Fome Youkai



 
 

Por Umi no Kitsune

Seis - Qual castigo? Qual Maldição?
 

Ele teria que sair dali urgentemente. Precisava de Kurama, precisava estar perto de Kurama, sentir Kurama. Mas aquelas malditas paredes não cediam! Não importava o que fizesse, o que jogasse contra elas, não conseguia se libertar!

A raiva e frustração estavam chegando em seus limites para Hiei, que mesmo soltando tamanha energia não sentia o mínimo que cansaço. É como se depois do rompimento de suas asas sua força tivesse sido multiplicada, mesmo com a fome que sentia.

Mas nada disso importava agora. Tudo o que ele queria era chegar até Kurama.

"Hiei, pare com isso!"

O koorime abaixou as mãos e o fogo que preenchia a cela inteira se extinguiu.

"Hiei, me escute.", era Yomi, "Eu vou abrir a cela, mas saia com calma porque qualquer movimento suspeito seu... meus guardas tem ordens para te atacar."

Apenas um suspiro impaciente foi sua resposta. Hiei caminhou até a janela onde estava Kurama e esperou. A parede que parecia ser tão dura fez um movimento estranho, como se fosse uma forma gelatinosa, um buraco começou a se abrir e ficar maior até que uma pessoa pequena pudesse passar.

Isso serviria para Hiei se ele agora não tivesse duas asas enormes nas suas costas. Quando a passagem finalmente ficou larga o bastante, ele saiu da cela, recebendo olhares curiosos e medrosos ao mesmo tempo.

"Hiei...", era Kurama ao seu lado, com a voz rouca de tanto gritar e os olhos molhados de lágrimas, "Hiei, o que foi que aconteceu?", ele perguntou num sussurro.

Nada saiu da boca do koorime. Ele não se atrevia a falar, apenas queria abraçar sua raposa e nunca mais sair do conforto de seus braços. Hiei não percebeu que a sala ficara mais vazia. Os guardas, os cientistas, seus companheiros e Yomi saíram e o deixaram sozinho com Kurama.

E mesmo com a privacidade necessária, Hiei não se aproximou de Kurama. Sim, estava quase louco por sentir o youko perto de si, mas também tinha medo da reação dele. O que estaria ele pensando agora... agora que Hiei estava...

Kurama escorregou pela parede da cela e sentou-se desajeitadamente no chão, deixando que o choro o dominasse. Ele soluçava e escondia o rosto com as mãos, murmurando coisas sem sentido algum, "Por favor... eu não queria... o que aconteceu... apenas duas... duas..."

Não agüentando mais, Hiei se ajoelhou em frente ao ruivo e descobriu o rosto das mãos trêmulas. Ele encarou silencioso os olhos verdes e depois abaixou o olhar, trazendo as mãos de Kurama para cobrir seu próprio rosto. Hiei percebeu que ele parara de chorar e sentiu dedos macios acariciarem sua face.

"Eu te amo tanto...", Kurama sussurrou, ainda explorando com as mãos o rosto do koorime, "Eu faria qualquer coisa... qualquer coisa por você.", ele desviou o olhar rapidamente para as duas asas negras, "Me dói tanto pensar em não te amar. Em não ter você comigo, em não poder te amar...", voltando a encarar os olhos vermelhos de Hiei, Kurama continua, tentando deter o choro novamente, "E a morte... a morte seria o fim de tudo. Seria... seria...", ele passou os dedos finos pela estrela branca no meio dos cabelos negros, "Seria não poder te tocar mais...", ele puxou Hiei para os seus braços e o abraçou, sentindo sua pele roçar com o couro sujo de sangue das asas, "Seria não poder te abraçar mais...", tomando o rosto do koorime nas mãos, Kurama o beijou rapidamente, com força e desespero, quando se afastou, deu um longo suspiro, deixando escapar um soluço, "Seria não poder te beijar mais..."

"Eu ficaria feliz em morrer por você.", Hiei disse em um sussurro, fazendo com que Kurama arregalasse os olhos e o interrompesse.

"Mas eu não! Eu não!", ele respondeu baixinho mesmo em tom de desespero, "Eu não ficaria feliz mesmo sabendo que você estaria feliz! A sua morte seria o meu fim.", o ruivo disse entre soluços contidos, "Seria não poder te amar mais..."

"Kurama...", Hiei disse em um tom mais firme, chamando a atenção dele, "Me escute: eu não vou te deixar. Mas... há alguns instantes atrás, quando eu me vi com essas duas... asas, eu me lembrei de muita coisa do passado. E das lendas que ficaram esquecidas sobre a minha raça.", os lábios de Kurama tremeram e Hiei teve que resistir à tentação de acalmá-los, mesmo que com apenas um toque de dedos, "Eu vou morrer.", desta vez, o koorime repousou um dedo sobre a boca de Kurama, para impedi-lo de protestar, "Eu vou morrer ou de fome ou de amor."

