Movimentos Sociais, Insurreições e as Forças Armadas

Fabrizzio B. Dal Piero

Nos últimos 50 anos, as insurreições têm sido o tipo mais comum de guerra. As guerras no Afeganistão, Angola, Bósnia, Chechênia, Malásia, Nicarágua, Vietnã e muitos conflitos similares lançaram grupos insurretos contra governos estabelecidos. Esse curso de acontecimentos irá provavelmente continuar. As tendências demográficas, econômicas e tecnológicas indicam em seu conjunto a continuação da instabilidade mundial, pois muitas nações lutam com explosão demográfica, economias estagnadas e séculos de conflito étnico. Embora a agressão convencional (como a Guerra da Coréia e a Guerra do Golfo) vá continuar a ameaçar os interesses dos países, as insurreições irão provavelmente persistir como as formas mais prováveis de conflito nos quais as forças militares das nações poderão ser chamadas a combater.

Por mais curioso que pareça, um guia para derrotar insurreições foi oferecido 60 anos atrás por um mestre da guerra de guerrilha, Mao Tse-tung.

Mao nos ensinou que as insurreições devem transitar por três fases antes de obter a vitória: defensiva estratégica, impasse e ofensiva estratégica. Durante a primeira fase, os insurretos usam táticas de guerrilha para exaurir a vontade e o poder das forças governamentais. Eles atacam quando possível e recuam quando necessário. Durante a segunda fase, a do impasse, nenhum dos dois lados pode conduzir ofensivas ponderáveis. Um sentido de futilidade ou de causa interminável filtra para a população e as tropas governamentais. Acumulam-se baixas e custos, sem qualquer decisão à vista. Durante esta segunda fase, os insurretos constróem sua força e retreinam seus guerrilheiros. Quando as forças e o moral do governo se encontram suficientemente enfraquecidos pelo impasse, os insurretos lançam a ofensiva estratégica, desencadeando ataques de movimento convencionais com unidades de exército organizado. Sua meta nessa terceira fase é derrotar as forças do governo e adquirir o controle político do território. Mao insistiu em que uma insurreição deve necessariamente passar por essas três fases para obter a vitória.

No Brasil, o confronto entre os movimentos sociais e o governo, não há mocinhos ou vilões. Em resumo: ambos estão violando leis e só quem perde é a democracia, que fica ameaçada diante desse clima de acirramento.

Os movimentos sociais, porém, contabilizam mais prejuízos que o governo nos confrontos, porque a radicalização mancha sua imagem junto à sociedade civil. Com os conflitos cada vez mais acirrados, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), por exemplo, vem perdendo a simpatia da população, que havia conquistado antes, e vai sendo jogado num perigoso isolamento. Enquanto os sem-terra dependem do apoio popular, o governo conta com a propaganda institucional para se defender. A radicalização do MST é positiva para a estratégia do governo, que aproveita o momento de fragilidade do movimento para reduzir o diálogo. Os movimentos estão se desentendendo internamente, e isso deixa o governo forte para assumir posições mais duras. Para todos os estudiosos, a relação entre os movimentos e o governo está próxima do esgotamento.

Entretanto, a corda está sendo esticada dos dois lados, e quando não há diálogo, as pessoas começam a cavar trincheiras. O governo erra ao reprimir duramente manifestações legítimas dos movimentos sociais, e os movimentos, por sua vez, erram ao radicalizar as ações. Mas deve-se mencionar que o MST está dividido em duas facções. Uma delas quer a reforma agrária, mas a outra deseja uma revolução armada, nos moldes socialistas, e por isso não aposta no diálogo com o governo. Também deve ficar claro que o MST tem um projeto político de poder, e que, ciente disso, o governo tem acompanhado de perto as movimentações. Se essa idéia progredir, vai haver uma revolução, mas será sufocada pelas Forças Armadas, que já estão preparadas para isso.

O ponto fundamental aqui, que pouco tem sido entendido por alguns profissionais de defesa, é que os insurretos devem por fim adotar uma postura convencional com o objetivo de finalmente "ganhar". Segundo Mao, os insurretos na primeira e segunda fases podem apenas enfraquecer as forças do governo; não podem ganhar. Para substituir um governo existente, os insurretos têm que ao final interromper sua tática de guerrilha e lutar como força convencional. Os governos podem ser enfraquecidos durante as duas primeiras fases, mas não cairão sem um "empurrão" final. A meta das duas primeiras fases é debilitar o governo até o ponto em que uma ofensiva estratégica tenha probabilidade de vitória.

A radicalização dos movimentos sociais preocupa os órgãos do governo. A ameaça de radicalização dos movimentos sociais é vista com olhos de preocupação. O mais grave é o desrespeito à ordem e à lei. Nenhuma desigualdade pode justificar atos que agridam os direitos individuais do cidadão. Quando isso acontece, as conseqüências são muito perigosas. O Brasil tem uma estrutura democrática muito forte, que não vai tolerar abusos de setores mais radicais. Quem vai sair perdendo com o enfrentamento são os próprios movimentos.

Justamente por causa do ‘ônus’ da radicalização é que o sociólogo José Arlindo, hoje à frente da Secretaria Estadual de Planejamento, defende que os recentes atos de confronto protagonizados por sem-terra e sem-teto foram apenas uma estratégia equivocada para chamar atenção, sobretudo, das organizações internacionais. "Não acredito que os movimentos vão enveredar por esse perigoso caminho. As conseqüências, as lideranças vão perceber rapidamente, levarão ao inevitável isolamento".

