O JOGO

Fabrizzio B. Dal Piero

O jogo é fundamentalmente um símbolo de luta, contra a morte (jogos funerários), contra os elementos (jogos agrários), contra as forças hostis (jogos guerreiros), contra Deus (jogos da vida); contra si mesmo (contra o medo, a fraqueza as dúvidas, os amores perdidos, contra as desilusões etc.).

Mesmo quando são puro divertimento, incluem gritos de vitória, pelo menos do lado do ganhador. Combate, sorte, simulacro ou vertigem, o jogo assim como na guerra é por si só um universo, no qual, através de oportunidades e riscos, cada qual precisa achar o seu lugar.

O jogo não é apenas a atividade especifica que leva seu nome, mas ainda a totalidade das figuras, dos símbolos ou dos instrumentos necessários a essa atividade ou ao funcionamento de um conjunto complexo. Os jogos podem apresentar os mais variados aspectos segundo as necessidades de cada época. Não são apenas um passatempo. Podem ser iniciáticos, didáticos, miméticos, competitivos. Inspiram-se nas exigências da vida e desenvolvem as faculdades de adaptação social. Os jogos têm, ademais, um valor encantatório. Opondo um campo a outro, opõem, na verdade dois princípios, dois pólos, e o triunfo de um deles deve garantir um benefício individual ou coletivo.

Conta-se que em algum momento da história da Índia o rei Iadava conduziu seu povo em uma batalha na qual veio a falecer seu filho, que patrioticamente se sacrificou no mais aceso da refrega para salvar a sua posição que deu aos seus a vitória final. Terminada a cruenta campanha e assegurada a nova linha de suas fronteiras, o rei viu-se tomado por terrível angústia e tristeza, sem que as peripécias da batalha lhe saíssem do pensamento. Passado certo tempo, o rei foi informado que um brâmane solicitava uma audiência a fim de mostrar-lhe um jogo (uma primeira forma de xadrez) que tinha inventado e que iria ajuda-lo a superar a tristeza. As peças do jogo representavam a infantaria, a cavalaria, os oficiais e o rei. Rapidamente orei aprendeu as regras do jogo e, em umas das partidas, notou que para vencer aquela partida era indispensável que o rei sacrificasse um dos oficiais que tanto empenho tinha protegido. Percebeu então o rei que o sacrifício de um príncipe era por vezes imposto como fatalidade para que dela resultassem a paz e liberdade de um povo. A lenda do xadrez ilustra bem como a tríade, vida guerra e jogo andam sempre juntas e convida o paciente, ou o rei, a simplesmente se concentrar em sua experiência presente, pressupondo que a situação inacabada mais importante, não resolvida no passado, inevitavelmente emergirá nesta experiência presente, e quando isso ocorrer, terá o paciente ou soldado oportunidade de experimenta-la de novo, a fim de completá-la com as novas.

Assim deve ser entendida a guerra, acontecida no passado ela deve ser estudada e compreendida para que no presente as atenções estejam votadas para que se termine o que não está acabado o mais rápido possível. A guerra é como um jogo de xadrez.

Como no xadrez, viver com atenção voltada para o presente, perceber as relações e interações entre o indivíduo consigo mesmo e com o mundo e constantemente ampliar a consciência da maneira como se comporta são coisas boas e que levam ao crescimento individual e coletivo de um povo ou de uma nação. A guerra que, em face do sentimento geral desde a Antigüidade dos costumes contemporâneos e do aumento dos poderes de autodestruição, constitui a imagem da calamidade universal, do triunfo da força cega, tem, na verdade, um simbolismo extremamente importante.

De maneira ideal, a guerra tem por fim a destruição do mal, o restabelecimento da paz, da justiça, da harmonia, tanto nos planos cósmico e social (era, sobretudo, o caso na China antiga) quanto espiritual. É a manifestação defensiva da vida. Na Índia, a guerra é a função dos kshatriya. Mas no combate de Kurukshôtra, tal como vem descrito no Bhagavad - Gita, o que mata não mata e o que morre não morre. É o domínio da ação, do Karmayoga, do combate pela unificação do ser. Krishna e um kshatriya, mas o Buda o é também. A mesma coisa acontece no Islã, onde a passagem da pequena guerra santa para a grande guerra santa é a do equilíbrio cósmico para o equilíbrio interior. O verdadeiro conquistador (jina) é o da paz de espírito. O mesmo simbolismo pode ser detectado no apoio das ordens militares medievais, principalmente a dos Templários. A conquista da Terra Santa não se diferencia simbolicamente da conquista do jina. O Mahabharata diz de Vixenu que ele conquista tudo: o que ele combate são as potências destrutivas. As aventuras de um Guesar de Ling, no Tibete, as cerimônias guerreiras dos Turbantes amarelos na China dos Han não tinham outro objetivo senão o combate contra os poderes diabólicos.

