T3: Tecnologia, Territorialidade e Telecomunicações

Fabrizzio B. Dal Piero

Estamos vendo, hoje em dia, um rápido desenvolvimento da tecnologia ou, como dizem alguns, uma explosão de tecnologia, e ela está afetando nossa estratégia militar. Mas isto não é novo. Ao longo da história a inovação tecnológica tem sido ímpeto para novas estratégias e, no final, mudanças no modo de fazer a guerra. Entretanto, para ser verdadeiramente uma revolução nos assuntos militares, as mudanças também têm que ocorrer nas normas, nos equipamentos, na organização, no treinamento, na doutrina e em tudo mais.

A tecnologia — o processo pelo qual uma sociedade produz e opera artefatos, tanto tangíveis quanto intangíveis — tem impacto sobre virtualmente todos os outros processos e estruturas da sociedade e, por sua vez, é influenciada por eles. Desde seu surgimento, assim que os seres humanos emergiram como uma espécie distinta, a tecnologia foi o instrumento que estendeu nossas capacidades biológicas tornando afinal possíveis conglomerados humanos cada vez maiores. A emergência de um sistema sócio - tecnológico complexo, a polis (uma palavra grega para designar cidade - estado), deu nome ao processo que chamamos política. A polis era uma entidade territorial e, até hoje, a política continua a ser um fenômeno eminentemente territorial. Segundo as palavras do falecido Presidente da Câmara Thomas P. ("Tip") O’Neill, "toda política é local" já que se vincula às pessoas que vivem numa região geográfica dada. Do mesmo modo, a própria soberania — fenômeno que define a esfera de poder de um ente, quer seja uma polis, quer uma nação quer um império, quer seja democrático, quer não. A economia, como emanação da polis, também pode ser vista como tendo um substrato territorial. Na sua acepção ampla de reflexão sobre custos e benefícios, porém, torna-se uma abstração não - territorial.

A tecnologia oferece possibilidades tantalizantes, não apenas do ponto de vista econômico, mas, também, do político, do militar, do ambiental e assim por diante. Nesse processo, são criadas necessidades que os economistas e os políticos tratam de satisfazer orientando a alocação de recursos e o direcionamento da tecnologia. Essas exigências podem tornar-se tão grandes, urgentes e, freqüentemente, de tal modo irreconciliáveis que se levantam dúvidas quanto ao futuro dessa mesma sociedade que a tecnologia fez possível e a sua estabilidade se vê ameaçada. Historicamente, as novas tecnologias mais importantes ao mesmo tempo em que criaram um novo universo de oportunidades têm, quase sempre, despertado preocupações quanto às direções em que a sociedade seguirá no futuro. É bem assim no caso das telecomunicações, hoje em dia, ou, melhor dizendo, com a poderosa sinergia de telecomunicações e processamento de informações que, por brevidade, chamarei apenas de "telecomunicações".

A soberania pode ser definida de muitos modos — como autonomia, independência, interferência controladora ou, com maior propriedade, no contexto deste artigo, como uma unidade política que detém a autoridade suprema sobre qualquer coisa que aconteça dentro de suas fronteiras. Entretanto, na evolução do estado democrático moderno, até essa autoridade suprema tem limites.

Existem as liberdades inerentes à cidadania, que nem mesmo a autoridade suprema do Estado pode abolir, e há as liberdades que representam franquias que os cidadãos adquirem por concessão do Estado. A soberania implica, portanto, uma esfera definidora dentro da qual ele exerce seu poder. No caso de uma nação, essa esfera é definida por suas fronteiras, embora possa estender-se além delas (por exemplo, aos navios dessa nação).

