INTRODUÇÃO
1. O Evangelho da vida está no centro da mensagem de Jesus.
Amorosamente acolhido cada dia pela Igreja, há de ser fiel e
corajosamente anunciado como boa nova aos homens de todos os tempos e
culturas.
Na aurora da salvação, é proclamado como feliz notícia o nascimento
de um menino: « Anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o
povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias,
Senhor » (Lc 2, 10-11). O motivo imediato que faz irradiar esta «
grande alegria » é, sem dúvida, o nascimento do Salvador; mas, no
Natal, manifesta-se também o sentido pleno de todo o nascimento humano,
pelo que a alegria messiânica se revela fundamento e plenitude da alegria
por cada criança que nasce (cf. Jo 16, 21).
Ao apresentar o núcleo central da sua missão redentora, Jesus diz: «
Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância » (Jo 10,
10). Ele fala daquela vida « nova » e « eterna » que consiste na
comunhão com o Pai, à qual todo o homem é gratuitamente chamado no
Filho, por obra do Espírito Santificador. Mas é precisamente em tal «
vida » que todos os aspectos e momentos da vida do homem adquirem pleno
significado.
O valor incomparável da pessoa humana
2. O homem é chamado a uma plenitude de vida que se estende muito para
além das dimensões da sua existência terrena, porque consiste na
participação da própria vida de Deus.
A sublimidade desta vocação sobrenatural revela a grandeza e o
valor precioso da vida humana, inclusive já na sua fase temporal.
Com efeito, a vida temporal é condição basilar, momento inicial e parte
integrante do processo global e unitário da existência humana: um
processo que, para além de toda a expectativa e merecimento, fica
iluminado pela promessa e renovado pelo dom da vida divina, que alcançará
a sua plena realização na eternidade (cf. 1 Jo 3, 1-2). Ao mesmo
tempo, porém, o próprio chamamento sobrenatural sublinha a relatividade
da vida terrena do homem e da mulher. Na verdade, esta vida não é
realidade « última », mas « penúltima »; trata-se, em todo o caso,
de uma realidade sagrada que nos é confiada para a guardarmos com
sentido de responsabilidade e levarmos à perfeição no amor pelo dom de
nós mesmos a Deus e aos irmãos.
A Igreja sabe que este Evangelho da vida, recebido do seu
Senhor,1 encontra um eco profundo e persuasivo no coração de cada
pessoa, crente e até não crente, porque se ele supera infinitamente as
suas aspirações, também lhes corresponde de maneira admirável. Mesmo
por entre dificuldades e incertezas, todo o homem sinceramente aberto à
verdade e ao bem pode, pela luz da razão e com o secreto influxo da graça,
chegar a reconhecer, na lei natural inscrita no coração (cf. Rm 2,
14-15), o valor sagrado da vida humana desde o seu início até ao seu
termo, e afirmar o direito que todo o ser humano tem de ver plenamente
respeitado este seu bem primário. Sobre o reconhecimento de tal direito
é que se funda a convivência humana e a própria comunidade política.
De modo particular, devem defender e promover este direito os crentes
em Cristo, conscientes daquela verdade maravilhosa, recordada pelo Concílio
Vaticano II: « Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-Se de
certo modo a cada homem ».2 De fato, neste acontecimento da salvação,
revela-se à humanidade não só o amor infinito de Deus que « amou de
tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único » (Jo 3, 16), mas
também o valor incomparável de cada pessoa humana.
A Igreja, perscrutando assiduamente o mistério da Redenção, descobre
com assombro incessante 3 este valor, e sente-se chamada a anunciar aos
homens de todos os tempos este « evangelho », fonte de esperança invencível
e de alegria verdadeira para cada época da história. O Evangelho do
amor de Deus pelo homem, o Evangelho da dignidade da pessoa e o Evangelho
da vida são um único e indivisível Evangelho.
É por este motivo que o homem, o homem vivo, constitui o primeiro e
fundamental caminho da Igreja.4
As novas ameaças à vida humana
3. Precisamente por causa do mistério do Verbo de Deus que Se fez
carne (cf. Jo 1, 14), cada homem está confiado à solicitude
materna da Igreja. Por isso, qualquer ameaça à dignidade e à vida do
homem não pode deixar de se repercutir no próprio coração da Igreja,
é impossível não a tocar no centro da sua fé na encarnação redentora
do Filho de Deus, não pode passar sem a interpelar na sua missão de
anunciar o Evangelho da vida pelo mundo inteiro a toda a criatura
(cf. Mc 16, 15).
Hoje, este anúncio torna-se particularmente urgente pela
impressionante multiplicação e agravamento das ameaças à vida das
pessoas e dos povos, sobretudo quando ela é débil e indefesa. Às
antigas e dolorosas chagas da miséria, da fome, das epidemias, da violência
e das guerras, vêm-se juntar outras com modalidades inéditas e dimensões
inquietantes.
Já o Concílio Vaticano II, numa página de dramática atualidade,
deplorou fortemente os múltiplos crimes e atentados contra a vida humana.
À distância de trinta anos e fazendo minhas as palavras da Assembléia
Conciliar, uma vez mais e com idêntica força os deploro em nome da
Igreja inteira, com a certeza de interpretar o sentimento autêntico de
toda a consciência reta: « Tudo quanto se opõe à vida, como seja toda
a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio
voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as
mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para
violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da
pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões
arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio
de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em
que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não
como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras
semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização
humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem
injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador ».5
4. Infelizmente, este panorama inquietante, longe de diminuir, tem
vindo a dilatar-se: com as perspectivas abertas pelo progresso científico
e tecnológico, nascem outras formas de atentados à dignidade do ser
humano, enquanto se delínea e consolida uma nova situação cultural que
dá aos crimes contra a vida um aspecto inédito e — se é possível
— ainda mais iníquo, suscitando novas e graves preocupações:
amplos sectores da opinião pública justificam alguns crimes contra a
vida em nome dos direitos da liberdade individual e, sobre tal
pressuposto, pretendem não só a sua impunidade mas ainda a própria
autorização da parte do Estado para os praticar com absoluta liberdade
e, mais, com a colaboração gratuita dos Serviços de Saúde.
Ora, tudo isto provoca uma profunda alteração na maneira de
considerar a vida e as relações entre os homens. O fato de as legislações
de muitos países, afastando-se quiçá dos próprios princípios
basilares das suas Constituições, terem consentido em não punir ou
mesmo até reconhecer a plena legitimidade de tais ações contra a vida,
é conjuntamente sintoma preocupante e causa não marginal de uma grave
derrocada moral: opções, outrora consideradas unanimemente criminosas e
rejeitadas pelo senso moral comum, tornam-se pouco a pouco socialmente
respeitáveis. A própria medicina que, por vocação, se orienta para a
defesa e cuidado da vida humana, em alguns dos seus sectores vai-se
prestando em escala cada vez maior a realizar tais atos contra a pessoa,
e, deste modo, deforma o seu rosto, contradiz-se a si mesma e humilha a
dignidade de quantos a exercem. Em semelhante contexto cultural e legal,
os graves problemas demográficos, sociais ou familiares — que incidem
sobre numerosos povos do mundo e exigem a atenção responsável e
operante das comunidades nacionais e internacionais —, encontram-se também
sujeitos a soluções falsas e ilusórias, em contraste com a verdade e o
bem das pessoas e das nações.
O resultado de tudo isto é dramático: se é muitíssimo grave e
preocupante o fenômeno da eliminação de tantas vidas humanas nascentes
ou encaminhadas para o seu ocaso, não o é menos o fato de à própria
consciência, ofuscada por tão vastos condicionalismos, lhe custar cada
vez mais a perceber a distinção entre o bem e o mal, precisamente
naquilo que toca o fundamental valor da vida humana.
Em comunhão com todos os Bispos do mundo
5. Ao problema das ameaças à vida humana no nosso tempo, foi dedicado
o Consistório Extraordinário dos Cardeais, realizado em Roma de 4
a 7 de Abril de 1991. Depois de amplo e profundo debate do problema e dos
desafios postos à família humana inteira e, de modo particular, à
Comunidade cristã, os Cardeais, com voto unânime, pediram-me que
reafirmasse, com a autoridade do Sucessor de Pedro, o valor da vida humana
e a sua inviolabilidade, à luz das circunstâncias atuais e dos atentados
que hoje a ameaçam.
Acolhendo tal pedido, no Pentecostes de 1991 escrevi uma carta
pessoal a cada Irmão no Episcopado para que, em espírito de
colegialidade, me oferecesse a sua colaboração com vista à elaboração
de um específico documento.6 Agradeço profundamente a todos os Bispos
que responderam, fornecendo-me preciosas informações, sugestões e
propostas. Deram também assim testemunho da sua participação
concorde e convicta na missão doutrinal e pastoral da Igreja acerca do Evangelho
da vida.
Nessa mesma carta, que fora enviada poucos dias depois da celebração
do centenário da Encíclica Rerum novarum, chamava a atenção de
todos para esta singular analogia: « Como há um século, oprimida nos
seus direitos fundamentais era a classe operária, e a Igreja com grande
coragem tomou a sua defesa, proclamando os sacrossantos direitos da pessoa
do trabalhador, assim agora, quando outra categoria de pessoas é oprimida
no direito fundamental à vida, a Igreja sente que deve, com igual
coragem, dar voz a quem a não tem. O seu é sempre o grito evangélico em
defesa dos pobres do mundo, de quantos estão ameaçados, desprezados e
oprimidos nos seus direitos humanos ».7
Espezinhada no direito fundamental à vida, é hoje uma grande multidão
de seres humanos débeis e indefesos, como o são, em particular, as crianças
ainda não nascidas. Se, ao findar do século passado, não fora
consentido à Igreja calar perante as injustiças então reinantes, menos
ainda pode ela calar hoje, quando às injustiças sociais do passado —
infelizmente ainda não superadas — se vêm somar, em tantas partes do
mundo, injustiças e opressões ainda mais graves, mesmo se disfarçadas
em elementos de progresso com vista à organização de uma nova ordem
mundial.
A presente Encíclica, fruto da colaboração do Episcopado de cada país
do mundo, quer ser uma reafirmação precisa e firme do valor da vida
humana e da sua inviolabilidade, e, conjuntamente, um ardente apelo
dirigido em nome de Deus a todos e cada um:respeita, defende, ama e
serve a vida, cada vida humana! Unicamente por esta estrada, encontrarás
justiça, progresso, verdadeira liberdade, paz e felicidade!
Cheguem estas palavras a todos os filhos e filhas da Igreja! Cheguem a
todas as pessoas de boa vontade, solícitas pelo bem de cada homem e
mulher e pelo destino da sociedade inteira!
6. Em profunda comunhão com cada irmão e irmã na fé e animado por
sincera amizade para com todos, quero meditar de novo e anunciar o
Evangelho da vida, clara luz que ilumina as consciências, esplendor
de verdade que cura o olhar ofuscado, fonte inexaurível de constância e
coragem para enfrentar os desafios sempre novos que encontramos no nosso
caminho.
Tendo no pensamento a rica experiência vivida durante o Ano da Família,
e quase completando idealmente a Carta que dirigi « a cada família
concreta de cada região da terra »,8 olho com renovada confiança para
todas as comunidades domésticas e faço votos por que renasça ou se
reforce, em todos e aos diversos níveis, o compromisso de apoiarem a família,
para que também hoje — mesmo no meio de numerosas dificuldades e graves
ameaças — ela se conserve sempre, segundo o desígnio de Deus, como «
santuário da vida ».9
A todos os membros da Igreja, povo da vida e pela vida, dirijo o
mais premente convite para que, juntos, possamos dar novos sinais de
esperança a este nosso mundo, esforçando-nos por que cresçam a justiça
e a solidariedade e se afirme uma nova cultura da vida humana, para a
edificação de uma autêntica civilização da verdade e do amor.
CAPÍTULO I
A VOZ DO SANGUE DO TEU IRMÃO CLAMA DA TERRA ATÉ MIM
AS ATUAIS AMEAÇAS À VIDA HUMANA
« Caim levantou a mão contra o irmão Abel matou-o » (Gn 4,
8): na raiz da violência contra a vida
7. « Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não Lhe dá
nenhuma alegria. Porquanto Ele criou tudo para a existência. (...) Com
efeito, Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e fê-lo à
imagem da sua própria natureza. Por inveja do demônio é que a morte
entrou no mundo e prová-la-ão os que pertencem ao demônio » (Sab
1, 13-14; 2, 23-24).
O Evangelho da vida, que ressoa, logo ao princípio, com a criação
do homem à imagem de Deus para um destino de vida plena e perfeita (cf. Gn
2, 7; Sab 9, 2-3), vê-se contestado pela experiência
dilacerante da morte que entra no mundo, lançando o espectro da
falta de sentido sobre toda a existência do homem.
A morte entra por causa da inveja do diabo (cf. Gn 3, 1.4-5) e
do pecado dos primeiros pais (cf. Gn 2, 17; 3, 17-19). E entra de
modo violento, através do assassínio de Abel por obra do seu irmão: «
Logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão contra o irmão Abel e
matou-o » (Gn 4, 8).
Este primeiro assassínio é apresentado, com singular eloqüência,
numa página paradigmática do Livro do Gênesis: página transcrita cada
dia, sem cessar e com degradante repetição, no livro da história dos
povos.
Queremos ler de novo, juntos, esta página bíblica, que, apesar do seu
aspecto arcaico e extrema simplicidade, se apresenta riquíssima de
ensinamentos.
« Abel foi pastor; e Caim, lavrador. Ao fim de algum tempo, Caim
apresentou ao Senhor uma oferta de frutos da terra. Por seu lado, Abel
ofereceu primogênitos do seu rebanho e as gorduras deles. O Senhor olhou
favoravelmente para Abel e para a sua oferta, mas não olhou para Caim nem
para a sua oferta.
Caim ficou muito irritado e o rosto transtornou-se-lhe. O Senhor
disse a Caim: "Porque estás zangado e o teu rosto abatido? Se
procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto; se procederes mal,
o pecado deitar-se-á à tua porta e andará a espreitar-te. Cuidado, pois
ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo".
Entretanto, Caim disse a Abel, seu irmão: "Vamos ao
campo". Porém, logo que chegaram ao campo, Caim levantou a mão
contra o irmão Abel e matou-o.
O Senhor disse a Caim: "Onde está Abel, teu irmão?" Caim
respondeu: "Não sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão?"
O Senhor replicou: "Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama
da terra até Mim. De futuro, serás maldito sobre a terra que abriu a sua
boca para beber da tua mão o sangue do teu irmão. Quando a cultivares,
negar-te-á as suas riquezas. Serás vagabundo e fugitivo sobre a
terra".
Caim disse ao Senhor: "A minha culpa é grande demais para
obter perdão! Expulsas-me hoje desta terra; obrigado a ocultar-me longe
da tua face, terei de andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o primeiro
a encontrar-me matar-me-á".
O Senhor respondeu: "Não, se alguém matar Caim, será
castigado sete vezes mais". E o Senhor marcou-o com um sinal, a fim
de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar. Caim afastou-se da
presença do Senhor e foi residir na região de Nod, ao oriente do Éden
» (Gn 4, 2-16).
8. Caim está « muito irritado » e tem o rosto « transtornado »,
porque « o Senhor olhou favoravelmente para Abel e para a sua oferta » (Gn
4, 4). O texto bíblico não revela o motivo pelo qual Deus preferiu o
sacrifício de Abel ao de Caim; mas indica claramente que, mesmo
preferindo a oferta de Abel, não interrompe o seu diálogo com Caim. Acautela-o,
recordando-lhe a sua liberdade frente ao mal: o homem não está de
forma alguma predestinado para o mal. Certamente, à semelhança de Adão,
ele é tentado pela força maléfica do pecado que, como um animal feroz,
se agacha à porta do seu coração, à espera de lançar-se sobre a
presa. Mas Caim permanece livre diante do pecado. Pode e deve dominá-lo:
« Cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo
» (Gn 4, 7).
Sobre a advertência feita pelo Senhor, porém, levam a melhor o ciúme
e a ira, e Caim atira-se contra o próprio irmão e mata-o. Como lemos
no Catecismo da Igreja Católica, « a Sagrada Escritura, na
narrativa da morte de Abel por seu irmão Caim, revela, desde os primórdios
da história humana, a presença no homem da cólera e da inveja, conseqüências
do pecado original. O homem tornou-se inimigo do seu semelhante ».10
O irmão mata o irmão. Como naquele primeiro fratricídio, também
em cada homicídio é violado o parentesco « espiritual » que
congrega os homens numa única grande família,11 sendo todos
participantes do mesmo bem fundamental: a igual dignidade pessoal. E, não
raro, resulta violado também o parentesco « da carne e do sangue », quando,
por exemplo, as ameaças à vida se verificam ao nível do relacionamento
pais e filhos, como sucede com o aborto ou quando, no mais vasto contexto
familiar ou de parentela, é encorajada ou provocada a eutanásia.
Na raiz de qualquer violência contra o próximo, há uma cedência
à « lógica » do maligno, isto é, daquele que « foi assassino
desde o princípio » (Jo 8, 44), como nos recorda o apóstolo João:
« Porque esta é a mensagem que ouvistes desde o princípio: que nos
amemos uns aos outros. Não seja como Caim que era do maligno, e matou o
seu irmão » (1 Jo 3, 11-12). Assim o assassinato do irmão, desde
os alvores da história, é o triste testemunho de como o mal progride com
rapidez impressionante: à revolta do homem contra Deus no paraíso
terreal segue-se a luta mortal do homem contra o homem.
Depois do crime, Deus intervém para vingar a vítima. Frente a
Deus que o interroga sobre a sorte de Abel, Caim, em vez de se mostrar
confundido e desculpar-se, esquiva-se à pergunta com arrogância: « Não
sei dele. Sou, porventura, guarda do meu irmão? » (Gn 4, 9). «
Não sei dele »: com a mentira, Caim procura encobrir o crime. Assim
aconteceu freqüentemente e continua a verificar-se quando se servem das
mais diversas ideologias para justificar e mascarar os crimes mais atrozes
contra a pessoa. « Sou, porventura, guarda do meu irmão? »: Caim
não quer pensar no irmão, e recusa-se a assumir aquela responsabilidade
que cada homem tem pelo outro. Saltam espontaneamente ao pensamento as
tendências atuais para sonegar a responsabilidade do homem pelo seu
semelhante, de que são sintomas, entre outros, a falta de solidariedade
com os membros mais débeis da sociedade — como são os idosos, os
doentes, os imigrantes, as crianças —, e a indiferença que tantas
vezes se registra nas relações entre os povos, mesmo quando estão em
jogo valores fundamentais como a sobrevivência, a liberdade e a paz.
9. Mas Deus não pode deixar impune o crime: da terra onde foi
derramado, o sangue da vítima exige que Ele faça justiça (cf. Gn 37,
26; Is 26, 21; Ez 24, 7-8). Deste texto, a Igreja retirou a
denominação de « pecados que bradam ao Céu », incluindo em primeiro
lugar o homicídio voluntário.12 Para os hebreus, como para muitos povos
da antiguidade, o sangue é a sede da vida, ou melhor « o sangue é a
vida » (Dt 12, 23), e a vida, sobretudo a humana, pertence
unicamente a Deus: por isso, quem atenta contra a vida do homem, de
algum modo atenta contra o próprio Deus.
Caim é amaldiçoado por Deus como também pela terra, que lhe
recusará os seus frutos (cf. Gn 4, 11-12). E é punido: habitará
em terras agrestes e desertas. A violência homicida altera profundamente
o ambiente da vida do homem. A terra, que era o « jardim do Éden » (Gn
2, 15), lugar de abundância, de serenas relações interpessoais e de
amizade com Deus, torna-se o « país de Nod » (Gn 4, 16), lugar
de « miséria », de solidão e de afastamento de Deus. Caim será «
fugitivo e vagabundo pela terra » (Gn 4, 14): dúvida e
instabilidade sempre o acompanharão.
Contudo Deus, misericordioso mesmo quando castiga, « marcou 1 com
um sinal, a fim de nunca ser morto por quem o viesse a encontrar » (Gn
4, 15): põe-lhe um sinal, cujo objetivo não é condená-lo à
abominação dos outros homens, mas protegê-lo e defendê-lo daqueles que
o quiserem matar, ainda que seja para vingar a morte de Abel. Nem
sequer o homicida perde a sua dignidade pessoal e o próprio Deus Se
constitui seu garante. E é precisamente aqui que se manifesta o mistério
paradoxal da justiça misericordiosa de Deus, como escreve Santo Ambrósio:
« Visto que tinha sido cometido um fratricídio — ou seja, o maior dos
crimes —, no momento em que se introduziu o pecado, teve imediatamente
de ser ampliada a lei da misericórdia divina; para que, caso o castigo
atingisse imediatamente o culpado, não sucedesse que os homens, ao
punirem, não usassem de qualquer tolerância nem mansidão, mas
entregassem imediatamente ao castigo os culpados. (...) Deus repeliu Caim
da sua presença e, renegado pelos seus pais, como que o desterrou para o
exílio de uma habitação separada, pelo fato de ter passado da mansidão
humana à crueldade selvagem. Todavia Deus não quer punir o homicida com
um homicídio, porque prefere o arrependimento do pecador à sua morte ».13
« Que fizeste? » (Gn 4, 10): o eclipse do valor da
vida
10. O Senhor disse a Caim: « Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão
clama da terra até Mim » (Gn 4, 10). A voz do sangue derramado
pelos homens não cessa de clamar, de geração em geração,
assumindo tons e acentos sempre novos e diversos.
A pergunta do Senhor « que fizeste? », à qual Caim não se pode
esquivar, é dirigida também ao homem contemporâneo, para que tome
consciência da amplitude e gravidade dos atentados à vida que continuam
a registrar-se na história da humanidade, para que vá à procura das múltiplas
causas que os geram e alimentam, e, enfim, para que reflita com extrema
seriedade sobre as conseqüências que derivam desses mesmos atentados
para a existência das pessoas e dos povos.
Algumas ameaças provêm da própria natureza, mas são agravadas pelo
descuido culpável e pela negligência dos homens que, não raro, lhes
poderiam dar remédio; outras, ao contrário, são fruto de situações de
violência, de ódio, de interesses contrapostos, que induzem homens a
agredirem outros homens com homicídios, guerras, massacres, genocídios.
Como não pensar na violência causada à vida de milhões de seres
humanos, especialmente crianças, constrangidos à miséria, à subnutrição
e à fome, por causa da iníqua distribuição das riquezas entre os povos
e entre as classes sociais? Ou na violência inerente às guerras, e ainda
antes delas, ao escandaloso comércio de armas, que favorece o torvelinho
de tantos conflitos armados que ensangüentam o mundo? Ou então na
sementeira de morte que se provoca com a imprudente alteração dos equilíbrios
ecológicos, com a criminosa difusão da droga, ou com a promoção do uso
da sexualidade segundo modelos que, além de serem moralmente inaceitáveis,
acarretam ainda graves riscos para a vida? É impossível registrar de
modo completo a vasta gama das ameaças à vida humana, tantas são as
formas, abertas ou camufladas, de que se revestem no nosso tempo!
11. Mas queremos concentrar a nossa atenção, de modo particular,
sobre outro gênero de atentados, relativos à vida nascente e
terminal, que apresentam novas características em relação ao passado
e levantam problemas de singular gravidade: é que, na consciência coletiva,
aqueles tendem a perder o caráter de « crimes » para assumir,
paradoxalmente, o caráter de « direitos », a ponto de se pretender um
verdadeiro e próprio reconhecimento legal da parte do Estado e a conseqüente
execução gratuita por intermédio dos profissionais da saúde. Tais
atentados ferem a vida humana em situações de máxima fragilidade,
quando se acha privada de qualquer capacidade de defesa. Mais grave ainda
é o fato de serem consumados, em grande parte, mesmo no seio e por obra
da família que está, pelo contrário, chamada constitutivamente a ser «
santuário da vida ».
Como se pôde criar semelhante situação? Há que tomar em consideração
diversos fatores. Como pano de fundo, existe uma crise profunda da
cultura, que gera cepticismo sobre os próprios fundamentos do
conhecimento e da ética e torna cada vez mais difícil compreender
claramente o sentido do homem, dos seus direitos e dos seus deveres. A
isto, vêm juntar-se as mais diversas dificuldades existenciais e
interpessoais, agravadas pela realidade de uma sociedade complexa, onde freqüentemente
as pessoas, os casais, as famílias são deixadas sozinhas
a braços com os seus problemas. Não faltam situações de particular
pobreza, angústia e exasperação, onde a luta pela sobrevivência, a dor
nos limites do suportável, as violências sofridas, especialmente aquelas
que investem as mulheres, tornam por vezes exigentes até ao heroísmo as
opções de defesa e promoção da vida.
Tudo isto explica — pelo menos em parte — como possa o valor da
vida sofrer hoje uma espécie de « eclipse », apesar da consciência não
cessar de o apontar como valor sagrado e intocável; e comprova-o o próprio
fenômeno de se procurar encobrir alguns crimes contra a vida nascente ou
terminal com expressões de âmbito terapêutico, que desviam o olhar do fato
de estar em jogo o direito à existência de uma pessoa humana
concreta.
12. Com efeito, se muitos e graves aspectos da problemática social
atual podem, de certo modo, explicar o clima de difusa incerteza moral e,
por vezes, atenuar a responsabilidade subjetiva no indivíduo, não é
menos verdade que estamos perante uma realidade mais vasta que se pode
considerar como verdadeira e própria estrutura de pecado, caracterizada
pela imposição de uma cultura anti-solidária, que em muitos casos se
configura como verdadeira « cultura de morte ». É ativamente promovida
por fortes correntes culturais, econômicas e políticas, portadoras de
uma concepção eficientista da sociedade.
Olhando as coisas deste ponto de vista, pode-se, em certo sentido,
falar de uma guerra dos poderosos contra os débeis: a vida que
requereria mais acolhimento, amor e cuidado, é reputada inútil ou
considerada como um peso insuportável, e, conseqüentemente, rejeitada sob
múltiplas formas. Todo aquele que, pela sua enfermidade, a sua deficiência
ou, mais simplesmente ainda, a sua própria presença, põe em causa o
bem-estar ou os hábitos de vida daqueles que vivem mais avantajados,
tende a ser visto como um inimigo do qual defender-se ou um inimigo a
eliminar. Desencadeia-se assim uma espécie de « conjura contra a vida
». Esta não se limita apenas a tocar os indivíduos nas suas relações
pessoais, familiares ou de grupo, mas alarga-se muito para além até
atingir e subverter, a nível mundial, as relações entre os povos e os
Estados.
13. Para facilitar a difusão do aborto, foram investidas — e
continuam a sê-lo — somas enormes, destinadas à criação de fármacos
que tornem possível a morte do feto no ventre materno, sem necessidade de
recorrer à ajuda do médico. A própria investigação científica, neste
âmbito, parece quase exclusivamente preocupada em obter produtos cada vez
mais simples e eficazes contra a vida e, ao mesmo tempo, capazes de
subtrair o aborto a qualquer forma de controlo e responsabilidade social.
Afirma-se freqüentemente que a contracepção, tornada segura e
acessível a todos, é o remédio mais eficaz contra o aborto. E depois
acusa-se a Igreja Católica de, na realidade, favorecer o aborto, porque
continua obstinadamente a ensinar a ilicitude moral da contracepção.
Bem vista, porém, a objeção é falaciosa. De fato, pode acontecer
que muitos recorram aos contraceptivos com a intenção também de evitar
depois a tentação do aborto. Mas os pseudo-valores inerentes à «
mentalidade contraceptiva » — muito diversa do exercício responsável
da paternidade e maternidade, atuada no respeito pela verdade plena do ato
conjugal — são tais que tornam ainda mais forte essa tentação,
na eventualidade de ser concebida uma vida não desejada. De fato, a
cultura pró-aborto aparece sobretudo desenvolvida nos mesmos ambientes que
recusam o ensinamento da Igreja sobre a contracepção. Certo é que a
contracepção e o aborto são males especificamente diversos do
ponto de vista moral: uma contradiz a verdade integral do ato sexual
enquanto expressão própria do amor conjugal, o outro destrói a vida de
um ser humano; a primeira opõe-se à virtude da castidade matrimonial, o
segundo opõe-se à virtude da justiça e viola diretamente o preceito
divino « não matarás ».