Os combates lendários das sociedades secretas chinesas - em que eram usadas espadas mágicas de madeira de pessegueiro - são combates de iniciados. Suas guerras para abater T'sing e restaurar Ming visam, de fato, à restauração a luz (ming). No sentido místico como no sentido cósmico do termo, a guerra é o combate entre a luz e as trevas. Existia uma escola de boxe no centro de iniciados de Chao - lin, e manuais de boxe em certas lojas. A homofonia Kiao - tse - boxer é o suporte de um simbolismo combativo.

O próprio budismo, cujo pacifismo ë bem conhecido, emprega largamente o simbolismo guerreiro: o guerreiro brilha na sua armadura diz-se do Buda no Dhammapada. Avalokiteshvara penetra no mundo dos asura sob o aspecto do guerreiro. Trata-se da conquista, a viva força, dos frutos do conhecimento. Se o Reino dos Céus pertence aos violentos, a violência búdica não é apanágio da seita Nichiren: Guerreiros, guerreiros nós nos dizemos, lê-se no Anguttara - nikaya. Combatemos pela elevada virtude, pelo alto esforço, pela sublime sabedoria. Por isso nos dizemos guerreiros. A vitória sobre o eu domado, a honra da morte em combate lembram a bravura do kshatriya, mas também a do samurai, japonês ou a do guerreiro Sioux.

O Buda é um Jina. É esse também o titulo do fundador da seita jainista. A guerra interior tende a reduzir o mundo da dispersão, o das aparências e das ilusões, ao mundo da concentração, a única realidade o múltiplo ao uno; a desordem à ordem.

O ardor guerreiro se exprime simbolicamente pela cólera e pelo calor. Kratu é a energia guerreira de Indra, mas é também a energia espiritual. A paz (shanti) é a extinção do fogo. E é também em relação com o fogo que o sacrifício ritual se identifica ao rito da guerra, que a vítima sacrifical é aplacada pela própria morte - pois que a remissão é tradicionalmente; a morte das paixões e do eu. Esse rito, cumprido no Ramayana por Parashurama, equivale ao sacrifício védico. A oferenda de flechas é entregue pelo arco; o exército é o combustível os príncipes inimigos, os animais sacrificados. O próprio taoísmo conhece uma libertação do cadáver pelas armas, que está em relação direta com o que acabamos de ver. Quando se fala de guerra nos temos tradicionais cristãos, a expressão deve ser compreendida também em sentido espiritual.

Não se trata de uma guerra exterior; que se trave com armas. A guerra Santa é a luta que o homem trava em si mesmo. É a confrontação das trevas e da luz no homem. Cumpre-se na passagem da ignorância para o conhecimento. Donde o sentido de exército da luz, na expressão de São Paulo. É um contra-senso e um abuso dos termos falar de guerra Santa a propósito dos combates armados materiais. Segundo a tradição, nenhuma guerra desse gênero é Santa. Aplicada às cruzadas, a expressão é um erro grave. As armas e os combates da guerra Santa são de ordem espiritual.

Entre os índios ojibowas, a preparação para a guerra não é um simples treinamento físico. É unia introdução à vida mística pela ascese. Os voluntários, durante um ano, praticam o, jejum, o isolamento na floresta, pedem e obtêm visões, porque a guerra é considerada antes de tudo como uma libação de sangue, um ato sagrado. Soustelle não deixa de salientar esse aspecto simbólico da guerra: o destino normal de um guerreiro é oferecer vitimas aos deuses, antes de tombar, ele também, sobre a ara dos sacrifícios. Torna-se, então, nos Céus, companheiro do Sol.

A guerra sempre foi um fenômeno assustador. Todavia, seu estudo nunca deixou de ser apaixonante, devido à sua natureza essencialmente humana, quer em sua grandeza quer em toda sua miséria. O estudo guerra é, pois, um tema desafiante, pela imensidão de seus contornos, por sua complexidade ou pelos múltiplos enfoques sob as quais deve ser realizado.

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