Comentário Crítico
Caetés representa na obra de Graciliano Ramos um romance de estréia em todos os sentidos. Deve ter sido realizado entre 1925 e 1928 e foi publicado em 1933; vão trazer todas as características de um exercício de estilo: fruto do Pós-naturalismo, é um romance de espaço, crônica de província, onde domina o método descritivo. João Valério, guarda-livros com veleidades literárias um ofício que se presta às divagações do espírito" é o foco narrativo deste romance. Seu amor pela mulher de Adrião Tavares, Luísa, é o momentâneo ponto de referência na vida ociosa e entediante de Palmeira dos Índios.
A estrutura ficcional de Caetés desenvolve-se e se constrói em dois planos nítidos, ora alternando-se ora entrecruzando-se: o plano interior à consciência e o plano exterior à mesma. Com ritmo desigual de alternância desses dois níveis, o personagem-narrador relata a vida sem glórias e cheia de tédio dos habitantes da cidade. A cenas coletivas passadas em casa de Luísa, na pensão, na redação do jornal em algum ambiente festivo ou a perambular pelas ruas, alternam mergulhos no íntimo de João Valério, que, em solilóquios, vai cosendo a narrativa do adultério, com seus devaneios, dúvidas, temores, mantendo assim a tensão semântica do discurso. Estas cenas ganham apoio nas observações diretas que faz o personagem, completando a visão de conjunto que Graciliano Ramos quer dar. Povoa os diálogos com interpretações do personagem principal sobre os interlocutores, comandando assim o desenvolvimento da cena e a caracterização dos personagens e ambientes. Às vezes prefere a observação crítica em separado, tornando João Valério simples observador do que se descreve: E Evaristo avançou com gravidade, pôs o chapéu e a bengala sobre a mesa empoeirada, olhou com desconfiança a palha da cadeira e sentou-se sem encostar, com medo de sujar a roupa. Maneiras detestáveis".
Entretanto não constrói com essa caracterização personagens e sim tipos ou caricaturas, à maneira de Eça de Queirós, já que todos são pura exterioridade, calcados e cristalizados em pormenores realistas que os mantêm fixos: Padre Atanásio tem orelhas grandes, Adrião é claudicante e tem beiços caídos, Doutor Liberato ajeita constantemente as lunetas. A essas observações juntam-se atitudes, tiques ou repetições propositadas. A própria Luísa, cerne das atenções de João Valério, acha-se diluída no romance, resumida em algumas atitudes e poucas frases. Nem ao menos um certo mistério de personalidade oculta. Na realidade, essa tipificação é consciente, mas o livro perde em dinâmica interna, sofrendo do defeito de uma esquematização vital. E perde sobretudo naquela passagem da experiência, no seu significado intrínseco de processo que é caracterização essencial do mundo da ficção.
O problema amoroso de João Valério é distribuído através do romance de forma a pontilhar a narrativa com suas dúvidas internas a respeito das atividades de Luísa ou a respeito de seus próprios conceitos morais e sociais. Poucos são os capítulos dominados inteiramente por sua presença. Essa técnica narrativa está intimamente relacionada com a composição do personagem central: introvertido, abúlico, fantasioso: Voam-me desejos por toda a parte, e caem, voam outros, tornam a cair, sem força para transpor não sei que barreiras. Ânsias que me devoram facilmente se exaurem em caminhadas curtas por esta campina rasa que é a minha vida. E assim, pouco a pouco, desenvolve a ação do adultério.
Se examinarmos as ações do romance consideradas como tal e não em suas relações entre si, veremos que domina uma retórica da repetição: as ações repetem-se por paralelismo, quer nos fios da narrativa quer nos detalhes (fórmulas verbais) ou por gradação uma repetição com progresso. As ações entre os personagens são praticamente repetidas em sua integridade, apenas variando as situações diversas em que ocorrem, no espaço e no tempo. Assim, o suicídio de Adrião fica deslocado e pouco entrosado em relação ao restante do relato: parece mais uma saída simplista para resolver o obstáculo que impedia o fechamento do universo ficcional.
Os personagens secundários ou, melhor dito, menos construídos, já que o conjunto se horizontaliza, ajudam a insistir nessa técnica da repetição. Padre Atanásio fala por fragmentos, Evaristo Barroca, o arrivista político, prefere frases formalistas e demagógicas, Dr. Castro, o promotor, tem uma linguagem totalmente desprovida de conteúdo informativo.
Esse manipulação repetitiva da sintaxe narrativa reforça e arcabouça a visão do mundo com que Graciliano Ramos expõe e inicia, ainda que timidamente, a linhagem dos temas fundamentais de sua obra: a sociedade reificada, a falta de comunicação humana, os indivíduos animalizados, a injustiça social, a submissão, tudo isso sempre veiculado através dos subterrâneos do espírito de algum personagem central, pertencente a classes sociais diversas mas, por motivos vários, à margem da vida.
A insistência do uso do método descritivo em Caetés faz com que o mundo apresentado de forma horizontal, sem hierarquização de fatos, na voracidade naturalista de abranger o mundo em todos seus aspectos, necessite de sentido que é constantemente injetado pela presença de imagens recorrentes que se transformam em símbolos: a garça do jardim, ou a impassibilidade e impenetrabilidade do destino que à beira da água levantava a perna inútil com displicência; a estrela insistente, estimulada pelos problemas éticos de João Valério: Altair? Aldebarã? Não conheço as estrelas nem conheço as mulheres. Que será Luísa? Que haverá nela? Não sei. Outras imagens inda tornam-se constantes como a maquinaria da usina, ou a mecânica inextrincável do destino, cujas rotações seguia com interesse e tentava adivinhar a intenção de uns ferrinhos caprichosos, e o jogo de xadrez, transpondo para outro nível a partida amorosa disputada na vida social.
O grande símbolo cujo processo de transferência de significado se desenvolve durante toda a narrativa é o do selvagem caeté. A antropofagia do selvagem comendo o Bispo Sardinha corresponde em simetria metafórica à antropofagia social de João Valério, devorando Adrião, o rival. Ao final, João Valério e caeté são sinônimos, ou melhor, Homem e Selvagem.
Não ser selvagem! Que sou eu senão um selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não sabia o que se passava na alma de um caeté! Provavelmente o que se passa na minha com algumas diferenças.
Fonte: A Literatura no Brasil/ direção Afrânio Coutinho; co-direção Eduardo de Faria Coutinho. - 4.ed.rev.e atual.-São Paulo: Global, 1997.
continuará em breve... aguardem!!!