Mas, apesar de terem natureza e peso moral diversos, eles surgem, com
muita freqüência, intimamente relacionados como frutos da mesma planta.
É verdade que não faltam casos onde, à contracepção e ao próprio
aborto se vem juntar a pressão de diversas dificuldades existenciais que,
no entanto, não podem nunca exonerar do esforço de observar plenamente a
lei de Deus. Mas, em muitíssimos outros casos, tais práticas afundam as
suas raízes numa mentalidade hedonista e desresponsabilizadora da
sexualidade, e supõem um conceito egoísta da liberdade que vê na
procriação um obstáculo ao desenvolvimento da própria personalidade. A
vida que poderia nascer do encontro sexual torna-se assim o inimigo que se
há de evitar absolutamente, e o aborto a única solução possível
diante de uma contracepção falhada.
Infelizmente, emerge cada vez mais a estreita conexão que existe, a nível
de mentalidade, entre as práticas da contracepção e do aborto, como o
demonstra, de modo alarmante, a produção de fármacos, dispositivos
intra-uterinos e preservativos, os quais, distribuídos com a mesma
facilidade dos contraceptivos, atuam na prática como abortivos nos
primeiros dias de desenvolvimento da vida do novo ser humano.
14. Também as várias técnicas de reprodução artificial, que
pareceriam estar ao serviço da vida e que, não raro, são praticadas com
essa intenção, na realidade abrem a porta a novos atentados contra a
vida. Para além do fato de serem moralmente inaceitáveis, porquanto
separam a procriação do contexto integralmente humano do ato conjugal,14 essas técnicas
registram altas percentagens de insucesso: este
diz respeito não tanto à fecundação como sobretudo ao desenvolvimento
sucessivo do embrião, sujeito ao risco de morte em tempos geralmente
muito breves. Além disso, são produzidos às vezes embriões em número
superior ao necessário para a implantação no útero da mulher e esses,
chamados « embriões supranumerários », são depois suprimidos ou
utilizados para pesquisas que, a pretexto de progresso científico ou médico,
na realidade reduzem a vida humana a simples « material biológico », de
que se pode livremente dispor.
Os diagnósticos pré-natais, que não apresentam dificuldades
morais quando feitos para individuar a eventualidade de curas necessárias
à criança ainda no seio materno, tornam-se, com muita freqüência, ocasião
para propor e solicitar o aborto. É o aborto eugênico, cuja legitimação,
na opinião pública, nasce de uma mentalidade — julgada, erradamente,
coerente com as exigências « terapêuticas » — que acolhe a vida
apenas sob certas condições, e que recusa a limitação, a deficiência,
a enfermidade.
Seguindo a mesma lógica, chegou-se a negar os cuidados ordinários
mais elementares, mesmo até a alimentação, a crianças nascidas com
graves deficiências ou enfermidades. E o cenário contemporâneo
apresenta-se ainda mais desconcertante com as propostas — avançadas
aqui e além — para, na mesma linha do direito ao aborto, se legitimar
até o infanticídio, retornando assim a um estado de barbárie que
se esperava superado para sempre.
15. Ameaças não menos graves pesam também sobre os doentes incuráveis
e os doentes terminais, num contexto social e cultural que,
tornando mais difícil enfrentar e suportar o sofrimento, aviva a tentação
de resolver o problema do sofrimento eliminando-o pela raiz, com a
antecipação da morte para o momento considerado mais oportuno.
Para tal decisão concorrem, muitas vezes, elementos de natureza
diversa mas infelizmente convergentes para essa terrível saída. Pode ser
decisivo, na pessoa doente, o sentimento de angústia, exasperação, ou
até desespero, provocado por uma experiência de dor intensa e
prolongada. Vêem-se, assim, duramente postos à prova os equilíbrios,
por vezes já abalados, da vida pessoal e familiar, de maneira que, por um
lado, o doente, não obstante os auxílios cada vez mais eficazes da
assistência médica e social, corre o risco de se sentir esmagado pela própria
fragilidade; por outro lado, naqueles que lhe estão afetivamente ligados, pode gerar-se um sentimento de compreensível, ainda que
mal-entendida, compaixão. Tudo isto fica agravado por uma atmosfera
cultural que não vê qualquer significado nem valor no sofrimento, antes
considera-o como o mal por excelência, que se há de eliminar a todo o
custo; isto verifica- -se especialmente quando não se possui uma visão
religiosa que ajude a decifrar positivamente o mistério da dor.
Mas, no conjunto do horizonte cultural, não deixa de incidir também
uma espécie de atitude prometéica do homem que, desse modo, se ilude de
poder apropriar-se da vida e da morte para decidir delas, quando na
realidade acaba derrotado e esmagado por uma morte irremediavelmente
fechada a qualquer perspectiva de sentido e a qualquer esperança. Uma trágica
expressão de tudo isto, encontramo-la na difusão da eutanásia, ora
mascarada e subreptícia, ora atuada abertamente e até legalizada. Para
além do motivo de presente compaixão diante da dor do paciente, às
vezes pretende-se justificar a eutanásia também com uma razão
utilitarista, isto é, para evitar despesas improdutivas demasiado
gravosas para a sociedade. Propõe-se, assim, a supressão dos recém-nascidos
defeituosos, dos deficientes profundos, dos inválidos, dos idosos,
sobretudo quando não auto-suficientes, e dos doentes terminais. Nem nos
é lícito calar frente a outras formas mais astuciosas, mas não menos
graves e reais, de eutanásia, como são as que se poderiam verificar, por
exemplo, quando, para aumentar a disponibilidade de material para
transplantes, se procedesse à extração dos órgãos sem respeitar os
critérios objetivos e adequados de certificação da morte do doador.
16. Outro motivo atual, que freqüentemente é acompanhado por ameaças
e atentados à vida, é o fenômeno demográfico. Este reveste
aspectos diversos, nas várias partes do mundo: nos países ricos e
desenvolvidos, registra uma preocupante diminuição ou queda da
natalidade; os países pobres, ao contrário, apresentam em geral uma
elevada taxa de aumento da população, dificilmente suportável num
contexto de menor progresso econômico e social, ou até de grave
subdesenvolvimento. Face ao sobrepovoamento dos países pobres,
verifica-se, a nível internacional, a falta de intervenções globais —
sérias políticas familiares e sociais, programas de crescimento cultural
e de justa produção e distribuição dos recursos — enquanto se
continuam a atuar políticas anti-natalistas.
Devendo, sem dúvida, incluir-se a contracepção, a esterilização e
o aborto entre as causas que contribuem para determinar as situações de
forte queda da natalidade, pode ser fácil a tentação de recorrer aos
mesmos métodos e atentados contra a vida, nas situações de « explosão
demográfica ».
O antigo Faraó, sentindo como um incubo a presença e a multiplicação
dos filhos de Israel, sujeitou-os a todo o tipo de opressão e ordenou que
fossem mortas todas as crianças do sexo masculino (cf. Ex 1,
7-22). Do mesmo modo se comportam hoje bastantes poderosos da terra.
Também estes vêem como um íncubo o crescimento demográfico em
ato,
e temem que os povos mais prolíferos e mais pobres representem uma ameaça
para o bem-estar e a tranqüilidade dos seus países. conseqüentemente, em
vez de procurarem enfrentar e resolver estes graves problemas dentro do
respeito da dignidade das pessoas e das famílias e do inviolável direito
de cada homem à vida, preferem promover e impor, por qualquer meio, um
maciço planejamento da natalidade. As próprias ajudas econômicas, que se
dizem dispostos a dar, ficam injustamente condicionadas à aceitação
desta política anti-natalista.
17. A humanidade de hoje oferece-nos um espetáculo verdadeiramente
alarmante, se pensarmos não só aos diversos âmbitos em que se realizam
os atentados à vida, mas também à singular dimensão numérica dos
mesmos, bem como ao múltiplo e poderoso apoio que lhes é dado pelo amplo
consenso social, pelo freqüente reconhecimento legal, pelo envolvimento de
uma parte dos profissionais da saúde.
Como senti dever bradar em Denver, por ocasião do VIII Dia Mundial da
Juventude, « com o tempo, as ameaças contra a vida não diminuíram.
Elas, ao contrário, assumem dimensões enormes. Não se trata apenas de
ameaças vindas do exterior, de forças da natureza ou dos « Cains » que
assassinam os « Abéis »; não, trata-se de ameaças programadas de
maneira científica e sistemática. O século XX ficará considerado
uma época de ataques maciços contra a vida, uma série infindável de
guerras e um massacre permanente de vidas humanas inocentes. Os falsos
profetas e os falsos mestres conheceram o maior sucesso possível ».15
Para além das intenções, que podem ser várias e quiçá assumir formas
persuasivas em nome até da solidariedade, a verdade é que estamos
perante uma objetiva « conjura contra a vida » que vê também
implicadas Instituições Internacionais, empenhadas a encorajar e
programar verdadeiras e próprias campanhas para difundir a contracepção,
a esterilização e o aborto. Não se pode negar, enfim, que os mass-media
são freqüentemente cúmplices dessa conjura, ao abonarem junto da opinião
pública aquela cultura que apresenta o recurso à contracepção, à
esterilização, ao aborto e à própria eutanásia como sinal do
progresso e conquista da liberdade, enquanto descrevem como inimigas da
liberdade e do progresso as posições incondicionalmente a favor da vida.
« Sou, porventura, guarda do meu irmão? » (Gn 4, 9): uma
noção perversa de liberdade
18. O panorama descrito requer ser conhecido não somente nos
fenômenos de morte que o caracterizam, mas também nas múltiplas causas que
o determinam. A pergunta do Senhor « que fizeste? » (Gn 4, 10)
quase parece um convite dirigido a Caim para que, ultrapassando a
materialidade do gesto homicida, veja toda a gravidade nas motivações
que estão na sua origem e nas conseqüências que dele derivam.
As opções contra a vida nascem, às vezes, de situações difíceis
ou mesmo dramáticas de profundo sofrimento, de solidão, de carência
total de perspectivas econômicas, de depressão e de angústia pelo
futuro. Estas circunstâncias podem atenuar, mesmo até notavelmente, a
responsabilidade subjetiva e, conseqüentemente, a culpabilidade daqueles
que realizam tais opções em si mesmas criminosas. Hoje, todavia, o
problema estende-se muito para além do reconhecimento, sempre necessário,
destas situações pessoais. Põe-se também no plano cultural, social e
político, onde apresenta o seu aspecto mais subversivo e perturbador na
tendência, cada vez mais largamente compartilhada, de interpretar os
mencionados crimes contra a vida como legítimas expressões da
liberdade individual, que hão de ser reconhecidas e protegidas como
verdadeiros e próprios direitos.
Chega assim a uma viagem de trágicas conseqüências, um longo
processo histórico, o qual, depois de ter descoberto o conceito de «
direitos humanos » — como direitos inerentes a cada pessoa e anteriores
a qualquer Constituição e legislação dos Estados —, incorre hoje
numa estranha contradição: precisamente numa época em que se
proclamam solenemente os direitos invioláveis da pessoa e se afirma
publicamente o valor da vida, o próprio direito à vida é praticamente
negado e espezinhado, particularmente nos momentos mais emblemáticos da
existência, como são o nascer e o morrer.
Por um lado, as várias declarações dos direitos do homem e as múltiplas
iniciativas que nelas se inspiram, indicam a consolidação a nível
mundial de uma sensibilidade moral mais diligente em reconhecer o valor e
a dignidade de cada ser humano enquanto tal, sem qualquer distinção de
raça, nacionalidade, religião, opinião política, estrato social.
Por outro lado, a estas nobres proclamações contrapõem-se,
infelizmente nos fatos, a sua trágica negação. Esta é ainda mais
desconcertante, antes mais escandalosa, precisamente porque se realiza
numa sociedade que faz da afirmação e tutela dos direitos humanos o seu objetivo
principal e, conjuntamente, o seu título de glória. Como pôr
de acordo essas repetidas afirmações de princípio com a contínua
multiplicação e a difusa legitimação dos atentados à vida humana?
Como conciliar estas declarações com a recusa do mais débil, do mais
carenciado, do idoso, daquele que acaba de ser concebido? Estes atentados
encaminham-se exatamente na direção contrária à do respeito pela
vida e representam uma ameaça frontal a toda a cultura dos direitos do
homem. É uma ameaça capaz, em última análise, de pôr em risco o
próprio significado da convivência democrática: de sociedade de «
con-viventes », as nossas cidades correm o risco de passar a sociedade de
excluídos, marginalizados, irradiados e suprimidos. Se depois o olhar
se alarga ao horizonte mundial, como não pensar que a afirmação dos
direitos das pessoas e dos povos, verificada em altas reuniões
internacionais, se reduz a um estéril exercício retórico, se lá não
é desmascarado o egoísmo dos países ricos que fecham aos países pobres
o acesso ao desenvolvimento ou o condicionam a proibições absurdas de
procriação, contrapondo o progresso ao homem? Porventura não é de pôr
em discussão os próprios modelos econômicos, adotados pelos Estados freqüentemente
também por pressões e condicionamentos de caráter internacional, que geram e alimentam situações de injustiça e violência,
nas quais a vida humana de populações inteiras fica degradada e
espezinhada?
19. Onde estão as raízes de uma contradição tão paradoxal?
Podemo-las individuar em avaliações globais de ordem cultural e
moral, a começar daquela mentalidade que, exasperando e até
deformando o conceito de subjetividade, só reconhece como titular de
direitos quem se apresente com plena ou, pelo menos, incipiente autonomia
e esteja fora da condição de total dependência dos outros. Mas, como
conciliar tal impostação com a exaltação do homem enquanto ser « não-disponível
»? A teoria dos direitos humanos funda-se precisamente na consideração
do fato de o homem, ao contrário dos animais e das coisas, não poder
estar sujeito ao domínio de ninguém. Deve-se acenar ainda àquela lógica
que tende a identificar a dignidade pessoal com a capacidade de
comunicação verbal e explícita e, em todo o caso, experimentável.
Claro que, com tais pressupostos, não há espaço no mundo para quem,
como o nascituro ou o doente terminal, é um sujeito estruturalmente débil,
parece totalmente à mercê de outras pessoas e radicalmente dependente
delas, e sabe comunicar apenas mediante a linguagem muda de uma profunda
simbiose de afetos. Assim a força torna-se o critério de decisão e de ação, nas relações interpessoais e na convivência social. Mas isto
é precisamente o contrário daquilo que, historicamente, quis afirmar o
Estado de direito, como comunidade onde as « razões da força » são
substituídas pela « força da razão ».
A outro nível, as raízes da contradição que se verifica entre a
solene afirmação dos direitos do homem e a sua trágica negação na prática,
residem numa concepção da liberdade que exalta o indivíduo de
modo absoluto e não o predispõe para a solidariedade, o pleno
acolhimento e serviço do outro. Se é certo que, por vezes, a supressão
da vida nascente ou terminal aparece também matizada com um sentido
equivocado de altruísmo e de compaixão humana, não se pode negar que
tal cultura de morte, no seu todo, manifesta uma concepção da liberdade
totalmente individualista que acaba por ser a liberdade dos « mais fortes
» contra os débeis, destinados a sucumbir.
Precisamente neste sentido, se pode interpretar a resposta de Caim à
pergunta do Senhor « onde está Abel, teu irmão? »: « Não sei dele.
Sou, porventura, guarda do meu irmão? » (Gn 4, 9). Sim, todo o
homem é « guarda do seu irmão », porque Deus confia o homem ao homem.
E é tendo em vista também tal entrega que Deus dá a cada homem a
liberdade, que possui uma dimensão relacional essencial. Trata-se
de um grande dom do Criador, quando colocada como deve ser ao serviço da
pessoa e da sua realização mediante o dom de si e o acolhimento do
outro; quando, pelo contrário, a liberdade é absolutizada em chave
individualista, fica esvaziada do seu conteúdo originário e contestada
na sua própria vocação e dignidade.
Mas há um aspecto ainda mais profundo a sublinhar: a liberdade
renega-se a si mesma, autodestrói-se e predispõe-se à eliminação do
outro, quando deixa de reconhecer e respeitar a sua ligação
constitutiva com a verdade. Todas as vezes que a razão humana,
querendo emancipar-se de toda e qualquer tradição e autoridade, se fecha
até às evidências primárias de uma verdade objetiva e comum,
fundamento da vida pessoal e social, a pessoa acaba por assumir como única
e indiscutível referência para as próprias decisões, não já a
verdade sobre o bem e o mal, mas apenas a sua subjetiva e volúvel opinião
ou, simplesmente, o seu interesse egoísta e o seu capricho.
20. Nesta concepção da liberdade, a convivência social fica
profundamente deformada. Se a promoção do próprio eu é vista em
termos de autonomia absoluta, inevitavelmente chega-se à negação do
outro, visto como um inimigo de quem defender-se. Deste modo, a sociedade
torna-se um conjunto de indivíduos, colocados uns ao lado dos outros mas
sem laços recíprocos: cada um quer afirmar-se independentemente do
outro, mais, quer fazer prevalecer os seus interesses. Todavia, na presença
de análogos interesses da parte do outro, terá de se render a procurar
qualquer forma de compromisso, se se quer que, na sociedade, seja
garantido a cada um o máximo de liberdade possível. Deste modo, diminui
toda a referência a valores comuns e a uma verdade absoluta para todos: a
vida social aventura-se pelas areias movediças de um relativismo total.
Então, tudo é convencional, tudo é negociável: inclusivamente o
primeiro dos direitos fundamentais, o da vida.
É aquilo que realmente acontece, mesmo no âmbito mais especificamente
político e estatal: o primordial e inalienável direito à vida é posto
em discussão ou negado com base num voto parlamentar ou na vontade de uma
parte — mesmo que seja majoritária — da população. É o resultado
nefasto de um relativismo que reina incontestado: o próprio « direito »
deixa de o ser, porque já não está solidamente fundado sobre a inviolável
dignidade da pessoa, mas fica sujeito à vontade do mais forte. Deste modo
e para descrédito das suas regras, a democracia caminha pela estrada de
um substancial totalitarismo. O Estado deixa de ser a « casa comum »,
onde todos podem viver segundo princípios de substancial igualdade, e
transforma-se num Estado tirano, que presume de poder dispor da
vida dos mais débeis e indefesos, desde a criança ainda não nascida até
ao idoso, em nome de uma utilidade pública que, na realidade, não é senão
o interesse de alguns.
Tudo parece acontecer no mais firme respeito da legalidade, pelo menos
quando as leis, que permitem o aborto e a eutanásia, são votadas segundo
as chamadas regras democráticas. Na verdade, porém, estamos perante uma
mera e trágica aparência de legalidade, e o ideal democrático, que é
verdadeiramente tal apenas quando reconhece e tutela a dignidade de toda a
pessoa humana, é atraiçoado nas suas próprias bases: « Como é
possível falar ainda de dignidade de toda a pessoa humana, quando se
permite matar a mais débil e a mais inocente? Em nome de qual justiça se
realiza a mais injusta das discriminações entre as pessoas, declarando
algumas dignas de ser defendidas, enquanto a outras esta dignidade é
negada? ».16 Quando se verificam tais condições, estão já
desencadeados aqueles mecanismos que levam à dissolução da convivência
humana autêntica e à desagregação da própria realidade estatal.
Reivindicar o direito ao aborto, ao infanticídio, à eutanásia, e
reconhecê-lo legalmente, equivale a atribuir à liberdade humana um significado
perverso e iníquo: o significado de um poder absoluto sobre os
outros e contra os outros. Mas isto é a morte da verdadeira
liberdade: « Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o
pecado é escravo do pecado » (Jo 8, 34).
« Obrigado a ocultar-me longe da tua face » (Gn 4, 14):
o eclipse do sentido de Deus e do homem
21. Quando se procuram as raízes mais profundas da luta entre a «
cultura da vida » e a « cultura da morte », não podemos deter-nos na
noção perversa de liberdade acima referida. É necessário chegar ao
coração do drama vivido pelo homem contemporâneo: o eclipse do
sentido de Deus e do homem, típico de um contexto social e cultural
dominado pelo secularismo que, com os seus tentáculos invasivos, não
deixa às vezes de pôr à prova as próprias comunidades cristãs. Quem
se deixa contagiar por esta atmosfera, entra facilmente na voragem de um
terrível círculo vicioso: perdendo o sentido de Deus, tende-se a
perder também o sentido do homem, da sua dignidade e da sua vida; por
sua vez, a sistemática violação da lei moral, especialmente na grave
matéria do respeito da vida humana e da sua dignidade, produz uma espécie
de ofuscamento progressivo da capacidade de enxergar a presença
vivificante e salvífica de Deus.
Podemos, mais uma vez, inspirar-nos na narração da morte de Abel
provocada pelo seu irmão. Depois da maldição infligida por Deus a Caim,
este dirige-se ao Senhor dizendo: « A minha culpa é grande demais para
obter perdão. Expulsas-me hoje desta terra;obrigado a ocultar-me longe
da tua face, terei de andar fugitivo e vagabundo pela terra, e o
primeiro a encontrar-me matar-me-á » (Gn 4, 13-14).
Caim pensa que o seu pecado não poderá obter perdão do Senhor e que
o seu destino inevitável será « ocultar-se longe » d'Ele. Se Caim
chega a confessar que a sua culpa é « grande demais », é por saber que
se encontra diante de Deus e do seu justo juízo. Na realidade, só diante
do Senhor é que o homem pode reconhecer o seu pecado e perceber toda a
sua gravidade. Tal foi a experiência de David, que, depois « de ter
feito o que é mal aos olhos do Senhor » e de ser repreendido pelo
profeta Natã (cf. 2 Sam 11-12), exclama: « Eu reconheço os meus
pecados, e as minhas culpas tenho-as sempre diante de mim. Pequei contra Vós,
só contra Vós, e fiz o mal diante dos vossos olhos » (Sal 5150,
5-6).
22. Por isso, quando declina o sentido de Deus, também o sentido do
homem fica ameaçado e adulterado, como afirma de maneira lapidar o Concílio
Vaticano II: « Sem o Criador, a criatura não subsiste. (...) Antes, se
se esquece Deus, a própria criatura se obscurece ».17 O homem deixa de
conseguir sentir-se como « misteriosamente outro » face às diversas
criaturas terrenas; considera-se apenas como um de tantos seres vivos,
como um organismo que, no máximo, atingiu um estado muito elevado de
perfeição. Fechado no estreito horizonte da sua dimensão física,
reduz-se de certo modo a « uma coisa », deixando de captar o caráter « transcendente » do seu « existir como homem ». Deixa de considerar a
vida como um dom esplêndido de Deus, uma realidade « sagrada » confiada
à sua responsabilidade e, conseqüentemente, à sua amorosa defesa, à sua
« veneração ». A vida torna-se simplesmente « uma coisa », que ele
reivindica como sua exclusiva propriedade, que pode plenamente dominar e
manipular.
Assim, diante da vida que nasce e da vida que morre, o homem já não
é capaz de se deixar interrogar sobre o sentido mais autêntico da sua
existência, assumindo com verdadeira liberdade estes momentos cruciais do
próprio « ser ». Preocupa-se somente com o « fazer », e, recorrendo a
qualquer forma de tecnologia, moureja a programar, controlar e dominar o
nascimento e a morte. Estes acontecimentos, em vez de experiências
primordiais que requerem ser « vividas », tornam-se coisas que se
pretende simplesmente « possuir » ou « rejeitar ».
Aliás, uma vez excluída a referência a Deus, não surpreende que o
sentido de todas as coisas resulte profundamente deformado, e a própria
natureza, já não vista como mater 1, fique reduzida a « material
» sujeito a todas as manipulações. A isto parece conduzir certa
mentalidade técnico-científica, predominante na cultura contemporânea,
que nega a idéia mesma de uma verdade própria da criação que se há de
reconhecer, ou de um desígnio de Deus sobre a vida que temos de
respeitar. E isto não é menos verdade, quando a angústia pelos
resultados de tal « liberdade sem lei » induz alguns à exigência
oposta de uma « lei sem liberdade », como sucede, por exemplo, em
ideologias que contestam a legitimidade de qualquer forma de intervenção
sobre a natureza, como que em nome de uma sua « divinização », o que
uma vez mais menospreza a sua dependência do desígnio do Criador.
Na realidade, vivendo « como se Deus não existisse », o homem perde
o sentido não só do mistério de Deus, mas também do mistério do
mundo, e do mistério do seu próprio ser.
23. O eclipse do sentido de Deus e do homem conduz inevitavelmente ao materialismo
prático, no qual prolifera o individualismo, o utilitarismo e o
hedonismo. Também aqui se manifesta a validade perene daquilo que escreve
o Apóstolo: « Como não procuraram ter de Deus conhecimento perfeito,
entregou-os Deus a um sentimento pervertido, a fim de que fizessem o que não
convinha (Rm 1, 28). Assim os valores do ser ficam substituídos
pelos do ter.
O único fim que conta, é a busca do próprio bem-estar material. A
chamada « qualidade de vida » é interpretada prevalente ou
exclusivamente como eficiência econômica, consumismo desenfreado, beleza
e prazer da vida física, esquecendo as dimensões mais profundas da existência,
como são as interpessoais, espirituais e religiosas.
Em tal contexto, o sofrimento — peso inevitável da existência
humana mas também fator de possível crescimento pessoal —, é «
deplorado », rejeitado como inútil, ou mesmo combatido como mal a evitar
sempre e por todos os modos. Quando não é possível superá-lo e a
perspectiva de um bem-estar, pelo menos futuro, se desvanece, parece então
que a vida perdeu todo o significado e cresce no homem a tentação de
reivindicar o direito à sua eliminação.
Sempre no mesmo horizonte cultural, o corpo deixa de ser visto
como realidade tipicamente pessoal, sinal e lugar da relação com os
outros, com Deus e com o mundo. Fica reduzido à dimensão puramente
material: é um simples complexo de órgãos, funções e energias, que há de
ser usado segundo critérios de mero prazer e eficiência. conseqüentemente, também a sexualidade fica despersonalizada e
instrumentalizada: em lugar de ser sinal, lugar e linguagem do amor, ou
seja, do dom de si e do acolhimento do outro na riqueza global da pessoa,
torna-se cada vez mais ocasião e instrumento de afirmação do próprio
eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e instintos. Deste
modo se deforma e falsifica o conteúdo original da sexualidade humana, e
os seus dois significados — unitivo e procriativo —, inerentes à própria
natureza do ato conjugal, acabam artificialmente separados: assim a união
é atraiçoada e a fecundidade fica sujeita ao arbítrio do homem e da
mulher. A geração torna-se, então, o « inimigo » a evitar no
exercício da sexualidade: se aceite, é-o apenas porque exprime o próprio
desejo ou mesmo a determinação de ter o filho « a todo o custo », e não
já porque significa total acolhimento do outro e, por conseguinte,
abertura à riqueza de vida que o filho é portador.
Na perspectiva materialista até aqui descrita, as relações
interpessoais experimentam um grave empobrecimento. E os primeiros a
sofrerem os danos são a mulher, a criança, o enfermo ou atribulado, o
idoso. O critério próprio da dignidade pessoal — isto é, o do
respeito, do altruísmo e do serviço — é substituído pelo critério
da eficiência, do funcional e da utilidade: o outro é apreciado não por
aquilo que « é », mas por aquilo que « tem, faz e rende ». É a
supremacia do mais forte sobre o mais fraco.