"Hiei..."

"Shh... Não vou morrer de velhice, isso já está claro para mim, a maldição de Enma-daio nunca irá permitir que um youkai de fogo viva feliz até que seu corpo pereça com os anos.", nisso Hiei sorriu tristemente, "Mas, já está decidido, eu não vou morrer e te deixar aqui. Sou muito ciumento e egoísta, você é meu, ninguém além de mim merece o seu amor."

Kurama sorriu. Hiei sabia que estava dizendo coisas que, em outras situações, não diria nem sob o fio de uma katana.

"Espero que você entenda, minha raposa, que de amor eu não irei morrer.", Kurama apenas acenou, concordando com Hiei, "Mas não posso lutar contra a minha fome. Não posso lutar infinitamente contra o meu desejo de comer.", Hiei passou uma mão pelo rosto do ruivo, que ficara tenso, "E você está tão próximo... sua carne está... você deve ser um humano saboroso. O mais saboroso. E eu sei que você sabe que humanos tem um gosto único..."

Deixando que as palavras saíssem lentamente, Hiei encarou Kurama, guardando toda a transformação de sentimentos que ocorria nos olhos deste na memória. Amava tanto a sua raposa que faria qualquer coisa por ela. Qualquer coisa... no sentido mais literal da palavra, no sentido mais literal de seus atos.
 
 
 
 
 
 

Contar a verdadeira lenda seria inútil. Afinal, sendo apenas lenda, ela não é de toda verdadeira, só tendo esse nome porque mais se aproxima da verdade. Aliás, lendas sempre são rodeadas pela mentira ou, com boa vontade, pelo mero engano. Como o fato verdadeiro é o que se quer saber... rococós de mentes do Makai e Ningenkai já foram prontamente descartadas.

Naquele dia, a menina saiu correndo de casa, feliz e apreensiva. Ela tinha visto, várias vezes, de longe, o bando de dragões voando para a cidade e, ao entardecer, para trás da montanha. Ela sabia o que eles faziam. Sabia que matavam, cuspiam fogo em suas vítimas e as devoravam sem piedade alguma. Todos os dias seu avô vinha do campo de arroz, ao pé da montanha, agradecendo à Enma-daio por ter voltado vivo. Os pais da menina morreram na boca de um dos dragões enquanto estavam na cidade vendendo a colheita.

E mesmo assim... ela não conseguia deixar de admirar as bestas voadoras. Sua raça era morta aos montes em apenas alguns segundos. E ela apenas esticava os braços para o céu, com os olhos brilhando, como se tentasse tocar os grandes dragões, enquanto eles passavam formando uma enorme cadeia de ventos.

Não se podia explicar. Era uma simples criança fascinada. Uma criança que amava os ventos poderosos nos cabelos. Assim como amava ainda mais os feitores dos ventos. Não se podia explicar. Não se podia negar.

A ningen amava os dragões.

E, naquele dia, quando ela saiu correndo de casa, sabia o perigo que corria, mas também sabia que o amor que sentia era muito maior. Por isso, feliz e apreensiva, ela correu até o velho dragão. Quando ele caíra, fizera um estrondo tão grande que ela escorregara no chão. Era o maior dos dragões, o mais velho, um dos mais bonitos.

Uma fumaça cinzenta preencheu toda a floresta e ela quase gritou de susto quando se viu, de repente, frente a frente com o enorme olho vermelho do dragão. Ele a olhou com desdém e bufou, fazendo várias árvores se inclinarem e algumas folhas chamuscarem. Ao ver que a garota não corria assustada, ele perguntou:

"O que a ningen quer? Observar morbidamente a morte de um dragão?"

"Oh, não, senhor dragão!", ela respondeu prontamente, mas não deu maiores explicações, já que um estranho sentimento começara a brotar em seu interior.

"Então?", o dragão perguntou, impaciente, bufando na direção na menina que sentiu seu corpo suar imediatamente com a alta temperatura e o calor absurdo a incomodar.

"Eu...", ela se aproximou relutante, "Pode parecer estranho, mas... eu sei que você está com meus pais.", não era isso que estava na mente da menina segundos antes dela falar. Vendo seu erro ela mordeu a língua com medo de uma repreensão.

"Hn. Talvez.", ele disse desinteressado, "Agora saia daqui, me deixe morrer em paz."

Os olhos da menina se arregalaram, "Você vai me deixar viver?", sem receber resposta, ela continuou, "Mas por que um ser tão belo vai morrer?"

