SANTOS, Boaventura de Sousa.
"Um Discurso sobre as Ciências", Ed.
Afrontamento, 8a ed.,SP, 1990.
Introdução
O progresso científico dos últimos trinta anos são de tal
ordem dramáticos que os séculos que os precederam (a
modernidade, do século XVI ao XIX), não são mais que uma
pré-história longíquo. Tal evolução tecnológica está nos
catapultando para uma sociedade baseada no saber, no
conhecimento. Estamos, portanto, numa fase de transição, numa
crise que está fazendo emergir uma nova ordem científica.
O Paradigma Dominante
O modelo de racionalidade que preside a Ciência Moderna
constitui-se a partir da revolução científica do século XVI,
(onde houve uma ruptura com o pensamento aristotélico-medieval),
e foi desenvolvido pelas ciências naturais (Física, Biologia,
Química e suas derivadas). Só a partir do século XIX é que
esse modelo se estende às Ciências Sociais ou Humanas
(Sociologia, Antropologia, História, Psicologia, etc). O método
científico baseia-se na observação, descrição e
sistematização das informações da Natureza, mediada pelo
crivo da razão e da lógica, usando como instrumento a
matemática, pois quantificar se tornou sinônimo de conhecer. A
ordem era reduzir a fim de simplificar, dividir em partes a fim
de classificar. A preocupação da Ciência, abandonando a
metafísica medieval, se tornou os aspectos funcional e
pragmático da Natureza: "Como isso funciona e como poderei
usar para meu benefício?" O mundo passou a ser visto como
uma máquina passiva, um mecanismo cego de teor determinístico.
O modelo de conhecimento científico das Ciências Naturais (ou
Exatas) se tornou o único modelo válido de conhecimento.
Galileu aritmetizou o universo; Descartes, com sua geometria
analítica e seu método dualista filosófico, reduziu o mundo a
quantidades e interações mecânicas; e Newton, posteriormente,
coroou essa visão de mundo com sua Física, que endossou
empíricamente as idéias de Galileu e Descartes.
A Crise do Paradigma
Dominante
A atual crise científica não é apenas profunda, é
irreversível. Estamos vivendo um período de revolução que
teve quatro condições :
a) a Teoria da Relatividade, que mostraram que o tempo e o
espaço absolutos de Newton não existiam
b) a Mecânica Quântica de Werner Heisenberg e Neils Bohr
estipulou não ser possível observar ou medir um objeto sem
interferir nele, pois o observador interfere no fenômeno.
c) a própria matemática de Galileu e Descartes foi posta em
questionamento com o avanço de campos como a Teoria da
Complexidade, a Teoria do Caos e os Fractais.
d) avanços da Microfísica, da Química e da Biologia nos
últimos vinte anos que estipularam teorias como as Estruturas
Dissipativas e o Princípio da Ordem através da Flutuação, a
autopoiese de Maturana, a Teoria da Catástrofe de Thom, a
Matriz-S de Chew e a filosofia Bootstrap que lhe subjaz.
Essas quatro condições de ruptura geraram uma profunda
reflexão epistemológica sobre o conhecimento científico. Hoje,
todo cientista também precisa ser filosófo. Do conteúdo dessa
reflexão destacam-se três questionamentos :
a) do conceito de lei e de causalidade que lhe está associado.
As leis passam a ter um caráter probabilístico, aproximativo e
provisório.
b) do rigor quantificador dos fenômenos. Em seu lugar, a busca
de padrões qualitativos.
c) dos limites da precisão do saber.
O Paradigma Emergente
O novo modelo de saber científico que emerge traz consigo uma
nova visão de mundo para a sociedade. Ele se baseia em quatro
princípios :
a) Todo conhecimento científico-natural é científico social
Deixa de haver uma ruptura entre o Homem e a Natureza, o
orgânico e o inorgânico, a consciência e a realidade física
externa. O que leva a um saber não-dualista que acaba com a
distinção entre Ciências Exatas e Humanas. O Homem está no
centro do conhecimento, e a Natureza no centro do Homem.
b) Todo conhecimento é local e total
A fragmentação pós-moderna do saber não é disciplinar, mas
temática. O saber se constitui multidisciplinarmente, através
de uma síntese de várias fontes e métodos.
c) Todo conhecimento é auto-conhecimento
Acaba a distinção entre observador e fenômeno, sujeito e
objeto, subjetivo e objetivo. A Ciência não descobre, cria
conhecimentos, e não é a única explicação possível.
d) Todo conhecimento científico visa constituir-se em senso
comum
A Ciência deixa de ser hermética e reservada a poucos eleitos
capacitados, para ganhar o domínio público e tornar-se um saber
popular.