24. É no íntimo da consciência moral que se consuma o eclipse
do sentido de Deus e do homem, com todas as suas múltiplas e funestas conseqüências
sobre a vida. Em questão está, antes de mais, a consciência
de cada pessoa, onde esta, na sua unicidade e irrepetibilidade, se
encontra a sós com Deus.18 Mas, em certo sentido, é posta em questão
também a « consciência moral » da sociedade: esta é, de algum
modo, responsável, não só porque tolera ou favorece comportamentos
contrários à vida, mas também porque alimenta a « cultura da morte »,
chegando a criar e consolidar verdadeiras e próprias « estruturas de
pecado » contra a vida. A consciência moral, tanto do indivíduo como da
sociedade, está hoje — devido também à influência invasora de muitos
meios de comunicação social —, exposta a um perigo gravíssimo e
mortal: o perigo da confusão entre o bem e o mal, precisamente
no que se refere ao fundamental direito à vida. Uma parte significativa
da sociedade atual revela-se tristemente semelhante àquela humanidade
que Paulo descreve na Carta aos Romanos. É feita « de homens que sufocam
a verdade na injustiça » (1, 18): tendo renegado Deus e julgando poder
construir a cidade terrena sem Ele, « desvaneceram nos seus pensamentos
», pelo que « se obscureceu o seu insensato coração » (1, 21); «
considerando-se sábios, tornaram-se néscios » (1, 22), fizeram-se
autores de obras dignas de morte, e « não só as cometem, como também
aprovam os que as praticam » (1, 32). Quando a consciência, esse
luminoso olhar da alma (cf. Mt 6, 22-23), chama « bem ao mal e mal
ao bem » (Is 5, 20), está já no caminho da sua degeneração
mais preocupante e da mais tenebrosa cegueira moral.
Mas todos esses condicionalismos e tentativas de impor silêncio não
conseguem sufocar a voz do Senhor, que ressoa na consciência de cada
homem: é sempre deste sacrário íntimo da consciência que pode recomeçar
um novo caminho de amor, de acolhimento e de serviço à vida humana.
« Aproximaste-vos do sangue de aspersão » (cf. Heb 12,
22.24): sinais de esperança e convite ao compromisso
25. « A voz do sangue do teu irmão clama da terra até Mim! » (Gn
4, 10). Não é só a voz do sangue de Abel, o primeiro inocente
morto, a gritar por Deus, fonte e defensor da vida. Também o sangue de
todos os outros homens, assassinados depois de Abel, é voz que brada ao
Senhor. De uma forma absolutamente única, porém, grita a Deus a voz
do sangue de Cristo, de quem Abel, na sua inocência, é figura profética,
como nos recorda o autor da Carta aos Hebreus: « Vós, porém,
aproximaste-vos do monte de Sião, da cidade do Deus vivo, (...) de Jesus,
o Mediador da Nova Aliança, e de um sangue de aspersão que fala melhor
do que o de Abel » (12, 22.24).
É o sangue de aspersão. Símbolo e sinal prefigurador dele
fora o sangue dos sacrifícios da Antiga Aliança, com os quais Deus
exprimia a vontade de comunicar a sua vida aos homens, purificando-os e
consagrando-os (cf. Ex 24, 8; Lv 17, 11). Agora em Cristo,
tudo isso se cumpre e realiza: o d'Ele é o sangue de aspersão que
redime, purifica e salva; é o sangue do Mediador da Nova Aliança, «
derramado por muitos, em remissão dos pecados » (Mt 26, 28). Este
sangue, que brota do peito trespassado de Cristo na Cruz (cf. Jo 19,
34), « fala melhor » do que o sangue de Abel; aquele, com efeito,
exprime e exige uma « justiça » mais profunda, mas sobretudo implora
misericórdia,19 torna-se junto do Pai intercessão pelos irmãos (cf. Heb
7, 25), é fonte de perfeita redenção e dom de vida nova.
O sangue de Cristo, ao mesmo tempo que revela a grandeza do amor do
Pai, manifesta também como o homem é precioso aos olhos de Deus e quão
inestimável seja o valor da sua vida. Isto mesmo nos recorda o apóstolo
Pedro: « Sabei que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver,
recebida por tradição dos vossos pais, não a preço de coisas corruptíveis,
prata ou ouro, mas pelo sangue precioso de Cristo, como de um cordeiro
imaculado e sem defeito algum » (1 Ped 1, 18-19). Contemplando
precisamente o sangue precioso de Cristo, sinal da sua doação de amor
(cf. Jo 13, 1), o crente aprende a reconhecer e a apreciar a
dignidade quase divina de cada homem, e pode exclamar com incessante e
agradecida admiração: « Que grande valor deve ter o homem aos olhos do
Criador, se "mereceu tão grande Redentor" (Precónio Pascal),
se "Deus deu o seu Filho", para que ele, o homem, "não
pereça, mas tenha a vida eterna" (cf. Jo 3, 16) »! 20
Além disso, o sangue de Cristo revela ao homem que a sua grandeza e,
conseqüentemente, a sua vocação consiste no dom sincero de si. Precisamente
porque é derramado como dom de vida, o sangue de Jesus já não é sinal
de morte, de separação definitiva dos irmãos, mas instrumento de uma
comunhão que é riqueza de vida para todos. Quem, no sacramento da
Eucaristia, bebe este sangue e permanece em Jesus (cf. Jo 6, 56), vê-se
associado ao mesmo dinamismo de amor e doação de vida d'Ele, para levar
à plenitude a primordial vocação ao amor que é própria de cada homem
(cf. Gn 1, 27; 2, 18-24).
É, enfim, do sangue de Cristo que todos os homens recebem a força
para se empenharem a favor da vida. Precisamente esse sangue é o
motivo mais forte de esperança, melhor é o fundamento da certeza
absoluta de que, segundo o desígnio de Deus, a vitória será da vida. «
Nunca mais haverá morte » — exclama a voz poderosa que sai do trono de
Deus na Jerusalém celeste (Ap 21, 4). E S. Paulo assegura-nos que
a vitória atual sobre o pecado é sinal e antecipação da vitória
definitiva sobre a morte, quando « se cumprirá o que está escrito:
"A morte foi tragada pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória?
Onde está, ó morte, o teu aguilhão?" » (1 Cor 15, 54-55).
26. Na realidade, não faltam prenúncios desta vitória nas nossas
sociedade e culturas, apesar de marcadas tão fortemente pela « cultura
da morte ». Dar-se-ia, por conseguinte, uma imagem unilateral que poderia
induzir a um estéril desânimo, se a denúncia das ameaças contra a vida
não fosse acompanhada pela apresentação dos sinais positivos, operantes
na atual situação da humanidade.
Infelizmente, estes sinais positivos têm com freqüência
dificuldade
em manifestar-se e ser reconhecidos, talvez também porque não recebem
adequada atenção dos meios de comunicação social. Mas quantas
iniciativas de ajuda e amparo às pessoas mais débeis e indefesas
surgiram — e continuam a surgir — na comunidade cristã e na
sociedade, a nível local, nacional e internacional, por obra de indivíduos,
grupos, movimentos e organizações de vário gênero!
Muitos são ainda os esposos que, com generosa responsabilidade,
sabem acolher os filhos como « o maior dom do matrimônio ».21 E não
faltam famílias que, para além do seu serviço quotidiano à
vida, sabem também abrir-se ao acolhimento de crianças abandonadas, de
adolescentes e jovens em dificuldade, de pessoas inválidas, de idosos que
vivem na solidão. Numerosos são os centros de ajuda à vida ou
instituições análogas, dinamizadas por pessoas e grupos que, com admirável
dedicação e sacrifício, oferecem apoio moral e material às mães em
dificuldade, tentadas a recorrer ao aborto. Surgem e multiplicam-se ainda
os grupos de voluntários, empenhados em dar hospitalidade a quem não
tem família, encontra-se em condições de particular dificuldade ou
precisa de reencontrar um ambiente educativo que o ajude a superar hábitos
destrutivos e recuperar o sentido da vida.
A medicina, promovida com grande empenho por investigadores e
profissionais, prossegue no seu esforço por encontrar remédios cada vez
mais eficazes: resultados, antes totalmente impensáveis e capazes de
abrir promissoras perspectivas, são hoje obtidos em favor da vida
nascente, das pessoas que sofrem e dos doentes em fase grave ou terminal.
Várias entidades e organizações se mobilizam para levar aos países
mais atingidos pela miséria e por doenças crônicas, tais benefícios da
medicina mais avançada. Do mesmo modo, associações nacionais e
internacionais de médicos movem-se rapidamente, para prestar socorro às
populações provadas por calamidades naturais, epidemias ou guerras.
Apesar de estar ainda longe da sua plena consecução uma verdadeira justiça
internacional na partilha dos recursos médicos, como não reconhecer, nos
passos até agora dados, o sinal de crescente solidariedade entre os
povos, de apreciável sensibilidade humana e moral, e de maior respeito
pela vida?
27. Face a legislações que permitiram o aborto e a tentativas, aqui e
além concretizadas, de legalizar a eutanásia, surgiram em todo o mundo movimentos
e iniciativas de sensibilização social a favor da vida. Quando estes
movimentos, de acordo com a sua inspiração autêntica, agem com
determinada firmeza mas sem recorrer à violência, então eles favorecem
uma tomada de consciência mais ampla e profunda do valor da vida, fazem
apelo e realizam um empenho mais decisivo em sua defesa.
Como não recordar, além disso, todos aqueles gestos diários de
acolhimento, de sacrifício, de cuidado desinteressado, que um número
incalculável de pessoas realiza com amor nas famílias, nos hospitais,
nos orfanatos, nos lares da terceira idade, e noutros centros ou
comunidades em defesa da vida? A Igreja, deixando-se guiar pelo exemplo de
Jesus, « bom samaritano » (cf. Lc 10, 29-37), e sustentada pela
sua força, sempre esteve em primeira fila nestes confins da caridade:
muitos dos seus filhos e filhas, especialmente religiosas e religiosos, em
formas antigas e novas, consagraram e continuam a consagrar a sua vida a
Deus, dando-a por amor do próximo mais débil e necessitado.
Estes gestos constroem em profundidade aquela « civilização do amor
e da vida », sem a qual a existência das pessoas e da sociedade perde o
seu significado humano mais autêntico. Ainda que ninguém os notasse, e
ficassem escondidos aos olhos dos outros, a fé assegura que o Pai, « que
vê no segredo » (Mt 6, 4), saberá não só recompensá-los, mas
também torná-los desde já fecundos de frutos duradouros para todos.
Entre os sinais de esperança, há que incluir ainda o crescimento, em
muitos estratos da opinião pública, de uma nova sensibilidade cada
vez mais contrária à guerra como instrumento de solução dos
conflitos entre os povos, e sempre mais inclinada à busca de instrumentos
eficazes, mas « não violentos », para bloquear o agressor armado. No
mesmo horizonte, se coloca igualmente a aversão cada vez mais difusa
na opinião pública à pena de morte — mesmo vista só como
instrumento de « legítima defesa » social —, tendo em consideração
as possibilidades que uma sociedade moderna dispõe para reprimir
eficazmente o crime, de forma que, enquanto torna inofensivo aquele que o
cometeu, não lhe tira definitivamente a possibilidade de se redimir.
Também ocorre saudar favoravelmente a atenção crescente à
qualidade de vida e à ecologia, que se registra sobretudo nas
sociedades mais avançadas, nas quais os anseios das pessoas já não estão
concentrados tanto sobre os problemas da sobrevivência como sobretudo na
procura de um melhoramento global das condições de vida. Particularmente
significativo é o despertar da reflexão ética acerca da vida: a aparição
e o desenvolvimento cada vez maior da bioética favoreceu a reflexão
e o diálogo — entre crentes e não crentes, como também entre crentes
de diversas religiões — sobre problemas éticos, mesmo fundamentais,
que dizem respeito à vida do homem.
28. Este horizonte de luzes e sombras deve tornar-nos, a todos,
plenamente conscientes de que nos encontramos perante um combate
gigantesco e dramático entre o mal e o bem, a morte e a vida, a «
cultura da morte » e a « cultura da vida ». Encontramo-nos não só «
diante », mas necessariamente « no meio » de tal conflito: todos
estamos implicados e tomamos parte nele, com a responsabilidade iniludível
de decidir incondicionalmente a favor da vida.
Também para nós, ressoa claro e forte o convite de Moisés: « Vê,
ofereço-te hoje, de um lado, a vida e o bem; do outro, a morte e o mal.
(...) Coloco diante de ti a vida e a morte, a felicidade e a maldição. Escolhe
a vida, e então viverás com toda a tua posteridade » (Dt 30,
15.19). É um convite muito apropriado para nós, chamados cada dia a ter
de escolher entre a « cultura da vida » e a « cultura da morte ». Mas
o apelo do Deuteronômio é ainda mais profundo, porque nos chama a uma opção
especificamente religiosa e moral. Trata-se de dar à própria existência
uma orientação fundamental, vivendo com fidelidade e coerência a Lei do
Senhor: « Recomendo-te hoje que ames o Senhor, teu Deus, que andes
nos seus caminhos, que guardes os seus preceitos, suas leis e
seus decretos. (...) Escolhe a vida, e então viverás com toda a tua
posteridade. Ama o Senhor, teu Deus, escuta a sua voz e permanece-Lhe
fiel, porque é Ele a tua vida e a longevidade dos teus dias »
(30, 16.19-20).
A decisão incondicional a favor da vida atinge em plenitude o seu
significado religioso e moral, quando brota, é plasmada e alimentada pela
fé em Cristo. Nada ajuda tanto a enfrentar positivamente o
conflito entre a morte e a vida, no qual estamos imersos, como a fé no
Filho de Deus que Se fez homem e veio habitar entre os homens, « para que
tenham vida, e a tenham em abundância » (Jo 10, 10): é a fé
no Ressuscitado, que venceu a morte; é a fé no sangue de Cristo «
que fala melhor do que o de Abel » (Heb 12, 24).
Assim, com a luz e a força desta fé, perante os desafios da situação
atual, a Igreja toma consciência mais viva da graça e da
responsabilidade, que lhe vêm do seu Senhor, de anunciar, celebrar e
servir o Evangelho da vida.
CAPÍTULO II
VIM PARA QUE TENHAM VIDA
A MENSAGEM CRISTÃ SOBRE A VIDA
« A vida manifestou-se, nós víamo-la » (1 Jo 1, 2): o olhar
voltado para Cristo, « o Verbo da vida »
29. Frente às inumeráveis e graves ameaças contra a vida, presentes
no mundo contemporâneo, poder-se-ia ficar como que dominado por um
sentido de impotência insuperável: jamais o bem poderá ter força para
vencer o mal!
Este é o momento em que o Povo de Deus, e nele cada um dos crentes, é
chamado a professar, com humildade e coragem, a própria fé em Jesus
Cristo, « o Verbo da vida » (1 Jo 1, 1). O Evangelho da vida não
é uma simples reflexão, mesmo se original e profunda, sobre a vida
humana; nem é apenas um preceito destinado a sensibilizar a consciência
e provocar mudanças significativas na sociedade; tampouco é a ilusória
promessa de um futuro melhor. O Evangelho da vida é uma realidade
concreta e pessoal, porque consiste no anúncio da própria pessoa de
Jesus. Ao apóstolo Tomé, e nele a cada homem, Jesus apresenta-Se com
estas palavras: « Eu sou o caminho, a verdade e a vida » (Jo 14,
6). A mesma identidade foi referida a Marta, irmã de Lázaro: « Eu sou a
ressurreição e a vida; quem crê em Mim, ainda que esteja morto, viverá;
e todo aquele que vive e crê em Mim, não morrerá jamais » (Jo 11,
25-26). Jesus é o Filho que, desde toda a eternidade, recebe a vida do
Pai (cf. Jo 5, 26) e veio estar com os homens, para os tornar
participantes deste dom: « Eu vim para que tenham vida, e a tenham em
abundância » (Jo 10, 10).
Deste modo, a possibilidade de « conhecer » a verdade plena
sobre o valor da vida humana é oferecida ao homem pela palavra, a ação e a própria pessoa de Jesus; e desta « fonte », vem-lhe, de forma
especial, a capacidade de « praticar » perfeitamente tal verdade (cf. Jo
3, 21), ou seja, a capacidade de assumir e realizar em plenitude a
responsabilidade de amar e servir, de defender e promover a vida humana.
Em Cristo, de fato, é anunciado definitivamente e concedido
plenamente aquele Evangelho da vida, que, oferecido já na Revelação
do Antigo Testamento e, antes ainda, de algum modo escrito no próprio
coração de cada homem e mulher, ressoa em toda a consciência « desde o
princípio », ou seja, desde a própria criação, de tal modo que, não
obstante os condicionalismos negativos do pecado, pode também ser
conhecido nos seus traços essenciais pela razão humana. Como escreve
o Concílio Vaticano II, Cristo « com toda a sua presença e manifestação
da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a
sua morte e gloriosa ressurreição, enfim, com o envio do Espírito da
verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a revelação,
a saber, que Deus está conosco para nos libertar das trevas do pecado e
da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna ».22
30. É, pois, com o olhar fixo no Senhor Jesus que desejamos novamente
escutar d'Ele « as palavras de Deus » (Jo 3, 34) e meditar o Evangelho
da vida. O sentido mais profundo e original desta meditação sobre a
mensagem revelada relativa à vida humana foi recolhido pelo apóstolo João,
quando escreve, no início da sua Primeira Carta: « O que era desde o
princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos
e as nossas mãos apalparam acerca do Verbo da vida, — porque a vida
manifestou-se, nós víamo-la, damos testemunho dela e vos anunciamos esta
vida eterna que estava no Pai e que nos foi manifestada — o que vimos e
ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão conosco
» (1, 1-3).
Então, a vida divina e eterna é anunciada e comunicada em Jesus, «
Verbo da vida ». Graças a este anúncio e a este dom, a vida física e
espiritual do homem, mesmo na sua fase terrena, adquire plenitude de valor
e significado: com efeito, a vida divina e eterna é o fim, para o qual
está orientado e chamado o homem que vive neste mundo. Assim, o Evangelho
da vida encerra tudo aquilo que a própria experiência e a razão
humana dizem acerca do valor da vida humana: acolhe-o, eleva-o e conduza-lo
à sua plena realização.
« O Senhor é a minha força e a minha glória, foi Ele quem me
salvou » (Ex 15, 2): a vida é sempre um bem
31. Na verdade, a plenitude evangélica do anúncio sobre a vida fora
preparada já no Antigo Testamento. É sobretudo nos acontecimentos do Êxodo,
fulcro da experiência de fé do Antigo Testamento, que Israel descobre quão
preciosa é aos olhos de Deus a sua vida. Quando já parece votado ao
extermínio, dado que sobre todos os seus recém-nascidos do sexo
masculino grava a ameaça de morte (cf. Ex 1, 15-22), o Senhor
revela-Se-lhes como salvador, capaz de assegurar um futuro a quem vive sem
esperança. Nasce, assim, em Israel uma certeza bem precisa: a sua vida
não se acha à mercê de um faraó que a pode usar com despótico arbítrio;
mas, ao contrário, é objeto de um terno e intenso amor da parte de
Deus.
A libertação da escravidão é o dom de uma identidade, o
reconhecimento de uma dignidade indelével e o início de uma história
nova, na qual caminham lado a lado a descoberta de Deus e a descoberta
de si próprio. A experiência do Êxodo é constitutiva e paradigmática.
Lá Israel compreendeu que, todas as vezes que estiver ameaçado na sua
existência, terá apenas de recorrer a Deus com renovada confiança para
encontrar n'Ele eficaz assistência: « Formei-te, tu és meu servo;
Israel, não te posso esquecer » (Is 44, 21).
Assim, enquanto reconhece o valor da própria existência como povo,
Israel avança também na percepção do sentido e valor da vida como
tal. É uma reflexão que se desenvolve particularmente nos Livros
Sapienciais, partindo da experiência quotidiana da precariedade da
vida e da consciência das ameaças que a tramam. Diante das contradições
da existência, a fé é chamada a dar uma resposta.
É sobretudo o problema da dor, o que mais pressiona a fé e a põe à
prova. Como não identificar o gemido universal do homem na meditação do
Livro de Job? O inocente esmagado pelo sofrimento é compreensivelmente
levado a interrogar-se: « Por que razão foi concedida a luz ao infeliz,
e a vida àquele cuja alma está desconsolada, os quais esperam a morte
sem que ela venha e a procuram com mais ardor que um tesouro? » (3,
20-21). Mas, mesmo na escuridão mais densa, a fé encaminha para o
reconhecimento confiante e adorador do « mistério »: « Sei que podes
tudo e que nada Te é impossível » (Job 42, 2).
Progressivamente a Revelação faz ver, com uma clareza cada vez maior,
o germe de vida imortal posto pelo Criador no coração dos homens: «
Todas as coisas que Deus fez são boas no seu tempo. Além disso, pôs no
coração 1 a duração inteira, sem que ninguém possa compreender a obra
divina de um extremo ao outro » (Ecl 3, 11). Este germe de
totalidade e plenitude anseia por se manifestar no amor e realizar-se,
por dom gratuito de Deus, na participação da sua vida eterna.
« Pela fé no nome de Jesus, este homem recobrou as forças »
(At 3, 16): na precariedade da existência humana, Jesus
realiza plenamente o sentido da vida
32. A experiência do povo da Aliança renova-se em todos os « pobres
» que encontram Jesus de Nazaré. Como Deus, « amante da vida » (Sab
11, 26), já tinha tranqüilizado Israel no meio dos perigos, assim
agora o Filho de Deus anuncia a quantos se sentem ameaçados e limitados
na própria existência, que a sua vida é um bem, ao qual o amor do Pai dá
sentido e valor.
« Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos
ouvem, os mortos ressuscitam, a boa nova é anunciada aos pobres » (Lc
7, 22). Com estas palavras do profeta Isaías (35, 5-6; 61, 1), Jesus
apresenta o significado da sua própria missão: deste modo, aqueles que
sofrem por causa de uma existência de qualquer modo « limitada » ouvem
d'Ele a boa nova do interesse que Deus nutre por eles e têm a
confirmação de que também a sua vida é um dom zelosamente guardado nas
mãos do Pai (cf. Mt 6, 25-34).
Quem se sente particularmente interpelado pela pregação e
ação de
Jesus, são os « pobres ». As multidões de doentes e marginalizados,
que O seguem e procuram (cf. Mt 4, 23-25), encontram na sua palavra
e nos seus gestos a revelação do valor imenso da vida deles e de quão
fundados sejam os seus anseios de salvação.
Acontece o mesmo na missão da Igreja, já desde as suas origens. Ao
anunciar Jesus como Aquele que « andou de lugar em lugar, fazendo o bem e
curando todos os que eram oprimidos pelo diabo, porque Deus estava com Ele
» (at 10, 38), ela sabe que é portadora de uma mensagem de salvação
que ressoa, com toda a sua novidade, precisamente nas situações de miséria
e pobreza da vida humana. Assim faz Pedro, ao curar o paralítico que
estava colocado diariamente junto da porta « Formosa » do templo de
Jerusalém a pedir esmola: « Não tenho ouro nem prata, mas vou dar-te o
que tenho: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e anda! » (at
3, 6). Pela fé em Jesus, « Príncipe da vida » (at 3, 15),
a vida que ali jaz abandonada e suplicante, reencontra a consciência de
si mesma e a sua plena dignidade.
A palavra e os gestos de Jesus e da sua Igreja não dizem respeito
apenas a quem está enfermo, aflito pela provação, ou é vítima das
diversas formas de marginalização social. Vão mais fundo, tocando o
próprio sentido da vida de cada homem nas suas dimensões morais e
espirituais. Só quem reconhece que a própria vida está tocada pelas
mazelas do pecado, pode reencontrar a verdade e a autenticidade da própria
existência junto de Jesus Salvador, segundo as suas próprias palavras:
« Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão
doentes. Não foram os justos, mas os pecadores, que Eu vim chamar ao
arrependimento » (Lc 5, 31-32).
Pelo contrário, aquele que à semelhança do rico agricultor da parábola
evangélica julga poder assegurar a própria vida com a posse de simples
bens materiais, na realidade engana-se. A vida está-lhe escapando, e bem
depressa ficará privado dela sem ter chegado a perceber o seu verdadeiro
significado: « Insensato! Nesta mesma noite, pedir-te-ão a tua alma; e o
que acumulaste para quem será? » (Lc 12, 20).
33. Na vida de Jesus, desde o início até ao fim, encontra-se esta «
dialética » singular entre a experiência da contingência da vida
humana e a afirmação do seu valor. De fato, a precariedade caracteriza
a vida de Jesus, desde o seu nascimento. Ele depara certamente com o acolhimento
dos justos, que se unem ao « sim » pronto e feliz de Maria (cf. Lc
1, 38). Mas logo aparece também a rejeição por parte de um
mundo que se torna hostil e procura o Menino « para O matar » (Mt 2,
13), ou então fica indiferente e alheio ao cumprimento do mistério desta
vida que entra no mundo: « não havia para eles lugar na hospedaria » (Lc
2, 7). exatamente por este contraste — as ameaças e inseguranças,
por um lado, e o poder do dom de Deus, pelo outro — resplandece com
maior força a glória que irradia da casa de Nazaré e da manjedoura de
Belém: esta vida que nasce é salvação para a humanidade inteira (cf. Lc
2, 10-11).
As contradições e riscos da vida são assumidos plenamente por Jesus:
« sendo rico, fez-Se pobre por vós, a fim de vos enriquecer pela pobreza
» (2 Cor 8, 9). Esta pobreza, de que fala Paulo, não é apenas
despojamento dos privilégios divinos, mas também partilha das condições
mais humildes e precárias da vida humana (cf. Fil 2, 6-7). Jesus
vive esta pobreza ao longo de toda a sua vida até ao momento culminante
da cruz: « Humilhou-Se a Si mesmo, feito obediente até à morte e morte
de cruz. Por isso é que Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima
de todo o nome » (Fil 2, 8-9). É precisamente na sua morte que
Jesus revela toda a grandeza e valor da vida, enquanto a sua doação
na cruz se torna fonte de vida nova para todos os homens (cf. Jo 12,
32). Neste peregrinar por entre as contradições e a própria perda da
vida, Jesus é guiado pela certeza de que ela está nas mãos do Pai. Por
isso, na cruz pode dizer-Lhe: « Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito
» (Lc 23, 46), isto é, a minha vida. Verdadeiramente grande é o
valor da vida humana, se o Filho de Deus a assumiu e fez dela o lugar onde
se realiza a salvação para a humanidade inteira!
« Chamados (...) a ser conformes à imagem do Seu Filho » (Rm
8, 28-29): a glória de Deus resplandece no rosto do homem
34. A vida é sempre um bem. Esta é uma intuição ou até um dado de
experiência, cuja razão profunda o homem é chamado a compreender.
Por que motivo a vida é um bem? Esta pergunta percorre a Bíblia
inteira, encontrando já nas primeiras páginas uma resposta eficaz e
admirável. A vida que Deus dá ao homem é diversa e original, se
comparada com a de qualquer outra criatura viva, dado que ele, apesar de aparentado
com o pó da terra (cf. Gn 2, 7; 3, 19; Job 34,
15; Sal 103102, 14; 104103, 29), é, no mundo, manifestação de
Deus, sinal da sua presença, vestígio da sua glória (cf. Gn
1, 26-27; Sal 8, 6). Isto mesmo quis sublinhar Santo Ireneu de Lião,
com a célebre definição: « A glória de Deus é o homem vivo ».23 Ao
homem foi dada uma dignidade sublime, que tem as suas raízes na
ligação íntima que o une ao seu Criador: no homem, brilha um reflexo da
própria realidade de Deus.
Afirma-o o Livro do Gênesis, na primeira narração das origens, ao
colocar o homem no vértice da atividade criadora de Deus, como seu
coroamento, no termo de um processo que vai do caos indefinido até à
criatura mais perfeita. Na criação, tudo está ordenado para o homem
e tudo lhe fica submetido: « Enchei e dominai a terra. Dominai (...)
sobre todos os animais que se movem na terra » (1, 28) — ordena Deus ao
homem e à mulher. Mensagem semelhante aparece também no outro relato das
origens: « O Senhor levou o homem e colocou-o no jardim do Éden para o
cultivar e, também, para o guardar » (Gn 2, 15). Confirma- -se
assim o primado do homem sobre as coisas: estas estão ordenadas ao homem
e entregues à sua responsabilidade, enquanto por nenhuma razão pode o
homem ser subjugado pelos seus semelhantes e como que reduzido ao estatuto
de coisa.