Em meio a tantas ponderações, devemos lembrar da necessidade de olhar para trás e aprender com o passado. As ligas camponesas, precussoras dos sem-terra, sentiram o peso da radicalização de determinados setores do movimento. Quando certas lideranças partiram para as armas, perderam força e foram esmagados. A perda de apoio explica-se pelo fato de que, ao adotar um comportamento mais radical, a legião que segue esses movimentos passa da condição de excluída para a de transgressora. Uma postura que implica, quase sempre, no rompimento do tecido social da legalidade. Até que ponto as atuais lideranças estão dispostas a correr esse risco é a grande questão.

A idéia de que a guerra de guerrilha é um fim em si mesma e de que as atividades de guerrilha podem ser separadas das atividades das forças regulares é incorreta. . . .. As operações de guerrilha, durante a guerra antijaponesa, podem por certo período e temporariamente tornar-se sua característica mais notável, particularmente no que toca à retaguarda inimiga. Contudo, se encararmos a guerra como um todo, não poderão haver dúvidas de que nossas forças regulares são de primordial importância, porque somente elas são capazes de produzir esta decisão favorável.

Mao Tse-tung, On Guerrilla Warfare

Refletindo a teoria de Mao, o Khmer Vermelho, os vietcongues e os mudjahedins afegãos, todos eles, iniciaram sua luta como guerrilhas, mas ao final conduziram ofensivas estratégicas como unidades organizadas.

Mais recentemente vimos os insurretos sérvios-bósnios evoluírem para um exército organizado com armas pesadas. Todos esses insurretos empregaram carros de combate, artilharia, bases logísticas, nós de comando e controle, e assim em diante, em suas campanhas (ofensivas estratégicas) finais. Fazendo isso, refletiram a teoria de Mao: os insurretos têm de, ao final, organizar-se, equipar-se e lutar como um exército convencional.

Ao contrário de muitas impressões, os insurretos não podem permanecer guerrilheiros indefinidamente e contar com a vitória. Apenas uma ofensiva articulada pode derrubar um sistema político. O terrorismo pode causar grandes danos, mas não irá derrubar um regime. Essa é a razão pela qual o Exército Republicano Irlandês (IRA) e a Organização de Libertação da Palestina (OLP) deixaram de alcançar a vitória, a despeito dos danos substanciais que causaram. Nenhum dos dois prosseguiu para uma ofensiva estratégica. Em acréscimo, ao permanecerem indefinidamente na fase de guerrilha, os insurretos praticamente selam sua derrota final. Foi esse o erro de Che Guevara na Bolívia. As forças de segurança do estado lhe moveram uma verdadeira caçada até matá-lo em 1967. O Sendero Luminoso de Abimael Guzmán, no Peru, também permaneceu por tempo demasiado no modo de guerrilha. Sua prisão em 1993 causou o colapso da insurreição.

A lição é clara: se contarem com tempo suficiente, as forças de segurança do estado irão por fim capturar ou matar os líderes da guerrilha. As poucas exceções, como a vitória de Fidel Castro sem uma ofensiva em Cuba, são apenas isso - exceções. No intuito de ganhar e sobreviver, os guerrilheiros devem transitar para a fase da ofensiva estratégica. Enquanto os insurretos permanecerem guerrilheiros (nos dois primeiros estágios da insurreição), será difícil visá-los como alvos para armas americanas. Grupos pequenos infiltrados na população são péssimos alvos para forças militares estrangeiras, sejam estas forças especiais, divisões de infantaria, mísseis de cruzeiro ou bombardeiros.

O Vietnã ensinou às forças armadas dos EUA, se tanto, o alto custo de empregar força militar contra guerrilheiros. Contudo, uma vez que os insurretos passem para a terceira fase - a ofensiva estratégica -, mudam da postura de guerrilha para a postura de exército convencional atuando sem alguns conceitos e doutrinas militares como, por exemplo, cobertura aérea. Agindo assim, os insurretos apresentam uma fragilidade - chave ante as forças militares. Este terceiro estágio - o final - representa a vulnerabilidade crucial dos insurretos. Se uma nação decidir empregar forças militares contra uma insurreição, deverão aguardar até que os insurretos conduzam a ofensiva estratégica. A espera por isso exige paciência. De acordo com Mao, os insurretos têm que por fim se tornar um exército convencional para derrubarem um governo existente.

Entretanto, tão logo os insurretos se transformem em um exército convencional, tornam-se vulneráveis à detecção e destruição por armas de alta tecnologia das nações. Assim, restam-lhes duas opções insatisfatórias: a) permanecer na defensiva estratégica, caso em que não podem alcançar a vitória, ou b) transitar para um estágio de ofensiva estratégica, caso em que enfrentam a destruição certa pelas forças armadas.

Conduzir insurretos à defensiva estratégica depende da situação, exigindo uma força terrestre autóctone capaz de conduzir operações ofensivas.

Em resumo, as nações podem derrotar insurreições mediante o emprego de sua alta tecnologia para impedir a ofensiva estratégica dos insurretos. Isso é feito mediante a destruição de qualquer concentração de homens/equipamentos pelos insurretos. Infligir tal destruição aos insurretos é o papel decisivo do poder e da alta tecnologia. Dessa forma, os países podem impedir qualquer chance de os insurretos conduzirem uma ofensiva estratégica. As nações podem forçá-los a permanecer nas primeiras duas fases (defensiva estratégica e impasse), onde forças do governo autóctone possam por fim dar conta deles. Uma vez a ofensiva estratégica dos insurretos seja tornada impossível, estes, mais cedo ou mais tarde, terão de chegar a um acordo político. Desconhece-se o timing, mas isso é inevitável.

Sessenta anos atrás, Mao Tse-tung esboçou os três estágios obrigatórios da guerra insurreta: defensiva estratégica, impasse e ofensiva estratégica. Curiosamente, ele fez muito mais do que dar aos insurretos uma receita do sucesso. Também deu aos governos o mapa das insurreições.

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