A soberania tem o imperativo de defender o controle dentro de sua esfera. A tecnologia tem sido fator tanto de reforço quanto de enfraquecimento desse controle. Basta pensar, de um lado, no poderoso armamento que só uma autoridade com o poder de lançar impostos pode dar-se ao luxo de construir e ter e, de outro lado, no impacto das telecomunicações de fora das fronteiras na antiga União Soviética ou em Cuba. De modo geral, podemos dizer que qualquer sistema tecnológico que capacite as pessoas à, por sua própria conta, passar além das fronteiras de um estado e executar atividades políticas ou econômicas além dessas fronteiras tem um impacto na soberania desse estado. Sistemas postais, Internet, livros, comércio e a rede bancária internacional, todos eles, tiveram e têm esse efeito em graus variáveis.

Mas no caso das telecomunicações e de sua sinergia com a tecnologia da informação, os impactos na soberania se tornaram dramáticos e ainda estão longe de ser entendidos no que se refere à sua natureza e magnitude. Tudo que representa a estrutura da soberania — não apenas o poder político e econômico, mas, também, a infra-estrutura em que se apoiam e, fundamentalmente, as concepções, valores e costumes dos cidadãos — tudo isso está sendo transformado por esse impacto.

Uma compreensão clara do que seja territorial — que seria pregado no solo — e do que não seja é útil para o esclarecimento ulterior do impacto das telecomunicações em política, economia e na soberania. É óbvio que qualquer processo, ente ou estrutura cravado no solo é territorial, enquanto virtualmente qualquer atividade de natureza intangível ou abstrata que pode ser transmitida como informação ou transformada em informação pode ser vista como metaterritorial.

Assim, a ciência como método, como informação, como um sistema de crenças é metaterritorial, tal qual a filosofia ou a literatura, mas o laboratório científico não é. (Contudo, através das telecomunicações, podem ser criados laboratórios científicos "virtuais" e, nesse caso, é só a interconexão de seus componentes, situados em diferentes jurisdições territoriais, que cria o laboratório que é, neste sentido, um ente quase - metaterritorial ou potencialmente metanacional.) De um modo parecido, o software ou as conversas telefônicas são metaterritoriais; os aparelhos que lhes dão suporte não são, mas a interconexão deles através de jurisdições territoriais diferentes criam um sistema metaterritorial – a "rede".

A política, como conjunto de crenças e idéias, antes que como atividade prática, também é metaterritorial. Entretanto, ela está tão intimamente vinculada com entidades tangíveis – casa, fábrica, infra-estrutura, poder militar e assim por diante – que representa com propriedade, como diz Tip O’Neill, a quintessência da territorialidade. O significado da distinção na tabela está no cerne do impacto das telecomunicações — instrumento - chave da metaterritorialidade — nos processos territoriais, os quais, enquanto territoriais, são os objetos da soberania.

Especificamente, no contexto da soberania, a metaterritorialidade se aplica a um processo ou ente que não pode ser detido numa fronteira, seja por razões de materialidade (como no caso das microondas ou dos satélites), seja por outras razões (como a alta velocidade e o grande volume das telecomunicações que desafiam qualquer controle prático).

É claro que a tecnologia das telecomunicações não começou com o rádio. Começou com o telégrafo e posteriormente com os telefones (se não considerarmos as comunicações visuais, muito mais lentas), mas o telégrafo e os telefones tradicionais interconectados por cabos têm um elemento – o cabo – que cruza tangivelmente as fronteiras nacionais e assim, em princípio, podem ser controlados mais facilmente.

As microondas, por outro lado, são intangíveis, não precisam de fios e não podem ser detidas a não ser por meios eletrônicos de barragem. Contudo, uma conexão moderna de fibra ótica, com sua amplitude de faixa gigantesca, também é difícil de monitorar e uma combinação de múltiplos caminhos de redes de fibras óticas e microondas é ainda mais difícil.

As telecomunicações penetram pelas fronteiras nacionais (e assim, potencialmente, pela soberania) de muitos modos virtualmente insusceptíveis de interrupção: informação política, econômica, cultural, e diplomática (por exemplo, "a era da transparência" produzida pelos meios de comunicação eletrônicos e pelos satélites de observação comerciais).