Na narração bíblica, a distinção entre o homem e as demais
criaturas é evidenciada sobretudo pelo fato de apenas a sua criação
ser apresentada como fruto de uma especial decisão da parte de Deus, de
uma deliberação que consiste em estabelecer uma ligação particular
e específica com o Criador: « Façamos o homem à nossa imagem, à
nossa semelhança » (Gn 1, 26). A vida que Deus oferece ao
homem, é um dom, pelo qual Deus participa algo de Si mesmo à sua
criatura.
Israel interrogar-se-á longamente acerca do sentido desta ligação
particular e específica do homem com Deus. O Livro de Ben-Sirá reconhece
que Deus, ao criar os homens, « revestiu-os da força conveniente e fê-los
à própria imagem » (17, 3). E a isso subordina o autor sagrado, não só
o domínio sobre o mundo, mas também as faculdades espirituais mais
específicas do homem, como a razão, o discernimento do bem e do mal,
a vontade livre: « Encheu-os de saber e inteligência, e mostrou-lhes o
bem e o mal » (Sir 17, 7). A capacidade de alcançar a verdade
e a liberdade são prerrogativas do homem enquanto criatura feita à
imagem do seu Criador, o Deus verdadeiro e justo (cf. Dt 32, 4).
Dentre todas as criaturas visíveis, apenas o homem é « capaz de
conhecer e amar o seu Criador ».24 A vida que Deus dá ao homem, é muito
mais do que uma existência no tempo. É tensão para uma plenitude de
vida; é germe de uma existência que ultrapassa os próprios limites
do tempo: « Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e fê-lo à
imagem da sua própria natureza » (Sab 2, 23).
35. Também o relato jahvista das origens exprime a mesma convicção.
Esta antiga narração fala de um sopro divino que é insuflado no homem, para que este dê entrada na vida: « O Senhor Deus formou o
homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o
homem transformou-se num ser vivo » (Gn 2, 7).
A origem divina deste espírito de vida explica a perene insatisfação
que acompanha o homem, ao longo dos seus dias. Obra plasmada pelo Senhor e
trazendo em si mesmo um traço indelével de Deus, o homem tende
naturalmente para Ele. Quando escuta o anseio profundo do coração, não
pode deixar de fazer sua esta afirmação de Santo Agostinho: «
Criastes-nos para Vós, Senhor, e o nosso coração vive inquieto enquanto
não repousa em Vós ».25
Como é eloqüente aquela insatisfação que se apodera da vida do homem
no Éden, quando lhe resta como única referência o mundo vegetal e
animal (cf. Gn 2, 20)! Somente a aparição da mulher, isto é, de
um ser que é carne da sua carne e osso dos seus ossos (cf. Gn 2,
23) e no qual vive igualmente o espírito de Deus Criador, pode satisfazer
a exigência de diálogo interpessoal, tão vital para a existência
humana. No outro, homem ou mulher, reflete-se o próprio Deus, abrigo
definitivo e plenamente feliz de toda a pessoa.
« Que é o homem para Vos lembrardes dele, o filho do homem para dele
cuidardes? » — interroga-se o Salmista (Sal 8, 5). Diante da
imensidão do universo, coisa bem pequena é o homem; mas é precisamente
este contraste que faz sobressair a sua grandeza: « Pouco lhe falta para
que seja um ser divino; de glória e de honra o coroastes » (Sal 8,
6). A glória de Deus resplandece no rosto do homem. Nele, o
Criador encontra o seu repouso, como comenta, maravilhado e comovido,
Santo Ambrósio: « Terminou o sexto dia, ficando concluída a criação
do mundo com a formação daquela obra-prima, o homem, que exerce o domínio
sobre todos os seres vivos e é como que o ápice do universo e a suprema
beleza de todo o ser criado. Verdadeiramente deveremos manter um silêncio
reverente, já que o Senhor Se repousou de toda a obra do mundo.
Repousou-Se no íntimo do homem, repousou-Se na sua mente e no seu
pensamento; de fato, tinha criado o homem dotado de razão, capaz de O
imitar, émulo das suas virtudes, desejoso das graças celestes. Nestes
seus dotes, repousa Deus que disse: "Sobre quem repousarei senão
naquele que é humilde, pacífico e teme as minhas palavras?" (Is 66,
1-2). Agradeço ao Senhor nosso Deus que criou uma obra tão maravilhosa
que nela encontra o seu repouso ».26
36. Infelizmente, este projeto maravilhoso de Deus ficou ofuscado pela
irrupção do pecado na história. Com o pecado, o homem revolta-se contra
o Criador, acabando por idolatrar as criaturas: « Veneraram a
criatura e prestaram-lhe culto de preferência ao Criador » (Rm 1,
25). Deste modo, o ser humano não só deturpa a imagem de Deus em si
mesmo, mas é tentado a ofendê-la também nos outros, substituindo as
relações de comunhão por atitudes de desconfiança, indiferença,
inimizade, até chegar ao ódio homicida. Quando não se reconhece Deus
como tal, atraiçoa-se o sentido profundo do homem e prejudica-se a
comunhão entre os homens.
Na vida do homem, a imagem de Deus volta a resplandecer e manifesta-se
em toda a sua plenitude com a vinda do Filho de Deus em carne humana: «
Ele é a imagem do Deus invisível » (Col 1, 15), « o resplendor
da sua glória e a imagem da sua substância » (Heb 1, 3). Ele é
a imagem perfeita do Pai.
O projeto de vida confiado ao primeiro Adão encontra finalmente em
Cristo a sua realização. Enquanto a desobediência de Adão arruína e
deturpa o desígnio de Deus sobre a vida do homem e introduz a morte no
mundo, a obediência redentora de Cristo é fonte de graça que se derrama
sobre os homens, abrindo a todos, de par em par, as portas do reino da
vida (cf. Rm 5, 12-21). Afirma o apóstolo Paulo: « O primeiro
homem, Adão, foi feito alma vivente; o último Adão é um espírito
vivificante » (1 Cor 15, 45).
A todos aqueles que aceitam seguir Cristo, é-lhes dada a plenitude da
vida: neles, a imagem divina é restaurada, renovada e levada à perfeição.
Este é o desígnio de Deus para os seres humanos: tornarem-se «
conformes à imagem do seu Filho » (Rm 8, 29). Só assim, no
esplendor desta imagem, é que o homem pode ser liberto da escravidão da
idolatria, pode reconstruir a fraternidade perdida e reencontrar a sua
identidade.
« Quem crê em Mim, ainda que esteja morto viverá » (Jo 11,
26): o dom da vida eterna
37. A vida que o Filho de Deus veio dar aos homens, não se reduz
meramente à existência no tempo. A vida, que desde sempre está « n'Ele
» e constitui « a luz dos homens » (Jo 1, 4), consiste em ser
gerados por Deus e participar na plenitude do seu amor: « A todos os
que O receberam, aos que crêem n'Ele, deu-lhes o poder de se tornarem
filhos de Deus; eles que não nasceram do sangue, nem de vontade carnal,
nem de vontade do homem, mas sim de Deus » (Jo 1, 12-13).
Umas vezes, Jesus designa esta vida, que Ele veio dar, simplesmente
como « a vida »; e apresenta o ser gerado por Deus como condição
necessária para poder alcançar o fim para o qual o homem foi criado: «
Quem não nascer de novo, não pode ver o Reino de Deus » (Jo 3,
3). O dom desta vida constitui o objeto próprio da missão de Jesus; Ele
« é Aquele que desce do Céu e dá a vida ao mundo » (Jo 6, 33),
de tal modo que pode afirmar com toda a verdade: « Quem Me segue (...)
terá a luz da vida » (Jo 8, 12).
Outras vezes, Jesus fala de « vida eterna », sem querer com o
adjetivo aludir apenas a uma perspectiva supratemporal. « Eterna » é a
vida que Jesus promete e dá, porque é plenitude de participação na
vida do « Eterno ». Todo aquele que crê em Jesus e vive em comunhão
com Ele tem a vida eterna (cf. Jo 3, 15; 6, 40), porque d'Ele
escuta as únicas palavras que revelam e infundem plenitude de vida à sua
existência; são as « palavras de vida eterna », que Pedro reconhece na
sua confissão de fé: « Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens
palavras de vida eterna; e nós acreditamos e sabemos que és o Santo de
Deus » (Jo 6, 68-69). O que seja essa vida eterna, declara-o Jesus
quando se dirigiu ao Pai na grande oração sacerdotal: « A vida eterna
consiste nisto: que Te conheçam a Ti, por único Deus verdadeiro, e a
Jesus Cristo, a Quem enviaste » (Jo 17, 3). Conhecer a Deus e ao
seu Filho é acolher o mistério da comunhão de amor do Pai, do Filho e
do Espírito Santo, na própria vida que se abre, já desde agora, à
vida eterna pela participação na vida divina.
38. Por conseguinte, a vida eterna é a própria vida de Deus e
simultaneamente a vida dos filhos de Deus. Um assombro incessante e
uma gratidão sem limites não podem deixar de se apoderar do crente
diante desta inesperada e inefável verdade que nos vem de Deus em Cristo.
O crente faz suas as palavras do apóstolo João: « Vede com que amor nos
amou o Pai, ao querer que fôssemos chamados filhos de Deus. E somo-lo de fato! (...) Caríssimos, agora somos filhos de Deus, mas ainda não se
manifestou o que havemos de ser. Sabemos, porém, que, quando Ele Se
manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é » (1
Jo 3, 1-2).
Assim, chega ao seu auge a verdade cristã acerca da vida. A
dignidade desta não está ligada apenas às suas origens, à sua proveniência
de Deus, mas também ao seu fim, ao seu destino de comunhão com Deus no
conhecimento e no amor d'Ele. É à luz desta verdade que Santo Ireneu
especifica e completa a sua exaltação do homem: « glória de Deus » é,
sim, « o homem vivo », mas « a vida do homem consiste na visão de Deus
».27
Daqui resultam conseqüências imediatas para a vida humana em sua própria
condição terrena, na qual já germinou e está a crescer a vida
eterna. Se o homem ama instintivamente a vida porque é um bem, tal amor
encontra ulterior motivação e força, nova amplitude e profundidade nas
dimensões divinas desse bem. Em semelhante perspectiva, o amor que cada
ser humano tem pela vida não se reduz à simples busca de um espaço onde
poder exprimir-se a si mesmo e entrar em relação com os outros, mas
evolui até à certeza feliz de poder fazer da própria existência o «
lugar » da manifestação de Deus, do encontro e comunhão com Ele. A
vida que Jesus nos dá, não desvaloriza a nossa existência no tempo, mas
assume-a e conduza-o ao seu último destino: « Eu sou a ressurreição e a
vida; (...) todo aquele que vive e crê em Mim não morrerá jamais » (Jo
11, 25.26).
« A cada um, pedirei contas do seu irmão » (cf. Gn 9,
5): veneração e amor pela vida dos outros
39. A vida do homem provém de Deus, é dom seu, é imagem e figura
d'Ele, participação do seu sopro vital. Desta vida, portanto, Deus
é o único senhor: o homem não pode dispor dela. Deus mesmo o
confirma a Noé, depois do dilúvio: « Ao homem, pedirei contas da vida
do homem, seu irmão » (Gn 9, 5). E o texto bíblico preocupa-se
em sublinhar como a sacralidade da vida tem o seu fundamento em Deus e na
sua ação criadora: « Porque Deus fez o homem à sua imagem » (Gn 9,
6).
Portanto, a vida e a morte do homem estão nas mãos de Deus, em seu
poder: « Deus tem nas suas mãos a alma de todo o ser vivente, e o sopro
de vida de todos os homens » — exclama Job (12, 10). « O Senhor é que
dá a morte e a vida, leva à habitação dos mortos e retira de lá » (1
Sam 2, 6). Apenas Ele pode afirmar: « Só Eu é que dou a vida e dou
a morte » (Dt 32, 39).
Mas Deus não exerce esse poder como arbítrio ameaçador, mas, sim,
como cuidado e solicitude amorosa pelas suas criaturas. Se é
verdade que a vida do homem está nas mãos de Deus, não o é menos que
estas são mãos amorosas como as de uma mãe que acolhe, nutre e toma
conta do seu filho: « Fico sossegado e tranqüilo como criança deitada
nos braços de sua mãe, como um menino deitado é a minha alma » (Sal
131130, 2; cf. Is 49, 15; 66, 12-13; Os 11, 4). Assim
nas vicissitudes dos povos e na sorte dos indivíduos, Israel não vê o
fruto de pura casualidade ou de um destino cego, mas o resultado de um desígnio
de amor, pelo qual Deus resguarda todas as potencialidades da vida e se
contrapõe às forças de morte que nascem do pecado: « Deus não é o
autor da morte, a perdição dos vivos não Lhe dá nenhuma alegria.
Porquanto Ele criou tudo para a existência » (Sab 1, 13-14).
40. Da sacralidade da vida dimana a sua inviolabilidade, inscrita
desde as origens no coração do homem, na sua consciência. A
pergunta « que fizeste? » (Gn 4, 10), dirigida por Deus a Caim
depois de ter assassinado o irmão Abel, traduz a experiência de cada
homem: no fundo da sua consciência, ele sente incessantemente o apelo à
inviolabilidade da vida — a própria e a alheia —, como realidade que
não lhe pertence, pois é propriedade e dom de Deus Criador e Pai.
O preceito relativo à inviolabilidade da vida humana ocupa o centro
dos « dez mandamentos » na aliança do Sinai (cf. Ex 34, 28).
Nele se proíbe, antes de mais, o homicídio: « Não matarás » (Ex 20,
13), « não causarás a morte do inocente e do justo » (Ex 23,
7); mas proíbe também — como se explicita na legislação posterior de
Israel — qualquer lesão infligida a outrem (cf. Ex 21, 12-27).
Tem-se de reconhecer que esta sensibilidade pelo valor da vida no Antigo
Testamento, apesar de já tão notável, não alcança ainda a perfeição
do Sermão da Montanha, como resulta de alguns aspectos da legislação
penal então vigente, que previa castigos corporais pesados e até mesmo a
pena de morte. Mas globalmente esta mensagem, que o Novo Testamento levará
à perfeição, é já um forte apelo ao respeito pela inviolabilidade da
vida física e da integridade pessoal, e tem o seu ápice no mandamento
positivo que obriga a cuidar do próximo como de si mesmo: « Amarás o
teu próximo como a ti mesmo » (Lv 19, 18).
41. O mandamento « não matarás », contido e aprofundado no
mandamento positivo do amor do próximo, é confirmado em toda a sua
validade pelo Senhor Jesus. Ao jovem rico que Lhe pede « Mestre, que hei de
fazer de bom para alcançar a vida eterna? », responde: « Se
queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos » (Mt 19,
16.17). E, logo em primeiro lugar, cita « não matarás » (19, 18). No
Sermão da Montanha, Jesus exige dos discípulos uma justiça superior à
dos escribas e fariseus, no campo do respeito pela vida: « Ouvistes que
foi dito aos antigos: "Não matarás; aquele que matar está sujeito
a ser condenado". Eu, porém, digo-vos: quem se irritar contra o seu
irmão será réu perante o tribunal » (Mt 5, 21-22).
Com a sua palavra e os seus gestos, Jesus explicita ulteriormente as
exigências positivas do mandamento referente à inviolabilidade da vida.
Estavam já presentes no Antigo Testamento, onde a legislação se
preocupava em garantir e salvaguardar as situações de vida débil e ameaçada:
o estrangeiro, a viúva, o órfão, o enfermo, o pobre em geral, a própria
vida antes de nascer (cf. Ex 21, 22; 22, 20-26). Mas com Jesus,
essas exigências positivas adquirem novo vigor e ímpeto, manifestando-se
em toda a sua amplitude e profundidade: vão desde o velar pela vida do irmão
(familiar, membro do mesmo povo, estrangeiro que habita na terra de
Israel), passam pelo cuidar do desconhecido, para chegarem até ao
amor do inimigo.
O desconhecido deixa de ser tal para quem deve fazer-se próximo
de todo aquele que se encontra necessitado, até assumir a
responsabilidade da sua vida, como ensina, de modo eloqüente e incisivo, a
parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 25-37). Também o inimigo
cessa de o ser para quem é obrigado a amá-lo (cf. Mt 5, 38-48; Lc
6, 27-35) e « fazer-lhe bem » (cf. Lc 6, 27.33.35), levando
remédio às carências da sua vida, com prontidão e sem esperar
recompensa (cf. Lc 6, 34-35). No vértice deste amor, está a oração
pelo inimigo, pela qual nos colocamos em sintonia com o amor providente de
Deus: « Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que
vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está
nos Céus; pois Ele faz que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz
cair a chuva sobre os justos e os pecadores » (Mt 5, 44-45; cf. Lc
6, 28.35).
Assim, o mandamento de Deus, orientado para a defesa da vida do homem,
tem a sua dimensão mais profunda na exigência de veneração e amor por
toda a pessoa e sua vida. Este é o ensinamento que o apóstolo Paulo,
dando eco às palavras de Jesus (cf. Mt 19, 17-18), dirige aos
cristãos de Roma: « Com efeito: "Não cometerás adultério, não
matarás, não furtarás, não cobiçarás" e qualquer dos outros
mandamentos resumem-se nestas palavras: "Amarás ao próximo como
a ti mesmo". A caridade não faz mal ao próximo. A caridade é,
pois, o pleno cumprimento da lei » (Rm 13, 9-10).
« Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra » (Gn
1, 28): as responsabilidades do homem pela vida
42. Defender e promover, venerar e amar a vida é tarefa que Deus
confia a cada homem, ao chamá-lo enquanto sua imagem viva a participar no
domínio que Ele tem sobre o mundo: « Abençoando-os, Deus disse:
"Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre
os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se
movem na terra" » (Gn 1, 28).
O texto bíblico manifesta claramente a amplitude e profundidade do domínio
que Deus concede ao homem. Trata-se, antes de mais, de domínio sobre a
terra e sobre todo o ser vivo, como recorda o Livro da Sabedoria: «
Deus dos nossos pais e Senhor de misericórdia, (...) formastes o homem
pela vossa sabedoria, para dominar sobre as criaturas a quem destes a
vida, para governar o mundo com santidade e justiça » (9, 1.2-3). Também
o Salmista exalta o domínio do homem como sinal da glória e honra
recebidas do Criador: « Destes-lhe domínio sobre as obras das vossas mãos.
Tudo submetestes debaixo dos seus pés; os rebanhos e os gados sem exceção,
até mesmo os animais selvagens; as aves do céu e os peixes do mar, tudo
o que se move nos oceanos » (Sal 8, 7-9).
Chamado a cultivar e guardar o jardim do mundo (cf. Gn 2, 15), o
homem detém uma responsabilidade específica sobre o ambiente de vida,
ou seja, sobre a criação que Deus pôs ao serviço da sua dignidade
pessoal, da sua vida: e isto não só em relação ao presente, mas também
às gerações futuras. É a questão ecológica — desde a
preservação do « habitat » natural das diversas espécies animais e
das várias formas de vida, até à « ecologia humana » propriamente
dita 28 — que, no texto bíblico, encontra luminosa e forte indicação
ética para uma solução respeitosa do grande bem da vida, de toda a
vida. Na realidade, « o domínio conferido ao homem pelo Criador não é
um poder absoluto, nem se pode falar de liberdade de "usar e
abusar", ou de dispor das coisas como melhor agrade. A limitação
imposta pelo mesmo Criador, desde o princípio, e expressa simbolicamente
com a proibição de "comer o fruto da árvore" (cf. Gn 2,
16-17), mostra com suficiente clareza que, nas relações com a natureza
visível, nós estamos submetidos a leis, não só biológicas, mas também
morais, que não podem impunemente ser transgredidas ».29
43. Uma certa participação do homem no domínio de Deus manifesta-se
também na específica responsabilidade que lhe está confiada no
referente à vida propriamente humana. Essa responsabilidade atinge o
auge na doação da vida, através da geração por obra do homem e
da mulher no matrimônio, como nos recorda o Concílio Vaticano II: « O
mesmo Deus que disse "não é bom que o homem esteja só" (Gn
2, 18) e que "desde a origem fez o ser humano varão e
mulher" (Mt 19, 4), querendo comunicar uma participação
especial na sua obra criadora, abençoou o homem e a mulher dizendo:
"crescei e multiplicai-vos" (Gn 1, 28) ».30
Ao falar de « uma participação especial » do homem e da mulher na
« obra criadora » de Deus, o Concílio pretende pôr em relevo como a
geração do filho é um fato não só profundamente humano mas também
altamente religioso, enquanto implica os cônjuges, que formam « uma só
carne » (Gn 2, 24), e simultaneamente o próprio Deus que Se faz
presente. Como escrevi na Carta às Famílias, « quando da união
conjugal dos dois nasce um novo homem, este traz consigo ao mundo uma
particular imagem e semelhança do próprio Deus: na biologia da geração
está inscrita a genealogia da pessoa. Ao afirmarmos que os cônjuges,
enquanto pais, são colaboradores de Deus Criador na concepção e geração
de um novo ser humano, não nos referimos apenas às leis da biologia;
pretendemos sobretudo sublinhar que, na paternidade e maternidade
humana, o próprio Deus está presente de um modo diverso do que se
verifica em qualquer outra geração "sobre a terra". Efetivamente, só de Deus pode provir aquela "imagem e semelhança"
que é própria do ser humano, tal como aconteceu na criação. A geração
é a continuação da criação ».31
Isto mesmo ensina, com linguagem clara e eloqüente, o texto sagrado ao
mencionar o grito jubiloso da primeira mulher, a « mãe de todos os
viventes » (Gn 3, 20); consciente da intervenção de Deus, Eva
exclama: « Gerei um homem com o auxílio do Senhor » (Gn 4, 1).
Assim, na geração, através da comunicação da vida dos pais ao filho
transmite-se, graças à criação da alma imortal,32 a imagem e semelhança
do próprio Deus. Neste sentido, se exprime o início do « livro da
genealogia de Adão »: « Quando Deus criou o homem, fê-lo à semelhança
de Deus. Criou-os varão e mulher, e abençoou-os. Deu-lhes o nome de
Homem no dia em que os criou. Com cento e trinta anos, Adão gerou um
filho à sua imagem e semelhança, e pôs-lhe o nome de Set » (Gn 5,
1-3). Precisamente neste papel de colaboradores de Deus, que transmite
a sua imagem à nova criatura, está a grandeza dos cônjuges,
dispostos « a colaborar com o amor do Criador e Salvador, que por meio
deles aumenta cada dia mais e enriquece a sua família ».33 À luz disto,
o bispo Anfilóquio exaltava o « matrimônio santo, eleito e elevado
acima de todos os dons terrenos », porque « gerador da humanidade, artífice
de imagens de Deus ».34
Assim o homem e a mulher, unidos pelo matrimônio, estão associados a
uma obra divina: por meio do ato da geração, o dom de Deus é acolhido,
e uma nova vida se abre ao futuro.
Mas, uma vez realçada a missão específica dos pais, há que
acrescentar: a obrigação de acolher e servir a vida compete a todos e
deve manifestar-se sobretudo a favor da vida em condições de maior
fragilidade. É o próprio Cristo quem no-lo recorda, ao pedir para
ser amado e servido nos irmãos provados por qualquer tipo de sofrimento:
famintos, sedentos, estrangeiros, nus, doentes, encarcerados... Aquilo que
for feito a cada um deles, é feito ao próprio Cristo (cf. Mt 25,
31-46).
« Vós é que plasmastes o meu interior » (Sal 139138,
13): a dignidade da criança ainda não nascida
44. A vida humana atravessa situações de grande fragilidade, quer ao
entrar no mundo, quer quando sai do tempo para ir ancorar-se na
eternidade. Na Palavra de Deus, encontramos numerosos apelos ao cuidado e
respeito pela vida, sobretudo quando esta aparece ameaçada pela doença e
pela velhice. Se faltam apelos diretos e explícitos para salvaguardar a
vida humana nas suas origens, especialmente a vida ainda não nascida, ou
então a vida próxima do seu termo, isso explica-se facilmente pelo fato de que a mera possibilidade de ofender, agredir ou mesmo negar a vida em
tais condições estava fora do horizonte religioso e cultural do Povo de
Deus.
No Antigo Testamento, a esterilidade era temida como uma maldição,
enquanto se considerava uma bênção a prole numerosa: « Os filhos são
bênçãos do Senhor; os frutos do ventre, um mimo do Senhor » (Sal 127126,
3; cf. Sal 128127, 3-4). Para esta convicção, concorre certamente
a consciência que Israel tem de ser o povo da Aliança, chamado a
multiplicar-se segundo a promessa feita a Abraão: « Ergue os olhos para
os céus e conta as estrelas, se fores capaz de as contar (...) será
assim a tua descendência » (Gn 15, 5). Mas influi sobretudo a
certeza de que a vida transmitida pelos pais tem a sua origem em Deus,
como o atestam tantas páginas bíblicas que, com respeito e amor, falam
da concepção, da moldagem da vida no ventre materno, do nascimento e da
ligação íntima entre o momento inicial da existência e a ação de
Deus Criador.
« Antes que fosses formado no ventre de tua mãe, Eu já te conhecia;
antes que saísses do seio materno, Eu te consagrei » (Jr 1, 5): a
existência de cada indivíduo, desde as suas origens, obedece ao desígnio
de Deus. Job, na profundidade da sua dor, detém-se a contemplar a
obra de Deus na miraculosa formação do seu corpo no ventre da mãe,
retirando daí motivo de confiança e exprimindo a certeza da existência
de um projeto divino para a sua vida: « As tuas mãos formaram-me e
fizeram-me e, de repente, vais aniquilar-me? Lembra-Te que me formaste com
o barro; far-me-ás, agora, voltar ao pó? Não me espremeste como o leite
e coalhaste como o queijo? De pele e de carne me revestiste, de ossos e de
nervos me consolidaste. Deste-me a vida e favoreceste-me; a tua providência
conservou o meu espírito » (10, 8-12). Modulações cheias de enlevo
adorador pela intervenção de Deus na vida em formação no ventre
materno ressoam também nos Salmos.35
Como pensar que este maravilhoso processo de germinação da vida possa
subtrair-se, por um só momento, à obra sapiente e amorosa do Criador
para ficar abandonado ao arbítrio do homem? Não o pensa, seguramente, a
mãe dos sete irmãos que professa a sua fé em Deus, princípio e
garantia da vida desde a concepção e ao mesmo tempo fundamento da
esperança da nova vida para além da morte: « Não sei como aparecestes
nas minhas entranhas, porque não fui eu quem vos deu a alma nem a vida e
nem fui eu quem ajuntou os vossos membros. Mas o Criador do mundo, autor
do nascimento do homem e criador de todas as coisas, restituir-vos-á, na
sua misericórdia, tanto o espírito como a vida, se agora fizerdes pouco
caso de vós mesmos por amor das suas leis » (2 Mac 7, 22-23).
45. A revelação do Novo Testamento confirma o reconhecimento
indiscutível do valor da vida desde os seus inícios. A exaltação
da fecundidade e o trepidante anseio da vida ressoam nas palavras com que
Isabel rejubila pela sua gravidez: ao Senhor « aprouve retirar a minha
ignomínia » (Lc 1, 25). Mas o valor da pessoa, desde a sua concepção,
é celebrado ainda melhor no encontro da Virgem Maria e Isabel e entre as
duas crianças, que trazem no seio. São precisamente eles, os meninos, a
revelarem a chegada da era messiânica: no seu encontro, começa a agir a
força redentora da presença do Filho de Deus no meio dos homens. «
Depressa se manifestam — escreve Santo Ambrósio — os benefícios da
chegada de Maria e da presença do Senhor. (...) Isabel foi a primeira a
escutar a voz, mas João foi o primeiro a pressentir a graça. Aquela
escutou segundo a ordem da natureza; este exultou em virtude do mistério.