Nisso, o dragão, um pouco confuso, virou-se para a menina, "Eu sou um ser belo?", ela apenas sorriu, "Eu deveria matá-la por me tratar com tal desrespeito! Dragões de fogo não são belos, são cruéis! É assim que quero ser lembrado."

A menina ponderou por um tempo. Não conseguiria deixar de amar o dragão, mesmo que ele proferisse mil palavras rudes, não conseguiria. E o sentimento de que seus pais estariam com o dragão, a energia deles ainda pulsante nas veias do enorme youkai voador...

"Vamos fazer um trato.", ela disse, "Eu sinto que meus pais ainda estão aí...", ela colocou sua pequena mão sobre a pele negra e quente, "E eu sei que eles me amam. E eu sei que eu te amo e que você vai ficar muito zangado comigo se souber que nada do que fez ou fizer vai diminuir meu amor por você.", o dragão fez um movimento brusco, derrubando a menina no chão, mas ela voltou a falar, chamando a atenção, "Então, eu proponho um acordo."

"E que tipo de acordo uma ningen tão pequena pode oferecer a um dragão que está para morrer?", ele quase rosnou

"Você me devora e fica satisfeito em saber que apenas será lembrado como cruel já que a única pessoa que te amava estará morta. Como eu não tenho energia suficiente para salvar a sua vida, ficarei satisfeita em permanecer eternamente dentro de você, que eu amo mais do que tudo."

"Justo."

Com o acordo feito, a menina se postou em frente a boca do dragão. Enquanto este cuspia suas últimas chamas no pequeno corpo, ela pensava feliz, na parte do acordo que não mencionara, "E quando eu me encontrar com meus pais, você vai sentir o amor deles por mim e o meu amor por você... e, quem sabe... me amar no seu último segundo."

Mas o velho dragão era tão cruel e insensível que não prestou atenção ao amor que brotava dentro dele, enquanto, com a pouca energia que a menina lhe dera, queimava a floresta a sua volta, tentando apenas matar o quanto mais pudesse no seu último segundo.

E eu... presenciei tudo isso.

Então não me restara outra alternativa. Precisava aplacar minha ira, mas, com pena do amor da menina, não extingui a raça dos dragões de fogo. O que eu fiz, foi bem pior, para eles. Aprisionei cada um deles, que não eram muitos por sinal, em corpos humanos. Quem tentasse escapar seria morto.

A decisão cairia sobre eles, os dragões. Ou aprenderiam a amar, como a menina quisera ensinar, ou se matavam.

Muito simples, mas eu não sou uma menina. Queria não apenas castigá-los mas amaldiçoá-los; ensiná-los a amar seria abençoá-los e isso não seria o correto. Então, decidi que todos morreriam. Ou de fome ou de amor. E não tem como escapar de um sem se envolver com o outro. Morreriam de fome porque amam a comida, morreriam de amor porque mataram a comida.

Sim. Nos dois casos há amor e morte. Mas com um porém. Aquele que cometesse o erro dos seus antepassados, o erro do velho dragão, que não amara a comida, morreria. Porque matou um ser que ama. Por isso algumas lendas dizem que os youkai de fogo ficaram loucos. Comendo ficaram mais fortes, re-obtiveram suas asas mas não viveram por muito tempo, morrendo da forma mais humilhante, para um youkai: de amor.

E até hoje tem sido assim. Os youkais de fogo nunca aprenderam. Nunca amaram. Sempre, na história dos três mundos, o amor é morto e é também a causa da morte.

Até hoje.

Hoje, conforme maldição, um youkai de fogo irá morrer de fome e, finalmente, a maldição será quebrada. Ele vai morrer de fome porque ama a comida.

Kurama não quer ficar sozinho, diz que seria seu fim, que não agüentaria a morte de Hiei. Ora, Hiei irá morrer se não comer. Se fizer o que estava planejando e se esforçando para fazer: ignorar a sua fome youkai e morrer. Mas Kurama não quer isso. E Hiei ama tanto Kurama que não lhe resta outra opção a não ser comer.

Ele irá perder para a fome youkai com a qual esteve lutando contra todo esse tempo. Mas ele ama Kurama e, por Kurama, ele vai morrer de fome. Fome Youkai.
 
 
 

CONTINUA....
 

Notas da Autora: Muito bem... desculpem se o capítulo ficou muito pequeno, mas é que a fic está terminando e realmente não tem mais nada para se acrescentar. Se eu acrescentar mais uma vírgula, tira a graça do final, que por acaso será menor ainda... ^^;; Para quem não percebeu, a fic, em sua maioria, é do ponto de vista do Hiei, mas nesse final, quem narra é Enma-daio. Quem não reparou... só pra constar...^^ E uma última coisa: este capítulo é dedicado especialmente a minha amiga Kitsune.