medo?
-
Então por que ele se sente culpado? Por que?
Por que ele sofre por causa dela?
-
Eu... não sei... ele ainda é criança,
a mente dele deve estar confusa...
-
Por que?- Saulo exigiu uma resposta e, intensificando
a necessidade de resposta, dá um forte "tranco" em Leonardo.
Ele queria ver isso de novo. Queria intensamente
ver de novo, com mais atenção, mais lentamente... Saulo sacudiu
a cabeça voltando a realidade. No momento em que sacudiu Leonardo
pedindo uma resposta, uma cascata loira-acobreada avançou sobre
o rosto bronzeado e sobre suas próprias mãos. Os fios, sedosos
demais para as mãos de Saulo, fizeram um movimento, uma carícia,
acompanhando a cabeça de Leonardo, que deixou o moreno encantado
por alguns poucos segundos até recobrar a razão. Mesmo assim,
sentindo-se envergonhado por dispersar-se do assunto, seu próprio
filho, ele continuou admirando o brilho suave dos fios que cobriram o rosto
de Leonardo até que este falou com uma voz incerta:
-
... talvez... ele veja as outras crianças...
sorrindo e abraçando suas mães... talvez...
-
Talvez o que?- Saulo fez a pergunta porque não
conseguiu prestar muita atenção nas primeiras palavras do
loiro, ainda estava meio absorto.
-
Ele ache que deve fazer o mesmo.- incomodado com
o olhar sobre si, Leonardo faz um movimento de ombros tentando se soltar
enquanto continua falando, pra despistar- Sabe como são as crianças...
Dando-se conta que ainda segurava o loiro pelos ombros,
Saulo o solta e dá um passo pra trás, nervoso. Ele se voltou
para a pia evitando mostrar o vermelho em seu rosto. "Que situação
mais estranha...", ele pensou.
Depois de muito tempo de silêncio, Leonardo
fala:
-
Acho que agora é a minha vez, né?
Saulo olha o loiro por cima do ombro, confuso por
um instante, e sorri, meio sem graça.
-
Desculpe. Eu falei demais.
-
Que isso... você precisava descontar um pouco
essa... raiva.
-
... acho que a noite vai ser longa... minha história
também é...
-
Não me refiro a isso.- Saulo diz voltando
a cozinhar- Você ainda não me pediu desculpas.
-
Você é um cara chato,
sabia?
Saulo não pode evitar, mas sorriu levemente
com o comentário, dando graças por estar de costas.
-
Hn... então... desculpe. Você falando
com o garoto daquele jeito... me lembrou meu pai.
-
É pra eu me sentir honrado ou pior do que
já estou?
-
Pior do que já está.- foi a resposta
rápida do loiro
-
Ele segurava o meu irmão, igual a você
segurando o menino, antes de bater nele. A mesma coisa acontecia comigo,
mas eu era forte, meu irmão não.
-
Você parece que sempre fez o estilo rebelde...
-
Eu não sou rebelde. Nunca fui. Apenas não
me prendo a nada que seja estúpido. Meu pai era uma coisa estúpida,
em todos os sentidos. Logo, me livrei dele.
-
Continuou com ele. Apanhou mais umas vezes, algumas
eu tive que levá-lo para o hospital por minha conta. Depois meu
pai morreu, meu irmão se casou, teve uma filha e ela...
Saulo notou uma nota de tristeza nas últimas
palavras de Leonardo, que não terminou a sentença, ficando
em silêncio. Depois de ligar o fogão ele se vira e depara-se
com uma cena que o deixou sem falas. Leonardo estava com um olhar estranho,
parecia concentrado em seus pensamentos, mas a tensão no queixo
quadrado e os olhos semicerrados deram a Saulo a impressão de que
o loiro estava... magoado. Machucado seria a palavra certa, muito machucado
por dentro. Se aproximando devagar, o moreno sentou-se em uma cadeira próxima
e perguntou:
-
Ela é o motivo de eu estar aqui.
-
O nome dela é Silvia, e ela é muito
parecida com o meu irmão. Quando ele se casou eu perdi um companheiro,
mas aí veio Silvia... eu a tratava como minha própria filha,
sem a pressão e neura que um pai tem. Ela substituiu meu irmão...
até um certo ponto.
-
Ela se apaixonou por mim...- Leonardo não
olhava diretamente para Saulo- ... tentou me... ela tentou...
-
Eu entendi.- Saulo disse secamente, levantando-se
e abrindo a tampa da panela que acabara de por no fogo.
-
... eu fiquei muito puto com ela, mas podia até
entender seus motivos. Eu sou o tipo de homem que as colegas e amigas dela
sempre desejaram... Se foi para se mostrar para as amigas ou porque ela
simplesmente queria fazer isso, eu não sei. Mas eu não consegui
aceitar! Eu senti... uma repulsa... ela é só uma criança,
é minha sobrinha! Eu nunca pensei nela de outra forma.- Leonardo
parou para dar um longo suspiro- Só que quando eu a levei pra casa
do meu irmão... ela me acusou de tentar estuprá-la.
-
Mas que...- Saulo tratou logo de esconder seu espanto
e perguntou sério- Quantos anos ela tem?
-
Você pode ser preso.- ele disse tomando o cuidado
de destituir qualquer emoção da sua voz
-
Pela vontade de meu irmão...
"Se ele estiver falando a verdade, essa tal de Silvia
deve ser uma...", Saulo fechou os olhos evitando continuar com o pensamento.
Não era da sua conta se o loiro estava falando ou não a verdade.
Respirando profundamente, ele volta a se sentar. A imagem do cabelo de
Leonardo se desprendendo e caindo solto pelas suas mãos o surpreendeu
quando ele fechou os olhos por uma instante. Piscando lentamente, ele fita
o arranjo de flores secas no centro da mesa, imaginando por que essa imagem
o abalou tanto.
-
Por que você é assim?- a voz de Leonardo,
não mais ressentida, despertou Saulo
-
Assim! Exatamente como agora há pouco! Você
fala como um médico... perguntas curtas, sem emoção.
Parecia que eu estava respondendo a um questionário numa folha,
não falando com um humano.
-
Não se preocupe... eu sou humano.- Saulo respondeu
secamente, um pouco transtornado
-
De novo! Eu tive um momento único com você
agora há pouco, não? Aposto que pouquíssimas pessoas
te viram alterado como eu te vi. Mas, cara, como veio foi! Você colocou
essa tua máscara de médico logo que se deu conta do que estava
fazendo e voltou a falar como um metido!
Saulo suspira impaciente diante do comentário.
-
Eu não sou médico. Sou vice-presidente
de uma grande empresa paulista. Faz parte da minha rotina falar assim.
Até meu filho já está acostumado.
-
Você fala assim com o menino?
-
Mais ou menos. É o hábito.
-
Você precisa de férias, cara.
-
Por isso estamos aqui. Quer dizer... era pra eu estar
no meu escritório amanhã, mas resolvi adiantar essa viagem
de fim-de-semana.
-
Deve ser algo novo pra você... sair quarta-feira
para viajar com o menino.- brincou o loiro
-
Da minha família cuido eu.- Saulo disse frisando
a palavra "família" e levantando-se para ver a panela no fogo
-
Nossa! Quanto sentimento!
-
Não caia em lágrimas, então,
por favor.
Continua...