Ela apreendeu a chegada de Maria; este, a do Senhor. A mulher ouviu a voz
da mulher; o menino sentiu a presença do Filho. Aquelas proclamam a graça
de Deus, estes realizam-na interiormente, iniciando no seio de suas mães
o mistério de piedade; e, por um duplo milagre, as mães profetizam sob a
inspiração de seus filhos. O filho exultou de alegria; a mãe ficou
cheia do Espírito Santo. A mãe não se antecipou ao filho; foi este que,
uma vez cheio do Espírito Santo, o comunicou a sua mãe ».36
« Confiei mesmo quando disse: "Sou um homem de todo
infeliz" » (Sal 116115, 10): a vida na velhice e no
sofrimento
46. Também no que se refere aos últimos dias da existência, seria
anacrônico esperar da revelação bíblica uma referência expressa à
problemática atual do respeito pelas pessoas idosas e doentes, ou uma
explícita condenação das tentativas de lhes antecipar violentamente o
fim: encontramo-nos, de fato, perante um contexto cultural e religioso
que não está pervertido por tais tentações, mas antes reconhece na
sabedoria e experiência do ancião uma riqueza insubstituível para a família
e a sociedade.
A velhice goza de prestígio e é circundada de veneração (cf.
2 Mac 6, 23). O justo não pede para ser privado da velhice nem do seu
peso; antes pelo contrário: « Vós sois a minha esperança, a minha
confiança, Senhor, desde a minha juventude. (...) Agora, na velhice e na
decrepitude, não me abandoneis, ó Deus; para que narre às gerações a
força do vosso braço, o vosso poder a todos os que hão de vir » (Sal
7170, 5.18). O ideal do tempo messiânico é apresentado como aquele
em que « não mais haverá (...) um velho que não complete os seus dias
» (Is 65, 20).
Mas, como enfrentar o declínio inevitável da vida, na velhice?Como
comportar-se frente à morte? O crente sabe que a sua vida está nas mãos
de Deus: « Senhor, nas tuas mãos está a minha vida » (cf. Sal
1615, 5); e d'Ele aceite também a morte: « Este é o juízo do Senhor
sobre toda a humanidade; e porque quererias reprovar a lei do Altíssimo?
» (Sir 41, 4). O homem não é senhor nem da vida nem da morte;
tanto numa como noutra, deve abandonar-se totalmente à « vontade do Altíssimo
», ao seu desígnio de amor.
Também no momento da doença, o homem é chamado a viver a
mesma entrega ao Senhor e a renovar a sua confiança fundamental n'Aquele
que « sara todas as enfermidades » (cf. Sal 103102, 3). Quando
toda e qualquer esperança de saúde parece fechar-se para o homem — a
ponto de o levar a gritar: « Os meus dias são como a sombra que declina,
e vou-me secando como o feno » (Sal 102101, 12) — , mesmo então
o crente está animado pela fé inabalável no poder vivificador de Deus.
A doença não o leva ao desespero nem ao desejo da morte, mas a uma
invocação cheia de esperança: « Confiei mesmo quando disse: "Sou
um homem de todo infeliz" » (Sal 116115, 10); « Senhor, meu
Deus, a vós clamei e fui curado. Senhor, livrastes a minha alma da mansão
dos mortos; destes-me a vida quando já descia ao túmulo » (Sal 3029,
3-4).
47. A missão de Jesus, com as numerosas curas realizadas, indica quanto
Deus tem a peito também a vida corporal do homem. « Médico do corpo
e do espírito »,37 Jesus foi mandado pelo Pai para anunciar a boa nova
aos pobres e para curar os de coração despedaçado (cf. Lc 4, 18;
Is 61, 1). Depois, ao enviar os seus discípulos pelo mundo,
confia-lhes uma missão na qual a cura dos doentes acompanha o anúncio do
Evangelho: « Pelo caminho, proclamai que o reino dos Céus está perto.
Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai
os demônios » (Mt 10, 7-8; cf. Mc 6, 13; 16, 18).
Certamente, a vida do corpo na sua condição terrena não é um
absoluto para o crente, de tal modo que lhe pode ser pedido para a
abandonar por um bem superior; como diz Jesus, « quem quiser salvar a sua
vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por Mim e pelo Evangelho,
salvá-la-á » (Mc 8, 35). A este propósito, o Novo Testamento
oferece diversos testemunhos. Jesus não hesita em sacrificar-Se a Si próprio
e, livremente, faz da sua vida uma oferta ao Pai (cf. Jo 10, 17) e
aos seus (cf. Jo 10, 15). Também a morte de João Baptista,
precursor do Salvador, atesta que a existência terrena não é o bem
absoluto: é mais importante a fidelidade à palavra do Senhor, ainda que
esta possa pôr em jogo a vida (cf. Mc 6, 17-29). E Estevão, ao
ser privado da vida temporal porque testemunha fiel da ressurreição do
Senhor, segue os passos do Mestre e vai ao encontro dos seus lapidadores
com as palavras do perdão (cf. at 7, 59-60), abrindo a estrada do
exército inumerável dos mártires, venerados pela Igreja desde o princípio.
Todavia, ninguém pode escolher arbitrariamente viver ou morrer;
efetivamente, senhor absoluto de tal decisão é apenas o Criador, Aquele
em quem « vivemos, nos movemos e existimos » (at 17, 28).
« Todos os que a seguirem alcançarão a vida » (Bar 4,
1): da Lei do Sinai ao dom do Espírito
48. A vida traz indelevelmente inscrita nela uma verdade sua. O
homem, ao acolher o dom de Deus, deve comprometer-se a manter a vida
nesta verdade, que lhe é essencial. Desviar-se dela, equivale a
condenar-se a si próprio à insignificância e à infelicidade, com a conseqüência
de poder tornar-se também uma ameaça para a existência
dos outros, já que foram rompidos os diques que garantiam o respeito e a
defesa da vida, em qualquer situação.
A verdade da vida é revelada pelo mandamento de Deus. A palavra
do Senhor indica concretamente a direção que a vida deve seguir, para
poder respeitar a própria verdade e salvaguardar a sua dignidade. Não é
apenas o mandamento específico — « não matarás » (Ex 20, 13;
Dt 5, 17) — a garantir a proteção da vida; mas a Lei do
Senhor em toda a sua extensão está ao serviço dessa proteção,
porque revela aquela verdade na qual a vida encontra o seu pleno
significado.
Não admira, pois, que a Aliança de Deus com o seu povo esteja tão
intensamente ligada à perspectiva da vida, mesmo na sua dimensão corpórea.
Naquela, o mandamento é dado como caminho da vida: « Vê,
ofereço-te hoje, de um lado, a vida e o bem; de outro, a morte e o mal.
Recomendo-te hoje que ames o Senhor, teu Deus, que andes nos seus
caminhos, que guardes os seus preceitos, suas leis e seus decretos. Se
assim fizeres, viverás, engrandecer-te-ás e serás abençoado pelo
Senhor, teu Deus, na terra em que vais entrar para a possuir » (Dt 30,
15-16). Não está em questão apenas a terra de Canaã e a existência do
povo de Israel, mas também o mundo de hoje e do futuro e a existência de
toda a humanidade. De fato, não é possível, absolutamente, a vida
permanecer autêntica e plena, quando se afasta do bem; e o bem, por sua
vez, está essencialmente ligado aos mandamentos do Senhor, isto é, à «
lei da vida » (Sir 17, 11). O bem que se tem de realizar, não é
imposto à vida como um fardo que pesa sobre ela, porque a própria razão
da vida é precisamente o bem, e a vida é construída apenas mediante o
cumprimento do bem.
Portanto, é a Lei no seu todo que salvaguarda plenamente a vida
do homem. Isto explica como é difícil manter-se fiel ao preceito « não
matarás », quando não são observadas as demais « palavras de vida »
(at 7, 38), às quais ele está ligado. Fora deste horizonte, o
mandamento acaba por se tornar uma mera obrigação extrínseca, da qual
bem depressa desejar-se-ão ver os limites e procurar-se-ão as atenuantes
ou as exceções. Só se nos abrirmos à plenitude da verdade acerca de
Deus, do homem e da história, é que o preceito « não matarás »
voltará a resplandecer como o melhor para o homem em todas as suas dimensões
e relações. Nesta perspectiva, podemos atingir a plenitude da verdade
contida na passagem do Livro do Deuteronômio, retomada por Jesus na
resposta à primeira tentação: « O homem não vive somente de pão, mas
de tudo o que sai da boca do Senhor » (8, 3; cf. Mt 4, 4).
É escutando a palavra do Senhor que o homem pode viver com dignidade e
justiça; é observando a lei de Deus que o homem pode produzir frutos de
vida e de felicidade: « Todos os que a seguirem alcançarão a vida, e os
que a abandonarem cairão na morte » (Bar 4, 1).
49. A história de Israel mostra como é difícil permanecer fiel à
lei da vida, que Deus inscreveu no coração dos homens e entregou no
Sinai ao povo da Aliança. Contra a busca de projetos de vida
alternativos ao plano de Deus, levantam-se de modo particular os Profetas,
recordando insistentemente que só o Senhor é a autêntica fonte da vida.
Assim escreve Jeremias: « O meu povo cometeu um duplo crime: abandonou-Me
a Mim, fonte de águas vivas, para cavar cisternas, cisternas rotas, que não
podem reter as águas » (2, 13). Os Profetas apontam o dedo acusador
contra aqueles que desprezam a vida e violam os direitos das pessoas: «
Esmagam como o pó da terra a cabeça do pobre » (Am 2, 7); «
mancharam este lugar com o sangue de inocentes » (Jr 19, 4). E a
estes, vem juntar-se o profeta Ezequiel que mais de uma vez verbera a
cidade de Jerusalém, designando-a como « a cidade sanguinária » (22,
2; 24, 6.9), a « cidade que derramou o sangue no seu seio » (22, 3).
Mas, ao mesmo tempo que denunciam as ofensas contra a vida, os Profetas
preocupam-se sobretudo por suscitar a esperança de um novo princípio
de vida, capaz de fundar um renovado relacionamento com Deus e com os
irmãos, entreabrindo possibilidades inéditas e extraordinárias para
compreender e atuar todas as exigências contidas no Evangelho da
vida. Isso será possível unicamente mediante um dom de Deus, que
purifique e renove: « Derramarei sobre vós uma água pura e sereis
purificados; Eu vos purificarei de todas as manchas e de todos os pecados.
Dar-vos-ei um coração novo e infundirei em vós um espírito novo » (Ez
36, 25-26; cf. Jr 31, 31-34). Graças a este « coração novo
», pode-se compreender e realizar o sentido mais verdadeiro e profundo da
vida: ser um dom que se consuma no dar-se. É a mensagem luminosa
sobre o valor da vida que nos vem da figura do Servo do Senhor: «
Oferecendo a sua vida em sacrifício expiatório, terá uma posteridade
duradoura e viverá longos dias. (...) Livrada a sua alma dos tormentos,
verá a luz » (Is 53, 10.11).
Na existência de Jesus de Nazaré, a Lei teve pleno cumprimento, ao
ser dado o coração novo por meio do seu Espírito. Com efeito, Cristo não
revoga a Lei, mas leva-a ao seu pleno cumprimento (cf.Mt 5, 17): a
Lei e os Profetas resumem-se na regra-áurea do amor recíproco (cf. Mt
7, 12). N'Ele, a Lei torna-se definitivamente « evangelho », feliz
notícia do domínio de Deus sobre o mundo, que reconduz toda a existência
às suas raízes e perspectivas originais. É a Nova Lei, « a lei
do Espírito que dá vida em Cristo Jesus » (Rm 8, 2), cuja
expressão fundamental, a exemplo do Senhor que dá a vida pelos próprios
amigos (cf. Jo 15, 13), é o dom de si no amor aos irmãos: «
Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos
» (1 Jo 3, 14). É lei de liberdade, alegria e felicidade.
« Hão de olhar para Aquele que trespassaram » (Jo 19,
37): na árvore da Cruz, cumpre-se o Evangelho da Vida
50. No final deste capítulo, em que meditamos a mensagem cristã
sobre a vida, quereria deter-me com cada um de vós a contemplar Aquele
que trespassaram e que atrai todos a Si (cf. Jo 19, 37; 12,
32). Levantando os olhos para « o espetáculo » da cruz (cf. Lc 23,
48), poderemos descobrir, nesta árvore gloriosa, o cumprimento e a plena
revelação de todo o Evangelho da vida.
Nas primeiras horas da tarde de Sexta-feira Santa, « as trevas
cobriram toda a terra (...) por o sol se haver eclipsado. O véu do Templo
rasgou-se ao meio » (Lc 23, 44.45). É o símbolo de uma grande
perturbação cósmica e de uma luta atroz das forças do bem contra as do
mal, da vida contra a morte. Também hoje nos encontramos no meio de uma
luta dramática entre a « cultura da morte » e a « cultura da vida ».
Mas o esplendor da Cruz não fica submerso pelas trevas; pelo contrário,
aquela desenha-se ainda mais clara e luminosa, revelando-se como o centro,
o sentido e o fim da história inteira e de toda a vida humana.
Jesus é pregado na cruz e levantado da terra. Vive o momento da sua máxima
« impotência », e a sua vida parece totalmente abandonada aos insultos
dos seus adversários e às mãos dos seus carrascos: é humilhado,
escarnecido, ultrajado (cf. Mc 15, 24-36). E contudo, precisamente
diante de tudo isso e « ao vê-Lo expirar daquela maneira », o centurião
romano exclama: « Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus! » (Mc
15, 39). Revela-se assim, no momento da sua extrema debilidade, a
identidade do Filho de Deus: na Cruz, manifesta-se a sua glória!
Com a sua morte, Jesus ilumina o sentido da vida e da morte de todo o
ser humano. Antes de morrer, Jesus reza ao Pai, pedindo o perdão para os
seus perseguidores (cf. Lc 23, 34), e ao malfeitor, que Lhe pede
para Se recordar dele no seu reino, responde: « Em verdade te digo: hoje
estarás Comigo no Paraíso » (Lc 23, 43). Depois da sua morte, «
abriram-se os túmulos e muitos corpos de santos que estavam mortos,
ressuscitaram » (Mt 27, 52). A salvação, operada por Jesus, é
doação de vida e de ressurreição. Ao longo da sua existência, Jesus
tinha concedido a salvação, curando e fazendo o bem a todos (cf. at 10,
38). Mas os milagres, as curas e as próprias ressurreições eram sinal
de outra salvação que consiste no perdão dos pecados, ou seja, na
libertação do homem do mal mais profundo, e na sua elevação à própria
vida de Deus.
Na Cruz, renova-se e realiza-se, em sua perfeição plena e definitiva,
o prodígio da serpente erguida por Moisés no deserto (cf. Jo 3,
14-15; Nm 21, 8-9). Também hoje, voltando o olhar para Aquele que
foi trespassado, cada homem com a sua existência ameaçada recobra a
esperança segura de encontrar libertação e redenção.
51. Mas há ainda outro acontecimento específico que atrai o meu olhar
e merece compenetrada meditação. « Quando Jesus tomou o vinagre,
exclamou: "Tudo está consumado". E inclinando a cabeça,
entregou o espírito » (Jo 19, 30). E o soldado romano «
perfurou-Lhe o lado com uma lança e logo saiu sangue e água » (Jo
19, 34).
Tudo chegou já ao seu pleno cumprimento. O « entregar o espírito »
exprime certamente a morte de Jesus, semelhante à de qualquer outro ser
humano, mas parece aludir também ao « dom do Espírito », com que Ele
nos resgata da morte e desperta para uma vida nova.
A própria vida de Deus é participada ao homem. Mediante os
sacramentos da Igreja — cujo símbolo são o sangue e a água, que
brotam do lado de Cristo —, aquela vida é incessantemente comunicada
aos filhos de Deus, constituídos como povo da nova aliança. Da Cruz,
fonte de vida, nasce e se propaga o « povo da vida ».
Deste modo, a contemplação da Cruz leva-nos às raízes mais
profundas daquilo que sucedeu. Jesus que, ao entrar no mundo, tinha dito:
« Eis que venho, ó Deus, para fazer a tua vontade » (cf. Heb 10,
9), fez-Se em tudo obediente ao Pai, e tendo « amado os seus que estavam
no mundo, amou-os até ao fim » (Jo 13, 1), entregando-Se
inteiramente por eles.
Ele que não « veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em
resgate por todos » (Mc 10, 45), chega ao vértice do amor na
Cruz: « Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus
amigos » (Jo 15, 13). E Ele morreu por nós, quando éramos ainda
pecadores (cf. Rm 5, 8).
Deste modo, Cristo proclama que a vida atinge o seu centro, sentido
e plenitude quando é doada.
Chegada a este ponto, a meditação faz-se louvor e agradecimento e, ao
mesmo tempo, estimula-nos a imitar Jesus e a seguir os seus passos (cf. 1
Ped 2, 21).
Também nós somos chamados a dar a nossa vida pelos irmãos,
realizando assim, na sua verdade mais plena, o sentido e o destino da
nossa existência.
Podê-lo-emos fazer porque Vós, Senhor, nos destes o exemplo e
comunicastes a força do Espírito. Podê-lo-emos fazer se cada dia,
Convosco e como Vós, formos obedientes ao Pai e fizermos a sua vontade.
Concedei-nos, pois, ouvir com coração dócil e generoso toda a
palavra que sai da boca de Deus: aprenderemos assim não apenas a « não
matar » a vida do homem, mas também a sabê-la venerar, amar e promover.
CAPÍTULO III
NÃO MATARÁS
A LEI SANTA DE DEUS
« Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos » (Mt
19, 17): Evangelho e mandamento
52. « Aproximou-se d'Ele um jovem e disse- -Lhe: "Que
hei de fazer de bom para alcançar a vida eterna?" » (Mt 19, 16).
Jesus respondeu: « Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos
» (Mt 19, 17). O Mestre fala da vida eterna, isto é, da participação
na própria vida de Deus. A esta vida, chega-se através da observância
dos mandamentos, incluindo naturalmente aquele que diz « não matarás ».
Este é precisamente o primeiro preceito do Decálogo que Jesus recorda ao
jovem, quando este Lhe solicita os mandamentos que terá de cumprir: «
Retorquiu Jesus: "Não matarás; não cometerás adultério; não
roubarás..." » (Mt 19, 18).
O mandamento de Deus nunca está separado do seu amor: é sempre
um dom para o crescimento e a alegria do homem. Como tal, constitui um
aspecto essencial e um elemento inalienável do Evangelho, mais, o próprio
mandamento se configura como « evangelho », ou seja, uma boa e feliz notícia.
Também o Evangelho da vida é um grande dom de Deus e
simultaneamente uma exigente tarefa para o homem. Aquele suscita assombro
e gratidão na pessoa livre e pede para ser acolhido, guardado e
valorizado com vivo sentimento de responsabilidade: dando-lhe a
vida, Deus exige do homem que a ame, respeite e promova. Deste
modo, o dom faz-se mandamento, e o mandamento é em si mesmo um
dom.
Imagem viva de Deus, o homem foi querido pelo seu Criador como rei e
senhor. « Deus fez o homem — escreve S. Gregório de Nissa — de forma
tal que pudesse desempenhar a sua função de rei da terra. (...) O homem
foi criado à imagem d'Aquele que governa o universo. Tudo indica que,
desde o princípio, a sua natureza está marcada pela realeza. (...) Assim
a natureza humana, criada para ser senhora das outras criaturas, à
semelhança do Soberano do universo, foi estabelecida como sua imagem
viva, participante da dignidade do divino Arquétipo ».38 Chamado para
ser fecundo e multiplicar-se, sujeitar a terra e dominar sobre os seres
que lhe são inferiores (cf. Gn 1, 28), o homem é rei e senhor não
apenas das coisas, mas também e primariamente de si mesmo 39 e, em certo
sentido, da vida que lhe é dada e que ele pode transmitir por meio da
geração cumprida no amor e no respeito do desígnio de Deus. No entanto,
o seu domínio não é absoluto, mas ministerial: é reflexo
concreto do domínio único e infinito de Deus. Por isso, o homem deve vivê-lo
com sabedoria e amor, participando da sabedoria e do amor
incomensurável de Deus. E isto verifica-se pela obediência à sua Lei
santa: uma obediência livre e alegre (cf. Sal 119118) que nasce e
se alimenta da certeza de que os preceitos do Senhor são dons de graça,
confiados ao homem sempre e só para o seu bem, para a defesa da sua
dignidade pessoal e para a prossecução da sua felicidade.
Aquilo que foi dito no referente às coisas, vale ainda mais agora no
contexto da vida: o homem não é senhor absoluto e árbitro incontestável,
mas — e nisso está a sua grandeza incomparável — é « ministro do
desígnio de Deus ».40
A vida é confiada ao homem como um tesouro que não pode
maltratar,
como um talento que há de pôr a render. Dela terá de prestar contas ao
seu Senhor (cf. Mt 25, 14-30; Lc 19, 12-27).
« Ao homem, pedirei contas da vida do homem » (Gn 9,
5): a vida humana é sagrada e inviolável
53. « A vida humana é sagrada, porque, desde a sua origem, supõe
"a ação criadora de Deus" e mantém-se para sempre numa relação
especial com o Criador, seu único fim. Só Deus é senhor da vida, desde
o princípio até ao fim: ninguém, em circunstância alguma, pode
reivindicar o direito de destruir diretamente um ser humano inocente ».41
Com estas palavras, a Instrução Donum vitae expõe o conteúdo
central da revelação de Deus sobre a sacralidade e inviolabilidade da
vida humana.
De fato, a Sagrada Escritura apresenta ao homem o preceito « não
matarás » (Ex 20, 13; Dt 5, 17) como mandamento divino.
Como já sublinhei, encontra-se no Decálogo, no coração da Aliança,
que o Senhor concluiu com o povo eleito; mas estava já contido na aliança
primordial de Deus com a humanidade, após o castigo purificador do dilúvio,
que fora provocado pelo incremento do pecado e da violência (cf. Gn 9,
5-6).
Deus proclama-Se Senhor absoluto da vida do homem, formado à sua
imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26-28). A vida humana possui,
portanto, um caráter sagrado e inviolável, no qual se reflete a própria
inviolabilidade do Criador. Por isso mesmo, será Deus que Se fará juiz
severo de qualquer violação do mandamento « não matarás », colocado
na base de toda a convivência social. Deus é o go'el, ou seja, o
defensor do inocente (cf. Gn 4, 9-15; Is 41, 14; Jr 50,
34; Sal 1918, 15). Deus comprova, assim também, que não Se alegra
com a perdição dos vivos (cf. Sab 1, 13). Com esta, apenas Satanás
se pode alegrar: foi pela sua inveja que a morte entrou no mundo (cf. Sab
2, 24). « Assassino desde o princípio », o diabo é também «
mentiroso e pai da mentira » (Jo 8, 44): enganando o homem,
levou-o para metas de pecado e de morte, apresentadas como objetivos e
frutos de vida.
54. O preceito « não matarás », explicitamente, tem um forte conteúdo
negativo: indica o limite extremo que nunca poderá ser transposto.
Implicitamente, porém, induz a uma atitude positiva de respeito absoluto
pela vida, levando a promovê-la e a crescer seguindo a estrada do amor
que se dá, acolhe e serve. Também o povo da Aliança, ainda que
lentamente e não sem contradições, experimentou um amadurecimento
progressivo nessa direção, preparando-se assim para a grande proclamação
de Jesus: o amor do próximo é um mandamento semelhante ao do amor de
Deus; « destes dois mandamentos depende toda a Lei e os Profetas » (Mt
22, 36-40). « Com efeito, (...) não matarás (...) e qualquer dos outros
mandamentos — sublinha S. Paulo — resumem-se nestas palavras:
"Amarás ao próximo como a ti mesmo" » (Rm 13, 9; cf.
Gal 5, 14). Assumido e levado à perfeição na Nova Lei, o preceito
« não matarás » permanece como condição indispensável para poder «
entrar na vida » (cf. Mt 19, 16-19). E, nesta mesma perspectiva,
aponta decisivamente a palavra do apóstolo João: « Todo aquele que
odeia o seu irmão é homicida e sabeis que nenhum homicida tem a vida
eterna permanentemente em si » (1 Jo 3, 15).
Desde os seus primórdios, a Tradição viva da Igreja — como
testemunha a Didaké, o escrito cristão extra-bíblico mais antigo
— reafirmou de modo categórico o mandamento « não matarás »: « Há
dois caminhos, um da vida e o outro da morte; mas entre os dois existe uma
grande diferença. (...) Segundo o preceito da doutrina: não matarás;
(...) não matarás o embrião por meio do aborto, nem farás que morra o
recém-nascido. (...) Este é o caminho da morte: (...) não têm compaixão
do pobre, não sofrem com o enfermo, nem reconhecem o seu Criador;
assassinam os seus filhos e pelo aborto fazem perecer criaturas de Deus;
desprezam o necessitado, oprimem o atribulado, são defensores dos ricos e
juízes injustos dos pobres; estão cheios de todo o pecado. Possais,
filhos, permanecer sempre longe de todas estas culpas! ».42
Ao longo dos tempos, a Tradição da Igreja ensinou sempre e
unanimemente o valor absoluto e permanente do mandamento « não matarás
». É sabido que, nos primeiros séculos, o homicídio se contava entre
os três pecados mais graves — juntamente com a apostasia e o adultério
—, e exigia-se uma penitência pública particularmente onerosa e
demorada, antes de ser concedido ao homicida arrependido o perdão e a
readmissão na comunidade eclesial.
55. Não há de que se maravilhar! Matar o ser humano, no qual está
presente a imagem de Deus, é pecado de particular gravidade.Só Deus
é dono da vida! No entanto, frente aos múltiplos casos, freqüentemente
dramáticos, que a vida individual e social apresenta, a
reflexão dos crentes procurou sempre alcançar um conhecimento mais
completo e profundo daquilo que o mandamento de Deus proíbe e
prescreve.43 Com efeito, há situações onde os valores propostos pela
Lei de Deus parecem formar um verdadeiro paradoxo. É o caso, por exemplo,
da legítima defesa, onde o direito de proteger a própria vida e o
dever de não lesar a alheia se revelam, na prática, dificilmente conciliáveis.
Sem dúvida que o valor intrínseco da vida e o dever de dedicar um amor a
si mesmo não menor que aos outros, fundam um verdadeiro direito à própria
defesa. O próprio preceito que manda amar os outros, enunciado no
Antigo Testamento e confirmado por Jesus, supõe o amor a si mesmo como
termo de comparação: « Amarás o teu próximo como a ti mesmo »
(Mc 12, 31). Portanto, ninguém poderia renunciar ao direito de se
defender por carência de amor à vida ou a si mesmo, mas apenas em
virtude de um amor heróico que, na linha do espírito das bem-aventuranças
evangélicas (cf. Mt 5, 38- 48), aprofunde o amor a si mesmo,
transfigurando-o naquela oblação radical cujo exemplo mais sublime é o
próprio Senhor Jesus.
