Veneno - Um milhão e seiscentos mil quilômetros


veneno57a.gif (16107 bytes)Não sei quem mais merece admiração. Se o Gurgel destas fotos ou o sr. Ernesto. Os dois percorreram juntos um milhão seiscentos e setenta e quatro mil quilômetros. Que tal ir para a Colômbia de Gurgel? Sair para o sul, entrar na Argentina, virar lá pros lados de Mendoza — belíssima região de vinhas — encarar de frente as negras montanhas dos Andes e, com uma capotinha de lona bem das soltinhas, tocar montanha acima, mais de 4 000 metros, enfrentando temperatura abaixo de dez graus negativos... meter os peitos subindo o Chile.

Cruzar o Peru, passar pelo Equador e entrar nas selvas Colombianas. Dá pra imaginar? Você tem peito? Você agüenta? Pois é tigrão. Viramos gatinhos, pois perante um “cabra macho” como o sr. Ernesto, que hoje está perto de completar 89 anos, e que topou essa e outras paradas já com mais de 60 anos nas costas só nos resta miar. — Miau!

O sr. Ernesto, austríaco de nascimento, agrônomo da indústria Basf de Defensivos Agrícolas, é umveneno57b.gif (19777 bytes) especialista em doenças de plantas tropicais. Rodou a América do Sul inteira ao longo das décadas de 50, 60, 70 e 80. Mais de trinta anos por tudo quanto é estrada de terra que havia. “Quando comecei a percorrer o Brasil, na década de 50, o asfalto acabava em Campinas, dalí pra frente era estrada de terra e estrada boiadeira, ou senão não tinha estrada mesmo”, nos conta sr. Ernesto.

Carros em suas mãos não duravam um ano. Fusca, Jeep, Rural, Kombi, todos se liquefaziam. Motores a ar da Volks não chegavam a durar 80 000 km e já fundiam. Não tem problema, pega um carro novo e toca pro Ceará, Pará, Acre, Maranhão, Mato Grosso... tudo por terra. Coisa de macho. Coisa de gente determinada.

Em 1970, seu filho lhe disse que estavam fazendo carros de “plástico” lá em Rio Claro. Seu Ernesto, já cheio desses “carrinhos descartáveis”, resolve investigar e visita a recém-inaugurada fábrica da Gurgel para conhecer os tais “jeep de fibra de vidro e com motor da Volks”.

“Quando o entusiasta sr. João Gurgel — proprietário da fábrica — ficou sabendo do uso que eu pretendia dar ao seu carro, logo veio falar comigo e fizemos um acordo onde eu seria uma espécie de piloto de testes para relatar todos os problemas que surgissem”, conta Ernesto; “em compensação eu teria todas as modificações que pedisse, sem ônus”.

“O maior problema constatado foi o superaquecimento do motor. Esse motor foi idealizado para evitar os problemas do congelamento da água do radiador. Naquele tempo, década de trinta quando foi projetado, ainda não havia produtos que evitassem o congelamento da água, então, ou guardava-se o carro na garagem ou éramos obrigados a esvaziar o radiador para que não estourasse, diz Ernesto, o Fusca, carro do povo, era para ser um automóvel destinado ao consumidor que não tivesse poder aquisitivo para possuir garagem. O Fusca era pra dormir na rua mesmo, humilde”.

“Primeira providência que tomamos foi a colocação de relógios de temperatura e pressão de óleo. Constatamos que a temperatura ideal para funcionamento desse motor girava em torno de 95 graus. Acima disso, o óleo perdia a viscosidade e o atrito decorrente desgastava o motor. Solução: adaptamos mais um radiador de óleo dentro da ventoinha, agora, em vez de um só, tínhamos dois em seqüencia. Além disso, para aumentar o fluxo de bombeamento do óleo, trocamos a bomba original pela do SP2, que bombeia 35% mais volume”, dá a dica.

“Quando eu ia para o frio — Argentina, Uruguai, Rio Grande do Sul— eu punha óleo 20 ou 40. Quando ia pro Norte e Nordeste, trocava o óleo para o Aero-Shell, que era de aviação e podia atingir maiores temperaturas sem perda de viscosidade”, orienta Ernesto.