A comercialização eletrônica no mercado de ações e em outras bolsas, a telemedicina internacional (que agride, por exemplo, o conceito de licenciamento nacional para a prática da medicina), os empreendimentos internacionais conjuntos de engenharia, os serviços on-line e o software, todas essas atividades estão derrubando, em medida, os muros da soberania territorial tradicional e, como indicou Anne Branscombe, em 1991, desafiam as leis que governam a propriedade e o fluxo de informação. Será assim cada vez mais no futuro, mesmo que as nações tentem todo o tempo contrapor-se a essa tendência e reafirmem e defendam sua soberania em telecomunicações, por exemplo, regulamentando o acesso às ondas de hertzianas(1).

As telecomunicações, com sua digitalização, ligação com o processamento de informações, satélites, fibras óticas e assim por diante, serão uma fonte inexaurível de mudanças nos costumes sociais, econômicos e políticos. As telecomunicações globais tornarão, cada vez mais, a informação o ingrediente estratégico principal para os negócios e a indústria, produzindo uma migração acelerada de valor para os negócios baseados em informação, tornando possível à criação de miríades de telecomunidades e nos levando a uma situação mais próxima da dos mercados perfeitos. Por sua vez, a política terá de resolver conflitos entre micro e macro - otimização, entre interesses regionais e os que derivam de mercados e comunidades de interesse novos e globais, e entre o domínio tradicional da soberania nacional e a pressão das novas realidades, dos novos modos de negociar e das novas exigências sociais que transcendem fronteiras sociais. O impacto da telecomunicação na política, na economia e na soberania nacional está criando um jogo novo. É um jogo cujo campo é novo, as regras são novas, novos jogadores, novos prêmios, novos impactos sobre todos os jogadores e toda sociedade, novos modos de trapacear, novas necessidades de controlá-lo e mantê-lo honesto, novos conflitos, novas invenções e oportunidades potenciais e novas catástrofes. Esse jogo nos engolfou muito antes que fôssemos capazes de perscrutá-lo em suas complexidades e impactos, e de que nos preparássemos para ele.

O imperativo da sociedade é aceitar a realidade deste novo jogo e dar as cartas sensatamente no interregno estreito entre as telecomunicações, a política e a economia, de modo a encontrar um equilíbrio produtivo entre soberania e processos territoriais, de um lado, e a nova metaterritorialidade evidenciada pelas telecomunicações. Isto exige a criação de novas habilidades e nova compreensão que precisam incluir: Uma compreensão mais profunda do novo significado econômico e financeiro das telecomunidades internacionais e de uma economia global baseada na informação. O desenvolvimento de um novo significado e de uma nova prática da política numa era de telecomunicações e de telecomunidades.

A elaboração de um novo saber e de uma nova diplomacia das relações territoriais - metaterritorias que precisam emergir do reconhecimento do poder e da importância das telecomunidades. O desenvolvimento de protocolos para interações numa teia de telecomunidades — especialmente uma teia de dimensões globais. O desenvolvimento de uma compreensão mais clara do impacto dos intercâmbios territoriais - metaterritorias nas nossas vidas particulares. As implicações ecológicas e sustentabilidade global da economia e dos sistemas políticos tendo as telecomunicações e a informação como leitmotiv(2). A necessidade de estar alerta para a possibilidade do estabelecimento do caos no conjunto novo e complexo das telecomunidades e na relação delas com os poderes territoriais tradicionais, bem como a necessidade de compreender como evitá-lo ou controlá-lo — um imperativo político e econômico. Como ponto de partida, é necessário que haja o desenvolvimento de uma pauta nova e ampla de pesquisa socio - tecnológica com a finalidade última de fornecer à sociedade os instrumentos para jogar o novo jogo e prosperar.

Notas:

1. Relativo a propagação de ondas eletromagnéticas.

2. Motivo característico ou tema condutor freqüentemente empregado numa partitura para caracterizar um personagem, um sentimento ou uma situação; é um dos processos sistemáticos mais importantes das teorias musicais de Wagner

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