Por outro lado, « a legítima defesa pode ser, não somente um
direito, mas um dever grave, para aquele que é responsável pela vida de
outrem, do bem comum da família ou da sociedade ».44 Acontece,
infelizmente, que a necessidade de colocar o agressor em condições de não
molestar implique, às vezes, a sua eliminação. Nesta hipótese, o
desfecho mortal há de ser atribuído ao próprio agressor que a tal se
expôs com a sua ação, inclusive no caso em que ele não fosse
moralmente responsável por falta do uso da razão.45
56. Nesta linha, coloca-se o problema da pena de morte, à volta
do qual se registra, tanto na Igreja como na sociedade, a tendência
crescente para pedir uma aplicação muito limitada, ou melhor, a total
abolição da mesma. O problema há de ser enquadrado na perspectiva de
uma justiça penal, que seja cada vez mais conforme com a dignidade do
homem e portanto, em última análise, com o desígnio de Deus para o
homem e a sociedade. Na verdade, a pena, que a sociedade inflige, tem «
como primeiro efeito o de compensar a desordem introduzida pela falta ».46
A autoridade pública deve fazer justiça pela violação dos direitos
pessoais e sociais, impondo ao réu uma adequada expiação do crime como
condição para ser readmitido no exercício da própria liberdade. Deste
modo, a autoridade há de procurar alcançar o objetivo de defender a
ordem pública e a segurança das pessoas, não deixando, contudo, de
oferecer estímulo e ajuda ao próprio réu para se corrigir e redimir.47
Claro está que, para bem conseguir todos estes fins, a medida e a
qualidade da pena hão de ser atentamente ponderadas e decididas, não
se devendo chegar à medida extrema da execução do réu senão em casos
de absoluta necessidade, ou seja, quando a defesa da sociedade não fosse
possível de outro modo. Mas, hoje, graças à organização cada vez mais
adequada da instituição penal, esses casos são já muito raros, se não
mesmo praticamente inexistentes.
Em todo o caso, permanece válido o princípio indicado pelo novo
Catecismo da Igreja Católica: « na medida em que outros processos,
que não a pena de morte e as operações militares, bastarem para
defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a paz pública,
tais processos não sangrentos devem preferir-se, por serem proporcionados
e mais conformes com o fim em vista e a dignidade humana ».48
57. Se se deve mostrar uma atenção assim tão grande por qualquer
vida, mesmo pela do réu e a do injusto agressor, o mandamento « não
matarás » tem valor absoluto quando se refere à pessoa inocente. E
mais ainda, quando se trata de um ser frágil e inerme que encontra a sua
defesa radical do arbítrio e da prepotência alheia, unicamente na força
absoluta do mandamento de Deus.
De fato, a inviolabilidade absoluta da vida humana inocente é uma
verdade moral explicitamente ensinada na Sagrada Escritura, constantemente
mantida na Tradição da Igreja e unanimemente proposta pelo seu Magistério.
Tal unanimidade é fruto evidente daquele « sentido sobrenatural da fé
» que, suscitado e apoiado pelo Espírito Santo, preserva do erro o Povo
de Deus, quando « manifesta consenso universal em matéria de fé e
costumes ».49
Face ao progressivo enfraquecimento, nas consciências e na sociedade,
da percepção da absoluta e grave ilicitude moral da eliminação direta de qualquer vida humana inocente, sobretudo no seu início e no seu termo,
o Magistério da Igreja intensificou as suas intervenções em
defesa da sacralidade e inviolabilidade da vida humana. Ao Magistério
pontifício, particularmente insistente, sempre se uniu o Magistério
episcopal, com numerosos e amplos documentos doutrinais e pastorais
emanados quer pelas Conferências Episcopais, quer pelos Bispos
individualmente. Não faltou sequer, forte e incisiva na sua brevidade, a
intervenção do Concílio Vaticano II.50
Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus
Sucessores, em comunhão com os Bispos da Igreja Católica,confirmo que
a morte direta e voluntária de um ser humano inocente é sempre
gravemente imoral. Esta doutrina, fundada naquela lei não-escrita que
todo o homem, pela luz da razão, encontra no próprio coração (cf. Rm
2, 14-15), é confirmada pela Sagrada Escritura, transmitida pela
Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal.51
A decisão deliberada de privar um ser humano inocente da sua vida é
sempre má do ponto de vista moral, e nunca pode ser lícita nem como fim,
nem como meio para um fim bom. É, de fato, uma grave desobediência à
lei moral, antes ao próprio Deus, autor e garante desta; contradiz as
virtudes fundamentais da justiça e da caridade. « Nada e ninguém pode
autorizar que se dê a morte a um ser humano inocente seja ele feto ou
embrião, criança ou adulto, velho, doente incurável ou agonizante. E
também a ninguém é permitido requerer este gesto homicida para si ou
para outrem confiado à sua responsabilidade, nem sequer consenti-lo explícita
ou implicitamente. Não há autoridade alguma que o possa legitimamente
impor ou permitir ».52
No referente ao direito à vida, cada ser humano inocente é
absolutamente igual a todos os demais. Esta igualdade é a base de todo o
relacionamento social autêntico, o qual, para o ser verdadeiramente, não
pode deixar de se fundar sobre a verdade e a justiça, reconhecendo e
tutelando cada homem e cada mulher como pessoa, e não como coisa de que
se possa dispor. Diante da norma moral que proíbe a eliminação direta de um ser humano inocente, « não existem privilégios, nem
exceções para ninguém. Ser o dono do mundo ou o último "miserável"
sobre a face da terra, não faz diferença alguma: perante as exigências
morais, todos somos absolutamente iguais ».53
« Vossos olhos contemplaram-me ainda em embrião » (Sal 139138,
16): o crime abominável do aborto
58. Dentre todos os crimes que o homem pode realizar contra a vida, o
aborto provocado apresenta características que o tornam particularmente
grave e abjurável. O Concílio Vaticano II define-o, juntamente com o
infanticídio, « crime abominável ».54
Mas hoje, a percepção da sua gravidade vai-se obscurecendo
progressivamente em muitas consciências. A aceitação do aborto na
mentalidade, nos costumes e na própria lei, é sinal eloqüente de uma
perigosíssima crise do sentido moral que se torna cada vez mais incapaz
de distinguir o bem do mal, mesmo quando está em jogo o direito
fundamental à vida. Diante de tão grave situação, impõe-se mais que
nunca a coragem de olhar frontalmente a verdade e chamar as coisas pelo
seu nome, sem ceder a compromissos com o que nos é mais cômodo, nem
à tentação de auto-engano. A propósito disto, ressoa categórica a
censura do Profeta: « Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm
as trevas por luz e a luz por trevas » (Is 5, 20). Precisamente no
caso do aborto, verifica-se a difusão de uma terminologia ambígua, como
« interrupção da gravidez », que tende a esconder a verdadeira
natureza dele e a atenuar a sua gravidade na opinião pública. Talvez
este fenômeno lingüístico seja já, em si mesmo, sintoma de um mal-estar
das consciências. Mas nenhuma palavra basta para alterar a realidade das
coisas: o aborto provocado é a morte deliberada e direta,
independentemente da forma como venha realizada, de um ser humano na fase
inicial da sua existência, que vai da concepção ao nascimento.
A gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade,
quando se reconhece que se trata de um homicídio e, particularmente,
quando se consideram as circunstâncias específicas que o qualificam. A
pessoa eliminada é um ser humano que começa a desabrochar para a vida,
isto é, o que de mais inocente, em absoluto, se possa imaginar:
nunca poderia ser considerado um agressor, menos ainda um injusto
agressor! É frágil, inerme, e numa medida tal que o deixa privado
inclusive daquela forma mínima de defesa constituída pela força
suplicante dos gemidos e do choro do recém-nascido. Está totalmente
entregue à proteção e aos cuidados daquela que o traz no seio. E
todavia, às vezes, é precisamente ela, a mãe, quem decide e pede a sua
eliminação, ou até a provoca.
É verdade que, muitas vezes, a opção de abortar reveste para a mãe
um caráter dramático e doloroso: a decisão de se desfazer do fruto
concebido não é tomada por razões puramente egoístas ou de comodidade,
mas porque se quereriam salvaguardar alguns bens importantes como a própria
saúde ou um nível de vida digno para os outros membros da família. Às
vezes, temem-se para o nascituro condições de existência tais que levam
a pensar que seria melhor para ele não nascer. Mas estas e outras razões
semelhantes, por mais graves e dramáticas que sejam, nunca podem
justificar a supressão deliberada de um ser humano inocente.
59. A decidirem a morte da criança ainda não nascida, a par da mãe,
aparecem, com freqüência, outras pessoas. Antes de mais, culpado pode ser
o pai da criança, não apenas quando claramente constringe a mulher ao
aborto, mas também quando favorece indiretamente tal decisão ao deixá-la
sozinha com os problemas de uma gravidez: 55 desse modo, a família fica
mortalmente ferida e profanada na sua natureza de comunidade de amor e na
sua vocação para ser « santuário da vida ». Nem se podem calar as
solicitações que, às vezes, provêm do âmbito familiar mais alargado e
dos amigos. A mulher, não raro, é sujeita a pressões tão fortes que se
sente psicologicamente constrangida a ceder ao aborto: não há dúvida
que, neste caso, a responsabilidade moral pesa particularmente sobre
aqueles que direta ou indiretamente a forçaram a abortar. Responsáveis
são também os médicos e restantes profissionais da saúde, sempre que põem
ao serviço da morte a competência adquirida para promover a vida.
Mas a responsabilidade cai ainda sobre os legisladores que promoveram e
aprovaram leis abortistas, e sobre os administradores das estruturas clínicas
onde se praticam os abortos, na medida em que a sua execução deles
dependa. Uma responsabilidade geral, mas não menos grave, cabe a todos
aqueles que favoreceram a difusão de uma mentalidade de permissivismo
sexual e de menosprezo pela maternidade, como também àqueles que
deveriam ter assegurado — e não o fizeram — válidas políticas
familiares e sociais de apoio às famílias, especialmente às mais
numerosas ou com particulares dificuldades econômicas e educativas. Não
se pode subestimar, enfim, a vasta rede de cumplicidades, nela incluindo
instituições internacionais, fundações e associações, que se batem
sistematicamente pela legalização e difusão do aborto no mundo. Neste
sentido, o aborto ultrapassa a responsabilidade dos indivíduos e o dano
que lhes é causado, para assumir uma dimensão fortemente social: é uma ferida
gravíssima infligida à sociedade e à sua cultura por aqueles que
deveriam ser os seus construtores e defensores. Como escrevi na Carta
às Famílias, « encontramo-nos defronte a uma enorme ameaça contra
a vida, não apenas dos simples indivíduos, mas também de toda a
civilização ».56 Achamo-nos perante algo que bem se pode definir uma
« estrutura de pecado » contra a vida humana ainda não nascida.
60. Alguns tentam justificar o aborto, defendendo que o fruto da concepção,
pelo menos até um certo número de dias, não pode ainda ser considerado
uma vida humana pessoal. Na realidade, porém, « a partir do momento em
que o óvulo é fecundado, inaugura-se uma nova vida que não é a do pai
nem a da mãe, mas sim a de um novo ser humano que se desenvolve por conta
própria. Nunca mais se tornaria humana, se não o fosse já desde então.
A esta evidência de sempre (...) a ciência genética moderna fornece
preciosas confirmações. Demonstrou que, desde o primeiro instante, se
encontra fixado o programa daquilo que será este ser vivo: uma pessoa,
esta pessoa individual, com as suas notas características já bem
determinadas. Desde a fecundação, tem início a aventura de uma vida
humana, cujas grandes capacidades, já presentes cada uma delas, apenas
exigem tempo para se organizar e encontrar prontas a agir ».57 Não
podendo a presença de uma alma espiritual ser assinalada através da
observação de qualquer dado experimental, são as próprias conclusões
da ciência sobre o embrião humano a fornecer « uma indicação valiosa
para discernir racionalmente uma presença pessoal já a partir desta
primeira aparição de uma vida humana: como poderia um indivíduo humano
não ser uma pessoa humana? ».58
Aliás, o valor em jogo é tal que, sob o perfil moral, bastaria a
simples probabilidade de encontrar-se em presença de uma pessoa para se
justificar a mais categórica proibição de qualquer intervenção
tendente a eliminar o embrião humano. Por isso mesmo, independentemente
dos debates científicos e mesmo das afirmações filosóficas com os
quais o Magistério não se empenhou expressamente, a Igreja sempre
ensinou — e ensina — que tem de ser garantido ao fruto da geração
humana, desde o primeiro instante da sua existência, o respeito
incondicional que é moralmente devido ao ser humano na sua totalidade e
unidade corporal e espiritual: « O ser humano deve ser respeitado e
tratado como uma pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde
esse mesmo momento, devem-lhe ser reconhecidos os direitos da pessoa,
entre os quais e primeiro de todos, o direito inviolável de cada ser
humano inocente à vida ».59
61. Os textos da Sagrada Escritura, que nunca falam do aborto
voluntário e, por conseguinte, também não apresentam condenações diretas
e específicas do mesmo, mostram pelo ser humano no seio materno
uma consideração tal que exige, como lógica conseqüência, que se
estenda também a ele o mandamento de Deus: « não matarás ».
A vida humana é sagrada e inviolável em cada momento da sua existência,
inclusive na fase inicial que precede o nascimento. Desde o seio materno,
o homem pertence a Deus que tudo perscruta e conhece, que o forma e plasma
com suas mãos, que o vê quando ainda é um pequeno embrião informe, e
que nele entrevê o adulto de amanhã, cujos dias estão todos contados e
cuja vocação está já escrita no « livro da vida » (cf. Sal 139138,
1.13-16). Quando está ainda no seio materno — como testemunham
numerosos textos bíblicos 60 — já o homem é objeto muito pessoal da
amorosa e paterna providência de Deus.
A Tradição cristã — como justamente se realça na Declaração
sobre esta matéria, emanada pela Congregação para a Doutrina da Fé 61
— é clara e unânime, desde as suas origens até aos nossos dias, em
classificar o aborto como desordem moral particularmente grave. A
comunidade cristã, desde o seu primeiro confronto com o mundo
greco-romano onde se praticava amplamente o aborto e o infanticídio, opôs-se
radicalmente, com a sua doutrina e a sua praxe, aos costumes generalizados
naquela sociedade, como o demonstra a já citada Didaké.62 Entre
os escritores eclesiásticos da área lingüística grega, Atenágoras
recorda que os cristãos consideram homicidas as mulheres que recorrem a
produtos abortivos, porque os filhos, apesar de estarem ainda no seio da mãe,
« são já objeto dos cuidados da Providência divina ».63 Entre os
latinos, Tertuliano afirma: « É um homicídio premeditado impedir de
nascer; pouco importa que se suprima a alma já nascida ou que se faça
desaparecer durante o tempo até ao nascer. É já um homem aquele que o
será ».64
Ao longo da sua história já bimilenária, esta mesma doutrina foi
constantemente ensinada pelos Padres da Igreja, pelos seus Pastores e
Doutores. Mesmo as discussões de caráter científico e filosófico
acerca do momento preciso da infusão da alma espiritual não incluíram
nunca a mínima hesitação quanto à condenação moral do aborto.
62. O Magistério pontifício mais recente reafirmou, com grande
vigor, esta doutrina comum. Em particular Pio XI, na encíclica Casti connubii rejeitou as alegadas justificações do aborto; 65 Pio XII
excluiu todo o aborto direto, isto é, qualquer ato que vise diretamente destruir a vida humana ainda não nascida, « quer tal
destruição seja pretendida como fim ou apenas como meio para o fim »;
66 João XXIII corroborou que a vida humana é sagrada, porque « desde o
seu despontar empenha diretamente a ação criadora de Deus ».67 O Concílio
Vaticano II, como já foi recordado, condenou o aborto com grande
severidade: « A vida deve, pois, ser salvaguardada com extrema
solicitude, desde o primeiro momento da concepção; o aborto e o infanticídio
são crimes abomináveis ».68
A disciplina canônica da Igreja, desde os primeiros séculos,
puniu com sanções penais aqueles que se manchavam com a culpa do aborto,
e tal praxe, com penas mais ou menos graves, foi confirmada nos sucessivos
períodos históricos. O Código de Direito Canônico de 1917, para
o aborto, prescrevia a pena de excomunhão.69 Também a legislação canônica,
há pouco renovada, continua nesta linha quando determina que « quem
procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae
sententiae »,70 isto é, automática. A excomunhão recai sobre todos
aqueles que cometem este crime com conhecimento da pena, incluindo também
cúmplices sem cujo contribuiu o aborto não se teria realizado: 71 com
uma sanção assim reiterada, a Igreja aponta este crime como um dos mais
graves e perigosos, incitando, deste modo, quem o comete a ingressar
diligentemente pela estrada da conversão. Na Igreja, de fato, a
finalidade da pena de excomunhão é tornar plenamente consciente da
gravidade de um determinado pecado e, conseqüentemente, favorecer a
adequada conversão e penitência.
Frente a semelhante unanimidade na tradição doutrinal e disciplinar
da Igreja, Paulo VI pôde declarar que tal ensinamento não conheceu mudança
e é imutável.72 Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e
aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos — que de várias e
repetidas formas condenaram o aborto e que, na consulta referida
anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo, afirmaram unânime consenso
sobre esta doutrina — declaro que o aborto direto, isto é, querido
como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto
morte deliberada de um ser humano inocente. Tal doutrina está fundada
sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela
Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal.73
Nenhuma circunstância, nenhum fim, nenhuma lei no mundo poderá jamais
tornar lícito um ato que é intrinsecamente ilícito, porque contrário
à Lei de Deus, inscrita no coração de cada homem, reconhecível pela própria
razão, e proclamada pela Igreja.
63. A avaliação moral do aborto deve aplicar-se também às recentes
formas de intervenção sobre embriões humanos, que, não obstante
visarem objetivos em si legítimos, implicam inevitavelmente a sua morte.
É o caso da experimentação sobre embriões, em crescente expansão
no campo da pesquisa biomédica e legalmente admitida em alguns países.
Se « devem ser consideradas lícitas as intervenções no embrião
humano, sob a condição de que respeitem a vida e a integridade do embrião,
não comportem para ele riscos desproporcionados, e sejam orientadas para
a sua cura, para a melhoria das suas condições de saúde ou para a sua
sobrevivência individual »,74 impõe-se, pelo contrário, afirmar que o
uso de embriões ou de fetos humanos como objeto de experimentação
constitui um crime contra a sua dignidade de seres humanos, que têm
direito ao mesmo respeito devido à criança já nascida e a qualquer
pessoa.75
A mesma condenação moral vale para o sistema que desfruta os embriões
e os fetos humanos ainda vivos — às vezes « produzidos »
propositadamente para este fim através da fecundação in vitro — seja
como « material biológico » à disposição, seja como fornecedores
de órgãos ou de tecidos para transplante no tratamento de algumas
doenças. Na realidade, o assassínio de criaturas humanas inocentes,
ainda que com vantagem para outras, constitui um ato absolutamente
inaceitável.
Especial atenção há de ser reservada à avaliação moral das técnicas
de diagnose pré-natal, que permitem individuar precocemente eventuais
anomalias do nascituro. Com efeito, devido à complexidade dessas técnicas,
a avaliação em causa deve fazer-se mais cuidadosa e articuladamente.
Quando estão isentas de riscos desproporcionados para a criança e para a
mãe, e se destinam a tornar possível uma terapia precoce ou ainda a
favorecer uma serena e consciente aceitação do nascituro, estas técnicas
são moralmente lícitas. Mas, dado que as possibilidade de cura antes do
nascimento são hoje ainda reduzidas, acontece bastantes vezes que essas técnicas
são postas ao serviço de uma mentalidade eugenista que aceita o aborto seletivo, para impedir o nascimento de crianças
afetadas por tipos vários
de anomalias. Semelhante mentalidade é ignominiosa e absolutamente reprovável,
porque pretende medir o valor de uma vida humana apenas segundo parâmetros
de « normalidade » e de bem-estar físico, abrindo assim a estrada à
legitimação do infanticídio e da eutanásia.
Na realidade, porém, a própria coragem e serenidade com que muitos
irmãos nossos, afetados por graves deficiências, conduzem a sua existência
quando são aceites e amados por nós, constituem um testemunho
particularmente eficaz dos valores autênticos que qualificam a vida e a
tornam, mesmo em condições difíceis, preciosa para o próprio e para os
outros. A Igreja sente-se solidária com os cônjuges que, com grande
ansiedade e sofrimento, aceitam acolher os seus filhos gravemente
deficientes, tal como se sente grata a todas as famílias que, pela adoção,
acolhem os que são abandonados pelos seus pais por causa de limitações
ou doenças.
« Só Eu é que dou a vida e dou a morte » (Dt 32, 39):
o drama da eutanásia
64. No outro topo da existência, o homem encontra-se diante do mistério
da morte. Hoje, na seqüência dos progressos da medicina e num contexto
cultural freqüentemente fechado à transcendência, a experiência do
morrer apresenta-se com algumas características novas. Com efeito, quando
prevalece a tendência para apreciar a vida só na medida em que
proporciona prazer e bem-estar, o sofrimento aparece como um contratempo
insuportável, de que é preciso libertar-se a todo o custo. A morte,
considerada como « absurda » quando interrompe inesperadamente uma vida
ainda aberta para um futuro rico de possíveis experiências
interessantes, torna-se, pelo contrário, uma « libertação reivindicada
», quando a existência é tida como já privada de sentido porque
mergulhada na dor e inexoravelmente votada a um sofrimento sempre mais
intenso.
Além disso, recusando ou esquecendo o seu relacionamento fundamental
com Deus, o homem pensa que é critério e norma de si mesmo e julga que
tem inclusive o direito de pedir à sociedade que lhe garanta
possibilidades e modos de decidir da própria vida com plena e total
autonomia. Em particular, o homem que vive nos países desenvolvidos é
que assim se comporta: a tal se sente impelido, entre outras coisas, pelos
contínuos progressos da medicina e das suas técnicas cada vez mais avançadas.
Por meio de sistemas e aparelhagens extremamente sofisticadas, hoje a ciência
e a prática médica são capazes de resolver casos anteriormente insolúveis
e de aliviar ou eliminar a dor, como também de sustentar e prolongar a
vida até em situações de debilidade extrema, de reanimar
artificialmente pessoas cujas funções biológicas elementares sofreram
danos imprevistos, de intervir para tornar disponíveis órgãos para
transplante.
Num tal contexto, torna-se cada vez mais forte a tentação
da eutanásia,
isto é, de apoderar-se da morte, provocando-a antes do tempo e,
deste modo, pondo fim « docemente » à vida própria ou alheia. Na
realidade, aquilo que poderia parecer lógico e humano, quando visto em
profundidade, apresenta-se absurdo e desumano. Estamos aqui perante
um dos sintomas mais alarmantes da « cultura de morte » que avança
sobretudo nas sociedades do bem-estar, caracterizadas por uma mentalidade eficientista
que faz aparecer demasiadamente gravoso e insuportável o número
crescente das pessoas idosas e debilitadas. Com muita freqüência, estas
acabam por ser isoladas da família e da sociedade, organizada quase
exclusivamente sobre a base de critérios de eficiência produtiva,
segundo os quais uma vida irremediavelmente incapaz não tem mais qualquer
valor.
65. Para um coreto juízo moral da eutanásia, é preciso, antes de
mais, defini-la claramente. Por eutanásia, em sentido verdadeiro e próprio,
deve-se entender uma ação ou uma omissão que, por sua natureza e
nas intenções, provoca a morte com o objetivo de eliminar o sofrimento.
« A eutanásia situa-se, portanto, ao nível das intenções e ao nível
dos métodos empregues ».76
Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado «
excesso terapêutico », ou seja, a certas intervenções médicas já
inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos
resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para
ele e para a sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia
iminente e inevitável, pode-se em consciência « renunciar a tratamentos
que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem,
contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos
semelhantes ».77 Há, sem dúvida, a obrigação moral de se tratar e
procurar curar-se, mas essa obrigação há de medir-se segundo as situações
concretas, isto é, impõe-se avaliar se os meios terapêuticos à disposição
são objetivamente proporcionados às perspectivas de melhoramento. A renúncia
a meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio
ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana
defronte à morte.78
Na medicina atual, têm adquirido particular importância os
denominados « cuidados paliativos », destinados a tornar o
sofrimento mais suportável na fase aguda da doença e assegurar ao mesmo
tempo ao paciente um adequado acompanhamento humano. Neste contexto, entre
outros problemas, levanta-se o da licitude do recurso aos diversos tipos
de analgésicos e sedativos para aliviar o doente da dor, quando isso
comporta o risco de lhe abreviar a vida. Ora, se pode realmente ser
considerado digno de louvor quem voluntariamente aceita sofrer renunciando
aos meios lenitivos da dor, para conservar a plena lucidez e, se crente,
participar, de maneira consciente, na Paixão do Senhor, tal comportamento
« heróico » não pode ser considerado obrigatório para todos. Já Pio
XII afirmara que é lícito suprimir a dor por meio de narcóticos, mesmo
com a conseqüência de limitar a consciência e abreviar a vida, « se não
existem outros meios e se, naquelas circunstâncias, isso em nada impede o
cumprimento de outros deveres religiosos e morais ».79 É que, neste
caso, a morte não é querida ou procurada, embora por motivos razoáveis
se corra o risco dela: pretende- -se simplesmente aliviar a dor de maneira
eficaz, recorrendo aos analgésicos postos à disposição pela medicina.
Contudo, « não se deve privar o moribundo da consciência de si mesmo,
sem motivo grave »: 80 quando se aproxima a morte, as pessoas devem estar
em condições de poder satisfazer as suas obrigações morais e
familiares, e devem sobretudo poder-se preparar com plena consciência
para o encontro definitivo com Deus.
Feitas estas distinções, em conformidade com o Magistério dos meus
Predecessores 81 e em comunhão com os Bispos da Igreja Católica, confirmo
que a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto
morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana. Tal
doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus
escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério
ordinário e universal.82
A eutanásia comporta, segundo as circunstâncias, a malícia própria
do suicídio ou do homicídio.
66. Ora, o suicídio é sempre moralmente inaceitável, tal como o
homicídio. A tradição da Igreja sempre o recusou, como opção
gravemente má.83 Embora certos condicionalismos psicológicos, culturais
e sociais possam levar a realizar um gesto que tão radicalmente contradiz
a inclinação natural de cada um à vida, atenuando ou anulando a
responsabilidade subjetiva, o suicídio, sob o perfil objetivo,
é um ato gravemente imoral, porque comporta a recusa do amor por si
mesmo e a renúncia aos deveres de justiça e caridade para com o próximo,
com as várias comunidades de que se faz parte, e com a sociedade no seu
conjunto.84 No seu núcleo mais profundo, o suicídio constitui uma rejeição
da soberania absoluta de Deus sobre a vida e sobre a morte, deste modo
proclamada na oração do antigo Sábio de Israel: « Vós, Senhor, tendes
o poder da vida e da morte, e conduzis os fortes à porta do Hades e de lá
os tirais » (Sab 16, 13; cf. Tob 13, 2).
Compartilhar a intenção suicida de outrem e ajudar a realizá-la
mediante o chamado « suicídio assistido », significa fazer-se
colaborador e, por vezes, autor em primeira pessoa de uma injustiça que
nunca pode ser justificada, nem sequer quando requerida. « Nunca é lícito
— escreve com admirável atualidade Santo Agostinho — matar o outro:
ainda que ele o quisesse, mesmo se ele o pedisse, porque, suspenso entre a
vida e a morte, suplica ser ajudado a libertar a alma que luta contra os
laços do corpo e deseja desprender-se; nem é lícito sequer quando o
doente já não estivesse em condições de sobreviver ».85 Mesmo quando
não é motivada pela recusa egoísta de cuidar da vida de quem sofre, a
eutanásia deve designar-se uma falsa compaixão, antes uma
preocupante « perversão » da mesma: a verdadeira « compaixão », de fato, torna solidário com a dor alheia, não suprime aquele de quem não
se pode suportar o sofrimento. E mais perverso ainda se manifesta o gesto
da eutanásia, quando é realizado por aqueles que — como os parentes
— deveriam assistir com paciência e amor o seu familiar, ou por quantos
— como os médicos —, pela sua específica profissão, deveriam tratar
o doente, inclusive nas condições terminais mais penosas.
A decisão da eutanásia torna-se mais grave, quando se configura como
um homicídio, que os outros praticam sobre uma pessoa que não a
pediu de modo algum nem deu nunca qualquer consentimento para a mesma.