Com isso, conseguiram baixar a temperatura dos 110 para os 90 a 95 graus. Resultado: o motor assim adaptado, um VW 1 500, rodou incríveis 470 mil quilômetros sem problemas. Dá pra acreditar? Pois é verdade. E não rodou folgadinho não. Foi só pauleira, extremos de calor amazonense ao frio andino.
As pessoas normalmente acham que esse motor, por ser refrigerado a ar, não tem problemas de superaquecimento. Mas é puro engano. Acham que ele foi idealizado para suportar a guerra no deserto do norte da África, com sua dificuldade em achar água, mas é engano também. Esse é um motor que requer cuidados na refrigeração. Portanto, quem deseja envenená-los (imagina eu pensar numa coisa dessas?), deve cuidar muito bem da refrigeração, e essas soluções do sr. Ernesto devem ser consideradas e bem-vindas.

Problemas com atoleiros? Solução fácil e muito prática tirada dos freios de tratores: freio de mão duplo. Além da alavanca normal do freio de mão, o X12 tinha dois comandos de freio de mão — um para cada roda traseira —assim, quando o carro atolava, empurrava-se os dois comandos com uma só mão, engatava-se a marcha e soltava-se a embreagem. O comando que vibrasse seria o da roda que estava com patinação, então, travava-se este e soltava-se o outro.

veneno57d.gif (17640 bytes)O carro tracionava a roda que estava no terreno mais firme e saía. Hoje, computadores fazem isso para nós e colocam no sistema um putz dum nome complicado — “fly by idiotiscransen” por exemplo, mas que no fundo funciona do mesmo jeitão mesmo. Problemas de agricultura de clima temperado? (mais frio que por aqui em SP, aqui é agricultura tropical). Problemas na Argentina? Manda o sr. Ernesto, o homem resolve. E toca ele montar no Gurgel e mirar o bichinho pro sul... Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Uruguai — tá esfriando — Pampas argentinos, vento minuano cruzando a estrada e a cabine aberta do Gurgel, até chegar à Patagônia. Vento que jogava o Gurgelzinho de lá pra cá, feito um barquinho numa tempestade.

Na Argentina, década de 70, eram tantas as tradicionais corridas de carreteras — foi assim que Fangio começou a carreira nos idos de 40 — por aquelas estradas de terra, que Ernesto adaptou uma grade à frente do vidro pára-brisa. Era muita pedra que voava daqueles malucos que passavam a 170, 180 por hora, naquelas intermináveis retas cascalhadas argentinas... seu Ernesto, de Gurgelzinho azul, a uns oitentinha, carregado de caixas de plantas para estudos, engolindo tanto pó que se cuspisse sairiam tijolos, e carrões de tudo quanto é tipo, sem pára-lamas, motores V8 preparados com mais de trezentos cavalos... rroooaaammm... e seu Ernesto lá... tchic, tchic, tchic... coff, coff, coff.
E tudo isso pra quê?

“Uma planta, por exemplo, um tomateiro, cria diferentes características de folhas e frutos dependendo doveneno57c.gif (18955 bytes) clima. Mais quente, mais frio, mais seco, mais úmido. Num clima mais seco seus ‘poros’ são mais fechados para evitar transpiração, daí que, por essas e muitas outras as plantas reagem de modo diferente aos defensivos aplicados, dependendo do ambiente onde está. Era isso que eu tinha que descobrir”. explica sr. Ernesto.

Portanto, meus amigos, tiremos nossos chapéus ou bonés para essa valente dupla. Muitos cultivos na América do Sul foram possíveis devido ao esforço desse homem e seu inseparável Gurgel. P.S. Quando fui entrevistar o sr. Ernesto, o seu Gurgel X12 estava numa garagem que tinha uma rampa logo à sua entrada. Ele estava sem bateria e com dois pneus murchos. Se nós o empurrássemos para fora, para as fotos, teríamos muita dificuldade em recolocá-lo no seu devido lugar. Não quis incomodar nosso amigo Ernesto. Achei melhor ouvir o que ele tinha para contar de suas aventuras e narrar uma parte delas pra vocês... tigrões felpudos de almofada. Miau!!
Abração do amigo gatinho angorá,


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Por Arnaldo Keller

 

Material original do Site do Jornal PRIMEIRA MÃO

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Dica sobre esta matéria enviada por
Samuel Correa Bueno

 


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First on air on 13OCT2002