Atinge-se, enfim, o cúmulo do arbítrio e da injustiça, quando alguns, médicos
ou legisladores, se arrogam o poder de decidir quem deve viver e quem deve
morrer. Aparece assim reproposta a tentação do Éden: tornar-se como
Deus « conhecendo o bem e o mal » (cf. Gn 3, 5). Mas, Deus é o
único que tem o poder de fazer morrer e de fazer viver: « Só Eu é que
dou a vida e dou a morte » (Dt 32, 39; cf. 2 Re 5, 7; 1
Sam 2, 6). Ele exerce o seu poder sempre e apenas segundo um desígnio
de sabedoria e amor. Quando o homem usurpa tal poder, subjugado por uma lógica
insensata e egoísta, usa-o inevitavelmente para a injustiça e a morte.
Assim, a vida do mais fraco é abandonada às mãos do mais forte; na
sociedade, perde-se o sentido da justiça e fica minada pela raiz a
confiança mútua, fundamento de qualquer relação autêntica entre as
pessoas.
67. Bem diverso, ao contrário, é o caminho do amor e da verdadeira
compaixão, que nos é imposto pela nossa comum humanidade e que a fé
em Cristo Redentor, morto e ressuscitado, ilumina com novas razões. A súplica
que brota do coração do homem no confronto supremo com o sofrimento e a
morte, especialmente quando é tentado a fechar-se no desespero e como que
a aniquilar-se nele, é sobretudo uma petição de companhia,
solidariedade e apoio na prova. É um pedido de ajuda para continuar a
esperar, quando falham todas as esperanças humanas. Como nos recordou o
Concílio Vaticano II, « é em face da morte que o enigma da condição
humana mais se adensa » para o homem; e, todavia, « a intuição do próprio
coração fá-lo acertar, quando o leva a aborrecer e a recusar a ruína
total e o desaparecimento definitivo da sua pessoa. O germe de eternidade
que nele existe, irredutível à pura matéria, insurge-se contra a morte
».86
Esta repugnância natural da morte e este germe de esperança na
imortalidade são iluminadas e levadas à plenitude pela fé cristã, que
promete e oferece a participação na vitória de Cristo Ressuscitado: é
a vitória d'Aquele que, pela sua morte redentora, libertou o homem da
morte, « salário do pecado » (Rm 6, 23), e lhe deu o Espírito,
penhor de ressurreição e de vida (cf. Rm 8, 11). A certeza da
imortalidade futura e a esperança na ressurreição prometida projetam
uma luz nova sobre o mistério do sofrimento e da morte e infundem no
crente uma força extraordinária para se abandonar ao desígnio de Deus.
O apóstolo Paulo exprimiu esta novidade em termos de pertença total
ao Senhor que abraça qualquer condição humana: « Nenhum de nós vive
para si mesmo, e nenhum de nós morre para si mesmo. Se vivemos, para o
Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. Quer vivamos, quer
morramos, pertencemos ao Senhor » (Rm 14, 7-8). Morrer para o
Senhor significa viver a própria morte como ato supremo de obediência
ao Pai (cf. Fil 2, 8), aceitando encontrá-la na « hora » querida
e escolhida por Ele (cf. Jo 13, 1), o único que pode dizer quando
está cumprido o caminho terreno. Viver para o Senhor significa
também reconhecer que o sofrimento, embora permaneça em si mesmo um mal
e uma prova, sempre se pode tornar fonte de bem. E torna-se tal se é
vivido por amor e com amor, na participação, por dom gratuito de Deus e
por livre opção pessoal, no próprio sofrimento de Cristo crucificado.
Deste modo, quem vive o seu sofrimento no Senhor fica mais plenamente
configurado com Ele (cf. Fil 3, 10; 1 Ped 2, 21) e
intimamente associado à sua obra redentora a favor da Igreja e da huma-
nidade.87 É esta experiência do Apóstolo, que toda a pessoa que
sofre é chamada a viver: « Alegro-me nos sofrimentos suportados por
vossa causa e completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de
Cristo pelo seu Corpo, que é a Igreja » (Col 1, 24).
« Importa mais obedecer a Deus do que aos homens » (at 5,
29): a lei civil e a lei moral
68. Uma das características dos atuais atentados à vida humana —
como já se disse várias vezes — é a tendência para exigir a sua legitimação
jurídica, como se fossem direitos que o Estado deveria, pelo menos em
certas condições, reconhecer aos cidadãos e, conseqüentemente, a
pretensão da execução dos mesmos com a assistência segura e gratuita
dos médicos e restantes profissionais da saúde.
Considera-se, não raro, que a vida daquele que ainda não nasceu ou
está gravemente debilitado, seria um bem simplesmente relativo: teria de
ser confrontada e ponderada com outros bens, segundo uma lógica
proporcionalista ou de puro cálculo. Igualmente pensa-se que só quem se
encontra na situação concreta e nela está pessoalmente implicado é que
poderia realizar uma justa ponderação dos bens em jogo: por conseguinte,
unicamente essa pessoa poderia decidir sobre a moralidade da sua escolha.
Por isso, e no interesse da convivência civil e da harmonia social, o
Estado deveria respeitar essa escolha, chegando mesmo a admitir o aborto e
a eutanásia.
Outras vezes, julga-se que a lei civil não poderia exigir que todos os
cidadãos vivessem segundo um grau de moralidade mais elevado do que
aquele que eles mesmos reconhecem e condividem. Por isso, a lei deveria
exprimir sempre a opinião e a vontade da maioria dos cidadãos e
reconhecer-lhes também, pelo menos em certos casos extremos, o direito ao
aborto e à eutanásia. Nesses casos, aliás, a proibição e a punição
dos referidos atos conduziria inevitavelmente — assim o dizem — a um
aumento de práticas clandestinas: e estas escapariam ao necessário
controlo social e seriam realizadas sem a devida segurança médica. E
interrogam-se, além disso, se o apoiar uma lei que não é concretamente
aplicável não significaria, em última análise, minar também a
autoridade de qualquer outra lei.
Nas opiniões mais radicais, chega-se mesmo a defender que, numa
sociedade moderna e pluralista, deveria ser reconhecida a cada pessoa
total autonomia para dispor da própria vida e da vida de quem ainda não
nasceu: não seria competência da lei fazer a escolha entre as diversas
opiniões morais, e menos ainda poderia ela pretender impor uma opinião
particular em detrimento das outras.
69. Certo é que, na cultura democrática do nosso tempo, se acha
amplamente generalizada a opinião, segundo a qual o ordenamento jurídico
de uma sociedade haveria de limitar-se a registrar e acolher as convicções
da maioria e, conseqüentemente, dever-se-ia construir apenas sobre aquilo
que a própria maioria reconhece e vive como moral. Se, depois, se chega a
pensar que uma verdade comum e objetiva seria realmente inacessível, então
o respeito pela liberdade dos cidadãos — que, num regime democrático,
são considerados os verdadeiros soberanos — exigiria que, a nível
legislativo, se reconhecesse a autonomia da consciência de cada um e, por
conseguinte, ao estabelecer aquelas normas que são absolutamente necessárias
à convivência social, se adequassem exclusivamente à vontade da
maioria, fosse ela qual fosse. Desta maneira, todo o político deveria
separar claramente, no seu agir, o âmbito da consciência privada e o do
comportamento público.
Em conseqüência disto, registram-se duas tendências que na aparência
são diametralmente opostas. Por um lado, os indivíduos reivindicam para
si a mais completa autonomia moral de decisão, e pedem que o Estado não
assuma nem imponha qualquer concepção ética, mas se limite a garantir o
espaço mais amplo possível à liberdade de cada um, tendo como único
limite externo não lesar o espaço de autonomia a que cada um dos outros
cidadãos também tem direito. Mas por outro lado, pensa-se que, no
desempenho das funções públicas e profissionais, o respeito pela
liberdade alheia de escolha obrigaria cada qual a prescindir das próprias
convicções para se colocar ao serviço de qualquer petição dos cidadãos,
que as leis reconhecem e tutelam, aceitando como único critério moral no
exercício das próprias funções aquilo que está estabelecido pelas
mesmas leis. Deste modo, a responsabilidade da pessoa é delegada na lei
civil com a abdicação da própria consciência moral, pelo menos no âmbito
da ação pública.
70. Raiz comum de todas estas tendências é o relativismo ético, que
caracteriza grande parte da cultura contemporânea. Não falta quem pense
que tal relativismo seja uma condição da democracia, visto que só ele
garantiria tolerância, respeito recíproco entre as pessoas e adesão às
decisões da maioria, enquanto as normas morais, consideradas objetivas e
vinculantes, conduziriam ao autoritarismo e à intolerância.
Mas é exatamente a problemática conexa com o respeito da vida que
mostra os equívocos e contradições, com terríveis resultados práticos,
que se escondem nesta posição.
É verdade que a história registra casos de crimes cometidos em nome da
« verdade ». Mas crimes não menos graves e negações radicais da
liberdade foram também cometidos e cometem-se em nome do « relativismo
ético ». Quando uma maioria parlamentar ou social decreta a legitimidade
da eliminação, mesmo sob certas condições, da vida humana ainda não
nascida, porventura não assume uma decisão « tirânica » contra o ser
humano mais débil e indefeso? Justamente reage a consciência universal
diante dos crimes contra a humanidade, de que o nosso século viveu tão
tristes experiências. Porventura deixariam de ser crimes, se, em vez de
terem sido cometidos por tiranos sem escrúpulos, fossem legitimados por
consenso popular?
Não se pode mitificar a democracia até fazer dela o substituto da
moralidade ou a panacéia da imoralidade. Fundamentalmente, é um «
ordenamento » e, como tal, um instrumento, não um fim. O seu caráter « moral » não é automático, mas depende da conformidade com a lei
moral, à qual se deve submeter como qualquer outro comportamento humano:
por outras palavras, depende da moralidade dos fins que persegue e dos
meios que usa. registra hoje um consenso quase universal sobre o valor
da democracia, o que há de ser considerado um positivo « sinal dos
tempos », como o Magistério da Igreja já várias vezes assinalou.88
Mas, o valor da democracia vive ou morre nos valores que ela encarna e
promove: fundamentais e imprescindíveis são certamente a dignidade de
toda a pessoa humana, o respeito dos seus direitos intangíveis e inalienáveis,
e bem assim a assunção do « bem comum » como fim e critério regulador
da vida política.
Na base destes valores, não podem estar « maiorias » de opinião
provisórias e mutáveis, mas só o reconhecimento de uma lei moral objetiva
que, enquanto « lei natural » inscrita no coração do homem,
seja ponto normativo de referência para a própria lei civil. Quando, por
um trágico obscurecimento da consciência coletiva, o cepticismo
chegasse a pôr em dúvida mesmo os princípios fundamentais da lei moral,
então o próprio ordenamento democrático seria abalado nos seus
fundamentos, ficando reduzido a puro mecanismo de regulação empírica
dos diversos e contrapostos interesses.89
Alguém poderia pensar que, na falta de melhor, já esta função
reguladora fosse de apreciar em vista da paz social. Mesmo reconhecendo
qualquer ponto de verdade em tal avaliação, é difícil não ver que,
sem um ancoradouro moral objetivo, a democracia não pode assegurar uma
paz estável, até porque é ilusória a paz não fundada sobre os valores
da dignidade de cada homem e da solidariedade entre todos os homens. Nos
próprios regimes de democracia representativa, de fato, a regulação
dos interesses é freqüentemente feita a favor dos mais fortes, sendo
estes os mais competentes para manobrar não apenas as rédeas do poder,
mas também a formação dos consensos. Em tal situação, facilmente a
democracia se torna uma palavra vazia.
71. Para bem do futuro da sociedade e do progresso de uma sã
democracia, urge, pois, redescobrir a existência de valores humanos e
morais essenciais e congênitos, que derivam da própria verdade do ser
humano, e exprimem e tutelam a dignidade da pessoa: valores que nenhum
indivíduo, nenhuma maioria e nenhum Estado poderá jamais criar,
modificar ou destruir, mas apenas os deverá reconhecer, respeitar e
promover.
Importa retomar, neste sentido, os elementos fundamentais da visão
das relações entre lei civil e lei moral, tal como os propõe a
Igreja, mas que fazem parte também do patrimônio das grandes tradições
jurídicas da humanidade.
Certamente, a função da lei civil é diversa e de âmbito mais
limitado que a da lei moral. De fato, « em nenhum âmbito da vida, pode
a lei civil substituir-se à consciência, nem pode ditar normas naquilo
que ultrapassa a sua competência »,90 que é assegurar o bem comum das
pessoas, mediante o reconhecimento e defesa dos seus direitos
fundamentais, a promoção da paz e da moralidade pública.91 Com efeito,
a função da lei civil consiste em garantir uma convivência social na
ordem e justiça verdadeira, para que todos « tenhamos vida tranqüila e
sossegada, com toda a piedade e honestidade » (1 Tm 2, 2). Por
isso mesmo, a lei civil deve assegurar a todos os membros da sociedade o
respeito de alguns direitos fundamentais, que pertencem por natureza à
pessoa e que qualquer lei positiva tem de reconhecer e garantir. Primeiro
e fundamental entre eles é o inviolável direito à vida de todo o ser
humano inocente. Se a autoridade pública pode, às vezes, renunciar a
reprimir algo que, se proibido, provocaria um dano maior,92 ela não poderá
nunca aceitar como direito dos indivíduos — ainda que estes sejam a
maioria dos membros da sociedade —, a ofensa infligida a outras pessoas
através do menosprezo de um direito tão fundamental como o da vida. A
tolerância legal do aborto ou da eutanásia não pode, de modo algum,
fazer apelo ao respeito pela consciência dos outros, precisamente porque
a sociedade tem o direito e o dever de se defender contra os abusos que se
possam verificar em nome da consciência e com o pretexto da liberdade.93
A este propósito, João XXIII recordara na Encíclica Pacem in
terris: « Hoje em dia crê-se que o bem comum consiste sobretudo no
respeito dos direitos e deveres da pessoa. Oriente-se, pois, o empenho dos
poderes públicos sobretudo no sentido que esses direitos sejam
reconhecidos, respeitados, harmonizados, tutelados e promovidos,
tornando-se assim mais fácil o cumprimento dos respectivos deveres.
"A função primordial de qualquer poder público é defender os
direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos
seus deveres". Por isso mesmo, se a autoridade não reconhecer os
direitos da pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser
como também as suas disposições estão privadas de qualquer valor jurídico
».94
72. Também está em continuidade com toda a Tradição da Igreja, a
doutrina da necessidade da lei civil se conformar com a lei moral, como
se vê na citada encíclica de João XXIII: « A autoridade é exigência
da ordem moral e promana de Deus. Por isso, se os governantes legislarem
ou prescreverem algo contra essa ordem e, portanto, contra a vontade de
Deus, essas leis e essas prescrições não podem obrigar a consciência
dos cidadãos. (...) Neste caso, a própria autoridade deixa de existir,
degenerando em abuso do poder ».95 O mesmo ensinamento aparece claramente
em S. Tomás de Aquino, que escreve: « A lei humana tem valor de lei
enquanto está de acordo com a reta razão: derivando, portanto, da lei
eterna. Se, porém, contradiz a razão, chama-se lei iníqua e, como tal,
não tem valor, mas é um ato de violência ».96 E ainda: « Toda a lei
constituída pelos homens tem força de lei só na medida em que deriva da
lei natural. Se, ao contrário, em alguma coisa está em contraste com a
lei natural, então não é lei mas sim corrupção da lei ».97
Ora, a primeira e mais imediata aplicação desta doutrina diz respeito
à lei humana que menospreza o direito fundamental e primordial à vida,
direito próprio de cada homem. Assim, as leis que legitimam a eliminação
direta de seres humanos inocentes, por meio do aborto e da eutanásia,
estão em contradição total e insanável com o direito inviolável à
vida, próprio de todos os homens, e negam a igualdade de todos perante a
lei. Poder-se-ia objectar que é diverso o caso da eutanásia, quando
pedida em plena consciência pelo sujeito interessado. Mas um Estado que
legitimasse tal pedido, autorizando a sua realização, estaria a
legalizar um caso de suicídio-homicídio, contra os princípios
fundamentais da não- -disponibilidade da vida e da tutela de cada vida
inocente. Deste modo, favorece-se a diminuição do respeito pela vida e
abre-se a estrada a comportamentos demolidores da confiança nas relações
sociais.
As leis que autorizam e favorecem o aborto e a eutanásia colocam-se,
pois, radicalmente não só contra o bem do indivíduo, mas também contra
o bem comum e, por conseguinte, carecem totalmente de autêntica validade
jurídica. De fato, o menosprezo do direito à vida, exatamente porque
leva a eliminar a pessoa, ao serviço da qual a sociedade tem a sua razão
de existir, é aquilo que se contrapõe mais frontal e irreparavelmente à
possibilidade de realizar o bem comum. Segue-se daí que, quando uma lei
civil legitima o aborto ou a eutanásia, deixa, por isso mesmo, de ser uma
verdadeira lei civil, moralmente obrigatória.
73. O aborto e a eutanásia são, portanto, crimes que nenhuma lei
humana pode pretender legitimar. Leis deste tipo não só não criam
obrigação alguma para a consciência, como, ao contrário, geram uma grave
e precisa obrigação de opor-se a elas através da objeção de consciência.
Desde os princípios da Igreja, a pregação apostólica inculcou nos
cristãos o dever de obedecer às autoridades públicas legitimamente
constituídas (cf. Rm 13, 1-7; 1 Ped 2, 13-14), mas, ao
mesmo tempo, advertiu firmemente que « importa mais obedecer a Deus do
que aos homens » (at 5, 29). Já no Antigo Testamento e a propósito
de ameaças contra a vida, encontramos um significativo exemplo de resistência
à ordem injusta da autoridade. As parteiras dos hebreus opuseram-se ao
Faraó, que lhes tinha dado a ordem de matarem todos os rapazes por ocasião
do parto. « Não cumpriram a ordem do rei do Egito, e deixaram viver os
rapazes » (Ex 1, 17). Mas há que salientar o motivo profundo
deste seu comportamento: « As parteiras temiam a Deus » (Ex 1,
17). É precisamente da obediência a Deus — o único a Quem se deve
aquele temor que significa reconhecimento da sua soberania absoluta —
que nascem a força e a coragem de resistir às leis injustas dos homens.
É a força e a coragem de quem está disposto mesmo a ir para a prisão
ou a ser morto à espada, na certeza de que nisto « está a paciência e
a fé dos Santos » (Ap 13, 10).
Portanto, no caso de uma lei intrinsecamente injusta, como aquela que
admite o aborto ou a eutanásia, nunca é lícito conformar-se com ela, «
nem participar numa campanha de opinião a favor de uma lei de tal
natureza, nem dar-lhe a aprovação com o próprio voto ».98
Um particular problema de consciência poder-se-ia pôr nos casos em
que o voto parlamentar fosse determinante para favorecer uma lei mais
restritiva, isto é, tendente a restringir o número dos abortos
autorizados, como alternativa a uma lei mais permissiva já em vigor ou
posta a votação. Não são raros tais casos. Sucede, com efeito, que,
enquanto, nalgumas partes do mundo, continuam as campanhas para a introdução
de leis favoráveis ao aborto, tantas vezes apoiadas por organismos
internacionais poderosos, noutras nações, pelo contrário —
particularmente naquelas que já fizeram a amarga experiência de tais
legislações permissivas —, vão-se manifestando sinais de reconsideração.
No caso hipotizado, quando não fosse possível esconjurar ou abrogar
completamente uma lei abortista, um deputado, cuja absoluta oposição
pessoal ao aborto fosse clara e conhecida de todos, poderia licitamente
oferecer o próprio apoio a propostas que visassem limitar os danos de
uma tal lei e diminuir os seus efeitos negativos no âmbito da cultura e
da moralidade pública. Ao proceder assim, de fato, não se realiza a
colaboração ilícita numa lei injusta; mas cumpre-se, antes, uma
tentativa legítima e necessária para limitar os seus aspectos iníquos.
74. A introdução de legislações injustas põe freqüentemente
os
homens moralmente retos frente a difíceis problemas de consciência em
matéria de colaboração, por causa da imperiosa afirmação do próprio
direito de não ser obrigado a participar em ações moralmente más. Às
vezes, as opções que se impõem tomar, são dolorosas e podem requerer o
sacrifício de posições profissionais consolidadas ou a renúncia a legítimas
perspectivas de promoção na carreira. Noutros casos, pode acontecer que
o cumprimento de algumas ações, em si mesmas indiferentes ou mesmo até
positivas, previstas no articulado de legislações globalmente injustas,
consinta a salvaguarda de vidas humanas ameaçadas. Mas, por outro lado,
pode-se justamente temer que a disponibilidade a realizar tais ações não
só provoque um escândalo e favoreça o enfraquecimento da oposição
necessária aos atentados contra a vida, como insensivelmente induza também
a conformar-se cada vez mais com uma lógica permissiva.
Para iluminar esta difícil questão moral, é preciso recorrer aos
princípios gerais referentes à cooperação em ações moralmente más.
Os cristãos, como todos os homens de boa vontade, são chamados, sob
grave dever de consciência, a não prestar a sua colaboração formal em ações
que, apesar de admitidas pela legislação civil, estão em
contraste com a lei de Deus. Na verdade, do ponto de vista moral, nunca é
lícito cooperar formalmente no mal. E essa cooperação verifica-se
quando a ação realizada, pela sua própria natureza ou pela configuração
que tem assumido num contexto concreto, se qualifica como participação direta
num ato contra a vida humana inocente ou como aprovação da
intenção moral do agente principal. Tal cooperação nunca pode ser
justificada invocando o respeito da liberdade alheia, nem apoiando-se no fato
de que a lei civil a prevê e requer: com efeito, nos atos cumpridos pessoalmente por cada um, existe uma responsabilidade moral, à
qual ninguém poderá jamais subtrair-se e sobre a qual cada um será
julgado pelo próprio Deus (cf. Rm 2, 6; 14, 12).
Recusar a própria participação para cometer uma injustiça é não só
um dever moral, mas também um direito humano basilar. Se assim não
fosse, a pessoa seria constrangida a cumprir uma ação intrinsecamente
incompatível com a sua dignidade e, desse modo, ficaria radicalmente
comprometida a sua própria liberdade, cujo autêntico sentido e fim
reside na orientação para a verdade e o bem. Trata-se, pois, de um
direito essencial que, precisamente como tal, deveria estar previsto e
protegido pela própria lei civil. Nesse sentido, a possibilidade de se
recusar a participar na fase consultiva, preparatória e executiva de
semelhantes atos contra a vida, deveria ser assegurada aos médicos, aos
outros profissionais da saúde e aos responsáveis pelos hospitais, clínicas
e casas de saúde. Quem recorre à objeção de consciência deve ser
salvaguardado não apenas de sanções penais, mas ainda de qualquer dano
no plano legal, disciplinar, econômico e profissional.
« Amarás ao teu próximo como a ti mesmo » (Lc 10,
27): « promove » a vida
75. Os mandamentos de Deus ensinam-nos o caminho da vida. Os
preceitos morais negativos, isto é, aqueles que declaram moralmente
inaceitável a escolha de uma determinada ação, têm um valor absoluto
para a liberdade humana: valem sempre e em todas as circunstâncias, sem exceção. Indicam que a escolha de determinado comportamento é
radicalmente incompatível com o amor a Deus e com a dignidade da pessoa,
criada à sua imagem: por isso, tal escolha não pode ser resgatada pela
bondade de qualquer intenção ou conseqüência, está em contraste insanável
com a comunhão entre as pessoas, contradiz a decisão fundamental de
orientar a própria vida para Deus.99
Já neste sentido, os preceitos morais negativos têm uma função
positiva importantíssima: o "não" que exigem
incondicionalmente, aponta o limite intransponível abaixo do qual o homem
livre não pode descer, e simultaneamente indica o mínimo que ele deve
respeitar e do qual deve partir para pronunciar inumeráveis « sins »,
capazes de cobrir progressivamente todo o horizonte do bem (cf. Mt
5, 48), em cada um dos seus âmbitos. Os mandamentos, de modo
particular os preceitos morais negativos, são o início e a primeira
etapa necessária do caminho da liberdade: « A primeira liberdade —
escreve Santo Agostinho — consiste em estar isento de crimes (...), como
seja o homicídio, o adultério, a fornicação, o roubo, a fraude, o
sacrilégio, e assim por diante. Quando alguém começa a não ter estes
crimes (e nenhum cristão os deve ter), começa a levantar a cabeça para
a liberdade, mas isto é apenas o início da liberdade, não a liberdade
perfeita ».100
76. O mandamento « não matarás » estabelece, pois, o ponto de
partida de um caminho de verdadeira liberdade, que nos leva a promover ativamente
a vida e a desenvolver determinadas atitudes e comportamentos
ao seu serviço: procedendo assim, exercemos a nossa responsabilidade para
com as pessoas que nos estão confiadas, e manifestamos, em obras e
verdade, o nosso reconhecimento a Deus pelo grande dom da vida (cf. Sal
139138, 13-14).
O Criador confiou a vida do homem à sua solicitude responsável, não
para que disponha arbitrariamente dela mas a guarde com sabedoria e
administre com amorosa fidelidade. O Deus da Aliança confiou a vida de
cada homem ao homem, seu irmão, segundo a lei da reciprocidade no dar e
no receber, no dom de si e no acolhimento do outro. Na plenitude dos
tempos, o Filho de Deus, encarnando e dando a sua vida pelo homem, mostrou
a altura e profundidade a que pode chegar esta lei da reciprocidade. Com o
dom do seu Espírito, Cristo dá conteúdos e significados novos à lei da
reciprocidade, à entrega do homem ao homem. O Espírito, que é artífice
de comunhão no amor, cria entre os homens uma nova fraternidade e
solidariedade, verdadeiro reflexo do mistério de recíproca doação e
acolhimento próprios da Santíssima Trindade. O próprio Espírito
torna-Se a lei nova, que dá força aos crentes e apela à sua
responsabilidade para viverem reciprocamente o dom de si e o acolhimento
do outro, participando no próprio amor de Jesus Cristo e segundo a sua
medida.
77. Animado e plasmado por esta lei nova está também o mandamento que
diz « não matarás ». Para o cristão, isto implica, em última análise,
o imperativo de respeitar, amar e promover a vida de cada irmão, segundo
as exigências e as dimensões do amor de Deus em Jesus Cristo. « Ele deu
a Sua vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos » (1
Jo 3, 16).
O mandamento « não matarás », inclusive nos seus conteúdos mais
positivos de respeito, amor e promoção da vida humana, vincula todo o
homem. De fato, ressoa na consciência moral de cada um como um eco
irreprimível da aliança primordial de Deus criador com o homem; todos o
podem conhecer pela luz da razão e observar pela obra misteriosa do Espírito
que, soprando onde quer (cf. Jo 3, 8), alcança e inspira todo o
homem que vive neste mundo.
Constitui, portanto, um serviço de amor, aquele que todos estamos
empenhados em assegurar ao nosso próximo, para que a sua vida seja
defendida e promovida sempre, mas sobretudo quando é mais débil ou ameaçada.
É uma solicitude pessoal mas também social, que todos devemos cultivar,
pondo o respeito incondicional da vida humana como fundamento de uma
sociedade renovada.
É-nos pedido que amemos e honremos a vida de cada homem e de cada
mulher, e que trabalhemos, com constância e coragem, para que, no nosso
tempo atravessado por demasiados sinais de morte, se instaure finalmente
uma nova cultura da vida, fruto da cultura da verdade e do amor.
CAPÍTULO IV
A MIM O FIZESTES
POR UMA NOVA CULTURA DA VIDA HUMANA
« Vós sois o povo adquirido por Deus, para proclamardes as suas
obras maravilhosas » (1 Ped 2, 9): o povo da vida e pela
vida
78. A Igreja recebeu o Evangelho, como anúncio e fonte de alegria e de
salvação. Recebeu-o em dom de Jesus, que foi enviado pelo Pai « para
anunciar a Boa Nova aos pobres » (Lc 4, 18). Recebeu-o através
dos Apóstolos, que o Mestre enviou pelo mundo inteiro (cf. Mc 16,
15; Mt 28, 19-20). Nascida desta ação missionária, a Igreja
ouve ressoar em si mesma todos os dias aquela palavra de incitamento apostólico:
« Ai de mim se não evangelizar! » (1 Cor 9, 16). « Evangelizar
— como escrevia Paulo VI — constitui, de fato, a graça e a vocação
própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para
evangelizar ».101
A evangelização é uma ação global e dinâmica que envolve a
Igreja na sua participação da missão profética, sacerdotal e real do
Senhor Jesus. Por isso, a evangelização compreende indivisivelmente as
dimensões do anúncio, da celebração e do serviço da caridade. É
um ato profundamente eclesial, que compromete todos os operários
do Evangelho, cada um segundo os seus carismas e o próprio ministério.
O mesmo acontece quando se trata de anunciar o Evangelho da vida, parte
integrante do Evangelho que é Jesus Cristo. Nós estamos ao serviço
deste Evangelho, amparados na certeza de o termos recebido em dom e de
sermos enviados a proclamá-lo a toda a humanidade, « até aos confins do
mundo » (at 1, 8). Por isso, grata e humildemente conservamos a
consciência de ser o povo da vida e pela vida e assim nos
apresentamos diante de todos.
79. Somos o povo da vida, porque Deus, no seu amor generoso,
deu-nos o Evangelho da vida e, por este mesmo Evangelho, fomos
transformados e salvos. Fomos reconquistados pelo « Príncipe da vida »
(at 3, 15), com o preço do seu sangue precioso (cf. 1 Cor
6, 20; 7, 23; 1 Ped 1, 19), e, pelo banho batismal, fomos
enxertados n'Ele (cf. Rm 6, 4-5; Col 2, 12) como ramos que
recebem seiva e fecundidade da única árvore (cf. Jo 15, 5).
Interiormente renovados pela graça do Espírito, « Senhor que dá a vida
», tornamo-nos um povo pela vida, e como tal somos chamados a
comportar-nos.
Somos enviados: estar ao serviço da vida não é para nós um título
de glória, mas um dever que nasce da consciência de sermos « o povo
adquirido por Deus para proclamar as suas obras maravilhosas » (cf. 1
Ped 2, 9). No nosso caminho, guia-nos e anima-nos a lei do amor: um
amor, cuja fonte e modelo é o Filho de Deus feito homem que « pela sua
morte deu a vida ao mundo ».102
Somos enviados como povo. O compromisso de servir a vida incumbe
sobre todos e cada um. É uma responsabilidade tipicamente « eclesial »,
que exige a ação concertada e generosa de todos os membros e estruturas
da comunidade cristã. Mas a sua característica de dever comunitário não
elimina nem diminui a responsabilidade de cada pessoa, a quem é
dirigido o mandamento do Senhor de « fazer-se próximo » de todo o
homem: « Vai e faz tu também do mesmo modo » (Lc 10, 37).
Todos juntos sentimos o dever de anunciar o Evangelho da vida,
de o celebrar na liturgia e na existência inteira, de o servir
com as diversas iniciativas e estruturas de apoio e promoção.
« O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos » (1 Jo 1,
3): anunciar o Evangelho da vida
80. « O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os
nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam acerca do
Verbo da vida (...) isso vos anunciamos, para que também vós tenhais
comunhão conosco » (1 Jo 1, 1.3). Jesus é o único
Evangelho: Ele é tudo o que temos para dizer e testemunhar.
O próprio anúncio de Jesus é anúncio da vida. Ele, de
fato,
é o « Verbo da vida » (1 Jo 1, 1). N'Ele, « a vida
manifestou-se » (1 Jo 1, 2); melhor, Ele mesmo é a « vida eterna
que estava no Pai e que nos foi manifestada » (1 Jo 1, 2). Esta
mesma vida, graças ao dom do Espírito, foi comunicada ao homem.
Orientada para a vida em plenitude — a « vida eterna » —, também a
vida terrena de cada um adquire o seu sentido pleno.
Iluminados pelo Evangelho da vida, sentimos a necessidade de o
proclamar e testemunhar pela surpreendente novidade que o
caracteriza: identificando-se com o próprio Jesus, portador de toda a
novidade 103 e vencedor daquele « envelhecimento » que provém do pecado
e conduz à morte,104 este Evangelho supera toda a expectativa do homem e
revela a grandeza excelsa, a que a dignidade da pessoa é elevada pela graça.
Assim a contempla S. Gregório de Nissa: « Quando comparado com os outros
seres, o homem nada vale, é pó, erva, ilusão; mas, uma vez adotado como filho pelo Deus do universo, é feito familiar deste Ser, cuja excelência
e grandeza ninguém pode ver, ouvir nem compreender. Com que palavra,
pensamento ou arroubo de espírito poderemos celebrar a superabundância
desta graça? O homem supera a sua natureza: de mortal passa a imortal, de
perecível a imperecível, de efêmero a eterno, de homem torna-se deus ».105
A gratidão e a alegria por esta dignidade incomensurável do homem
incitam-nos a tornar os demais participantes desta mensagem: « O que
vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós tenhais comunhão
conosco » (1 Jo 1, 3). É necessário fazer chegar o Evangelho
da vida ao coração de todo o homem e mulher, e inseri-lo nas pregas
mais íntimas do tecido da sociedade inteira.
81. Trata-se em primeiro lugar de anunciar o núcleo deste
Evangelho: é o anúncio de um Deus vivo e solidário, que nos chama a uma
profunda comunhão Consigo e nos abre à esperança segura da vida eterna;
é a afirmação do laço indivisível que existe entre a pessoa, a sua
vida e a própria corporeidade; é a apresentação da vida humana como
vida de relação, dom de Deus, fruto e sinal do seu amor; é a proclamação
da extraordinária relação de Jesus com todo o homem, que permite
reconhecer o rosto de Cristo em cada rosto humano; é a indicação do «
dom sincero de si » como tarefa e lugar de plena realização da própria
liberdade.
Importa, depois, mostrar todas as conseqüências deste mesmo
Evangelho, que se podem resumir assim: a vida humana, dom precioso de
Deus, é sagrada e inviolável, e, por isso mesmo, o aborto provocado e a
eutanásia são absolutamente inaceitáveis; a vida do homem não apenas não
deve ser eliminada, mas há de ser protegida com toda a atenção e
carinho; a vida encontra o seu sentido no amor recebido e dado, em cujo
horizonte haurem plena verdade a sexualidade e a procriação humana;
nesse amor, até mesmo o sofrimento e a morte têm um sentido, podendo
tornar-se acontecimentos de salvação, não obstante perdurar o mistério
que os envolve; o respeito pela vida exige que a ciência e a técnica
estejam sempre orientadas para o homem e para o seu desenvolvimento
integral; a sociedade inteira deve respeitar, defender e promover a
dignidade de toda a pessoa humana, em cada momento e condição da sua
vida.
82. Para sermos verdadeiramente um povo ao serviço da vida, temos de
propor, com constância e coragem, estes conteúdos, desde o primeiro anúncio
do Evangelho, e, depois, na catequese e nas diversas formas de pregação,
no diálogo pessoal e em toda a ação educativa. Aos educadores,
professores, catequistas e teólogos, incumbe o dever de pôr em destaque
as razões antropológicas que fundamentam e apóiam o respeito de
cada vida humana. Desta forma, ao mesmo tempo que faremos resplandecer a
original novidade do Evangelho da vida, poderemos ajudar os demais
a descobrirem, inclusive à luz da razão e da experiência, como a
mensagem cristã ilumina plenamente o homem e o significado do seu ser e
existir; encontraremos valiosos pontos de encontro e diálogo também com
os não crentes, empenhados todos juntos a fazer despertar uma nova
cultura da vida.
Cercados pelas vozes mais contrastantes, enquanto muitos rejeitam a sã
doutrina sobre a vida do homem, sentimos dirigida a nós a recomendação
de Paulo a Timóteo: « Prega a palavra, insiste oportuna e
inoportunamente, repreende, censura e exorta com bondade e doutrina » (2
Tm 4, 2). Com particular vigor, há de ressoar esta exortação no
coração de quantos na Igreja, mais diretamente e a diverso título,
participam da sua missão de « mestra » da verdade. Ressoe, antes de
mais, em nós, Bispos, que somos os primeiros a quem é pedido
tornar-se incansável anunciador do Evangelho da vida; está-nos
confiado também o dever de vigiar sobre a transmissão íntegra e fiel do
ensinamento proposto nesta Encíclica, e de recorrer às medidas mais
oportunas para que os fiéis sejam preservados de toda a doutrina contrária
ao mesmo. Havemos de dedicar especial atenção às Faculdades Teológicas,
aos Seminários e às diversas Instituições Católicas, para que aí
seja comunicado, ilustrado e aprofundado o conhecimento da sã
doutrina.106 A exortação de Paulo seja também ouvida por todos os teólogos,
pastores e quantos desempenham tarefas de ensino, catequese e formação
das consciências: cientes do papel que lhes cabe, não assumam nunca
a grave responsabilidade de atraiçoar a verdade e a própria missão,
expondo idéias pessoais contrárias ao Evangelho da vida, que o
Magistério fielmente propõe e interpreta.
Quando anunciarmos este Evangelho, não devemos temer a oposição e a
impopularidade, recusando qualquer compromisso e ambigüidade que nos
conformem com a mentalidade deste mundo (cf. Rm 12, 2). Com a força
recebida de Cristo, que venceu o mundo pela sua morte e ressurreição
(cf. Jo 16, 33), devemos estar no mundo, mas não ser do
mundo (cf. Jo 15, 19; 17, 16).
« Eu Vos louvo porque me fizestes como um prodígio » (Sal 139138,
14): celebrar o Evangelho da vida
83. Enviados ao mundo como « povo pela vida », o nosso anúncio deve
tornar-se também uma verdadeira e própria celebração do Evangelho
da vida. É precisamente esta celebração, com toda a força
evocativa dos seus gestos, símbolos e ritos, que se torna o lugar mais
precioso e significativo para transmitir a beleza e a grandeza desse
Evangelho.
Para isso, urge, antes de mais, cultivar, em nós e nos outros,
um olhar contemplativo.107 Este nasce da fé no Deus da vida, que
criou cada homem fazendo dele um prodígio (cf. Sal 139138, 14). É
o olhar de quem observa a vida em toda a sua profundidade, reconhecendo
nela as dimensões de generosidade, beleza, apelo à liberdade e à
responsabilidade. É o olhar de quem não pretende apoderar-se da
realidade, mas a acolhe como um dom, descobrindo em todas as coisas o
reflexo do Criador e em cada pessoa a sua imagem viva (cf. Gn 1,
27; Sal 8, 6). Este olhar não se deixa cair em desânimo à vista
daquele que se encontra enfermo, atribulado, marginalizado, ou às portas
da morte; mas deixa-se interpelar por todas estas situações procurando
nelas um sentido, sendo, precisamente em tais circunstâncias, que se
apresenta disponível para ler de novo no rosto de cada pessoa um apelo ao
entendimento, ao diálogo, à solidariedade.
É tempo de todos assumirem este olhar, tornando-se novamente capazes
de venerar e honrar cada homem, com ânimo repleto de religioso
assombro, como nos convidava a fazer Paulo VI numa das suas mensagens
natalícias.108 Animado por este olhar contemplativo, o povo novo dos
redimidos não pode deixar de prorromper em hinos de alegria, louvor e
gratidão pelo dom inestimável da vida, pelo mistério do chamamento
de todo o homem a participar, em Cristo, na vida da graça e numa existência
de comunhão sem fim com Deus Criador e Pai.
84. Celebrar o Evangelho da vida significa celebrar o Deus da vida,
o Deus que dá a vida: « Nós devemos celebrar a Vida eterna, da qual
procede qualquer outra vida. Dela recebe a vida, na proporção das
respectivas capacidades, todo o ser que, de algum modo, participa da vida.
Essa Vida divina, que está acima de qualquer vida, vivifica e conserva a
vida. Toda a vida e qualquer movimento vital procedem desta Vida que
transcende cada vida e cada princípio de vida. A Ela devem as almas a sua
incorruptibilidade, como também vivem, graças a Ela, todos os animais e
todas as plantas que recebem da vida um eco mais débil. Aos homens, seres
compostos de espírito e matéria, a Vida dá a vida. Se depois nos
acontece abandoná-la, então a Vida, pelo transbordar do seu amor pelo
homem, converte-nos e chama-nos a Si. E mais... Promete também
conduzir-nos — alma e corpo — à vida perfeita, à imortalidade. É
demasiado pouco dizer que esta Vida é viva: Ela é Princípio de vida,
Causa e Fonte única de vida. Todo o vivente deve contemplá-la e louvá-la:
é Vida que transborda de vida ».109
Como o Salmista, também nós, na oração diária individual e
comunitária, louvamos e bendizemos a Deus nosso Pai que nos plasmou no
seio materno, viu-nos e amou-nos quando estávamos ainda em embrião (cf. Sal
139138, 13.15-16), e exclamamos, com alegria irreprimível: « Eu Vos
louvo porque me fizestes como um prodígio; as vossas obras são admiráveis,
conheceis a sério a minha alma » (Sal 139138, 14). Sim, « esta
vida mortal, não obstante as suas aflições, os seus mistérios
obscuros, os seus sofrimentos, a sua fatal caducidade, é um fato belíssimo,
um prodígio sempre original e enternecedor, um acontecimento digno de ser
cantado com júbilo e glória ».110 Mais, o homem e a sua vida não se
revelam apenas como um dos prodígios mais altos da criação: Deus
conferiu ao homem uma dignidade quase divina (cf. Sal 8, 6-7). Em
cada criança que nasce e em cada homem que vive ou morre, reconhecemos a
imagem da glória de Deus: nós celebramos esta glória em cada homem,
sinal do Deus vivo, ícone de Jesus Cristo.
Somos chamados a exprimir assombro e gratidão pela vida recebida em
dom e a acolher, saborear e comunicar o Evangelho da vida, não só
através da oração pessoal e comunitária, mas sobretudo com as celebrações
do ano litúrgico. No mesmo contexto, há que recordar, de modo
particular, os Sacramentos, sinais eficazes da presença e ação salvadora do Senhor Jesus na existência cristã: tornam os homens
participantes da vida divina, assegurando-lhes a energia espiritual necessária
para realizarem plenamente o verdadeiro significado do viver, do sofrer e
do morrer. Graças a uma genuína descoberta do sentido dos ritos e à sua
adequada valorização, as celebrações litúrgicas, sobretudo as
sacramentais, serão capazes de exprimir cada vez melhor a verdade plena
acerca do nascimento, da vida, do sofrimento e da morte, ajudando a viver
estas realidades como participação no mistério pascal de Cristo morto e
ressuscitado.
85. Na celebração do Evangelho da vida, é preciso saber
apreciar e valorizar também os gestos e os símbolos, de que são ricas
as diversas tradições e costumes culturais dos povos. Trata-se de
momentos e formas de encontro, pelos quais, nos diversos países e
culturas, se manifesta a alegria pela vida que nasce, o respeito e defesa
de cada existência humana, o cuidado por quem sofre ou passa necessidade,
a solidariedade com o idoso ou o moribundo, a partilha da tristeza de quem
está de luto, a esperança e o desejo da imortalidade.
Nesta perspectiva e acolhendo a sugestão feita pelos Cardeais no
Consistório de 1991, proponho que se celebre anualmente um Dia em
defesa da Vida, nas diversas Nações, à semelhança do que já se
verifica por iniciativa de algumas Conferências Episcopais. É necessário
que essa ocorrência seja preparada e celebrada com a ativa participação
de todas as componentes da Igreja local. O seu objetivo principal é
suscitar nas consciências, nas famílias, na Igreja e na sociedade, o
reconhecimento do sentido e valor da vida humana em todos os seus momentos
e condições, concentrando a atenção de modo especial na gravidade do
aborto e da eutanásia, sem contudo transcorra os outros momentos e
aspectos da vida que merecem ser, de vez em quando, tomados em atenta
consideração, conforme a evolução da situação histórica sugerir.
86. Em coerência com o culto espiritual agradável a Deus (cf.Rm 12,
1), a celebração do Evangelho da vida requer a sua concretização
sobretudo na existência quotidiana, vivida no amor pelos outros e
na doação de si próprio. Assim, toda a nossa existência tornar-se-á
acolhimento autêntico e responsável do dom da vida e louvor sincero e
agradecido a Deus que nos fez esse dom. É o que sucede já com tantos e
tantos gestos de doação, freqüentemente humilde e escondida, cumpridos
por homens e mulheres, crianças e adultos, jovens e idosos, sãos e
doentes.
É neste contexto, rico de humanidade e amor, que nascem também os gestos
heróicos. Estes são a celebração mais solene do Evangelho da
vida, porque o proclamam com o dom total de si; são a
manifestação refulgente do mais elevado grau de amor, que é dar a vida
pela pessoa amada (cf. Jo 15, 13); são a participação no mistério
da Cruz, na qual Jesus revela quão grande valor tem para Ele a vida de
cada homem e como esta se realiza em plenitude no dom sincero de si. Além
dos fatos clamorosos, existe o heroísmo do quotidiano, feito de pequenos
ou grandes gestos de partilha que alimentam uma autêntica cultura da
vida. Entre estes gestos, merece particular apreço a doação de órgãos
feita, segundo formas eticamente aceitáveis, para oferecer uma
possibilidade de saúde e até de vida a doentes, por vezes já sem
esperança.
A tal heroísmo do quotidiano, pertence o testemunho silencioso, mas tão
fecundo e eloqüente, de « todas as mães corajosas, que se dedicam sem
reservas à própria família, que sofrem ao dar à luz os próprios
filhos, e depois estão prontas a abraçar qualquer fadiga e a enfrentar
todos os sacrifícios, para lhes transmitir quanto de melhor elas
conservam em si ».111 No cumprimento da sua missão, « nem sempre estas
mães heróicas encontram apoio no seu ambiente. Antes, os modelos de
civilização, com freqüência promovidos e propagados pelos meios de
comunicação, não favorecem a maternidade. Em nome do progresso e da
modernidade, são apresentados como já superados os valores da
fidelidade, da castidade e do sacrifício, nos quais se distinguiram e
continuam a distinguir-se multidões de esposas e de mães cristãs. (...)
Nós vos agradecemos, mães heróicas, o vosso amor invencível! Nós vos
agradecemos a intrépida confiança em Deus e no seu amor. Nós vos
agradecemos o sacrifício da vossa vida. (...) Cristo, no Mistério
Pascal, restituiu-vos o dom que Lhe fizestes. Ele, de fato, tem o poder
de vos restituir a vida, que Lhe levastes em oferenda ».112
« De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé se não
tiver obras? » (Tg 2, 14): servir o Evangelho da vida
87. Em virtude da participação na missão real de Cristo, o apoio e a
promoção da vida humana devem atuar através do serviço da
caridade, que se exprime no testemunho pessoal, nas diversas formas de
voluntariado, na animação social e no compromisso político. Trata-se de
uma exigência sobremaneira premente na hora atual, em que a «
cultura da morte » se contrapõe à « cultura da vida », de forma tão
forte que muitas vezes parece levar a melhor. Antes ainda, porém,
trata-se de uma exigência que nasce da « fé que atua pela caridade »
(Gal 5, 6), como nos adverte a Carta de S. Tiago: « De que
aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé se não tiver obras?
Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus
e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhe disser: "Ide em
paz, aquecei-vos e saciai-vos", sem lhes dar o que é necessário ao
corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver
obras, é morta em si mesma » (2, 14-17).
No serviço da caridade, há uma atitude que nos há de
animar e
caracterizar: devemos cuidar do outro enquanto pessoa confiada por
Deus à nossa responsabilidade. Como discípulos de Jesus, somos chamados
a fazermo-nos próximo de cada homem (cf. Lc 10, 29-37), reservando
uma preferência especial a quem vive mais pobre, sozinho e necessitado.
É precisamente através da ajuda prestada ao faminto, ao sedento, ao
estrangeiro, ao nu, ao doente, ao encarcerado — como também à criança
ainda não nascida, ao idoso que está doente ou perto da morte —, que
temos a possibilidade de servir Jesus, como Ele mesmo declarou: « Sempre
que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o
fizestes » (Mt 25, 40). Por isso, não podemos deixar de nos sentir
interpelados e julgados por esta página sempre atual de S. João Crisóstomo:
« Queres honrar o corpo de Cristo? Não O transcures quando se encontrar
nu! Não vale prestares honras aqui no templo com tecidos de seda, e
depois transcurá-Lo lá fora, onde sofre frio e nudez ».113
O serviço da caridade a favor da vida deve ser profundamente unitário:
não pode tolerar unilateralismos e discriminações, já que a vida
humana é sagrada e inviolável em todas as suas fases e situações; é
um bem indivisível. Trata-se de «cuidar » da vida toda e da vida de
todos. Ou melhor ainda e mais profundamente, trata-se de ir até às
próprias raízes da vida e do amor.
Partindo exatamente deste amor profundo por todo o homem e mulher,
foi-se desenvolvendo, ao longo dos séculos, uma extraordinária história
de caridade, que introduziu, na vida eclesial e civil, numerosas
estruturas de serviço à vida, que suscitam a admiração até do
observador menos prevenido. É uma história que cada comunidade cristã
deve, com renovado sentido de responsabilidade, continuar a escrever graças
a uma múltipla ação pastoral e social. Neste sentido, é preciso criar
formas discretas mas eficazes de acompanhamento da vida nascente, prestando
uma especial solidariedade àquelas mães que, mesmo privadas do apoio do
pai, não temem trazer ao mundo o seu filho e educá-lo. Cuidado análogo
deve ser reservado à vida provada pela marginalização ou pelo
sofrimento, de forma particular nas suas etapas finais.
88. Tudo isto comporta uma obra educativa paciente e corajosa,
que estimule todos e cada um a carregar os fardos dos outros (cf. Gal 6,
2); requer uma contínua promoção das vocações ao serviço,
particularmente entre os jovens; implica a realização de projetos e
iniciativas concretas, sólidas e inspiradas evangelicamente.
Múltiplos são os instrumentos a valorizar por um empenho
competente e sério. Relativamente às fontes da vida, sejam promovidos os
centros com os métodos naturais de regulação da fertilidade, como válida
ajuda à paternidade e maternidade responsável, na qual cada pessoa, a
começar do filho, é reconhecida e respeitada por si mesma, e cada decisão
é animada e guiada pelo critério do dom sincero de si. Também os
consultórios matrimoniais e familiares, através da sua ação específica
de consulta e prevenção, desenvolvida à luz de uma antropologia
coerente com a visão cristã da pessoa, do casal e da sexualidade,
constituem um precioso serviço para descobrir o sentido do amor e da
vida, e para apoiar e assistir cada família na sua missão de « santuário
da vida ». Ao serviço da vida nascente, estão ainda os centros de
ajuda à vida e os lares de acolhimento da vida. Graças à sua ação,
tantas mães-solteiras e casais em dificuldade readquirem razões e convicções,
e encontram assistência e apoio para superar contrariedades e medos no
acolhimento de uma vida nascitura ou que acaba de vir à luz.
Diante da vida condicionada por dificuldades, extravio, doença ou
marginalização, outros instrumentos — como as comunidades para a
recuperação dos toxicodependentes, os lares para abrigo de menores ou
dos doentes mentais, os centros para acolhimento e tratamento dos doentes
da SIDA, as Cooperativas de solidariedade sobretudo para inválidos — são
expressões eloqüentes daquilo que a caridade sabe inventar para dar novas
razões de esperança e possibilidades concretas de vida a cada um.
Quando, depois, a existência terrena se encaminha para o seu termo, é
ainda a caridade que encontra as modalidades mais oportunas para os idosos,
sobretudo se não-autosuficientes, e os chamados doentes terminais poderem
gozar de uma assistência verdadeiramente humana e receber respostas
adequadas às suas exigências, especialmente à sua angústia e solidão.
Nestes casos, é insubstituível o papel das famílias; mas estas podem
encontrar grande ajuda nas estruturas sociais de assistência e, quando
necessário, no recurso aos cuidados paliativos, valendo-se para o
efeito dos idôneos serviços clínicos e sociais, sejam os existentes nos
edifícios públicos de internamento e tratamento, sejam os disponíveis
para apoio no domicílio.
Em particular, ocorre reconsiderar o papel dos hospitais, das
clínicas e das casas de saúde: a sua verdadeira identidade não
é a de serem apenas estruturas onde se cuida dos enfermos e doentes
terminais, mas e primariamente ambientes nos quais o sofrimento, a dor e a
morte sejam reconhecidos e interpretados no seu significado humano e
especificamente cristão. De modo especial, tal identidade deve
manifestar-se clara e eficientemente nas instituições dependentes de
religiosos ou, de alguma maneira, ligadas à Igreja.
89. Estas estruturas e lugares de serviço à vida, e todas as demais
iniciativas de apoio e solidariedade, que as diversas situações poderão
sugerir em cada ocasião, precisam de ser animados por pessoas
generosamente disponíveis e profundamente conscientes de quão
decisivo seja o Evangelho da vida para o bem do indivíduo humano e
da sociedade.
Peculiar é a responsabilidade confiada aos profissionais da saúde
— médicos, farmacêuticos, enfermeiros, capelães, religiosos e
religiosas, administradores e voluntários: a sua profissão pede-lhes
que sejam guardiães e servidores da vida humana. No atual contexto
cultural e social, em que a ciência e a arte médica correm o risco de
extraviar-se da sua dimensão ética originária, podem ser às vezes
fortemente tentados a transformarem-se em fautores de manipulação da
vida, ou mesmo até em agentes de morte. Perante tal tentação, a sua
responsabilidade é hoje muito maior e encontra a sua inspiração mais
profunda e o apoio mais forte precisamente na intrínseca e imprescindível
dimensão ética da profissão clínica, como já reconhecia o antigo e
sempre atual juramento de Hipócrates, segundo o qual é pedido a
cada médico que se comprometa no respeito absoluto da vida humana e da
sua sacralidade.
O respeito absoluto de cada vida humana inocente exige inclusivamente o
exercício da objeção de consciência frente ao aborto provocado
e à eutanásia. O « fazer morrer » nunca pode ser considerado um
cuidado médico, nem mesmo quando a intenção fosse apenas a de secundar
um pedido do paciente: pelo contrário, é a própria negação da profissão
médica, que se define como um apaixonado e vigoroso « sim » à vida.
Também a pesquisa biomédica, campo fascinante e promissor de novos e
grandes benefícios para a humanidade, deve sempre rejeitar experiências,
investigações ou aplicações que, menosprezando a dignidade inviolável
do ser humano, deixam de estar ao serviço dos homens para se
transformarem em realidades que, parecendo socorrê-los, efetivamente os
oprimem.
90. Um papel específico são chamadas a desempenhar as pessoas
empenhadas no voluntariado: oferecem um contributo precioso ao serviço
da vida, quando sabem conjugar capacidade profissional com um amor
generoso e gratuito. O Evangelho da vida impele-as a elevarem os
sentimentos de simples filantropia até à altura da caridade de Cristo; a
reavivarem diariamente, por entre fadigas e cansaços, a consciência da
dignidade de cada homem; a irem à procura das carências das pessoas,
iniciando — se necessário — novos caminhos em lugares onde a
necessidade é mais urgente, e a atenção e o apoio menos consistentes.
O realismo pertinaz da caridade exige que o Evangelho da vida
seja servido ainda por meio de formas de animação social e de empenho
político, que defendam e proponham o valor da vida nas nossas
sociedades cada vez mais complexas e pluralistas. Indivíduos, famílias,
grupos, entidades associativas têm a sua responsabilidade, mesmo se a
título e com método diverso, na animação social e na elaboração de projetos
culturais, econômicos, políticos e legislativos que, no
respeito de todos e segundo a lógica da convivência democrática,
contribuam para edificar uma sociedade, onde a dignidade de cada pessoa
seja reconhecida e tutelada, e a vida de todos fique tutelada e promovida.
Semelhante tarefa incumbe, de modo particular, sobre os responsáveis
da vida pública. Chamados a servir o homem e o bem comum, têm o
dever de realizar opções corajosas a favor da vida, primeiro que tudo,
no âmbito das disposições legislativas. Num regime democrático,
onde as leis e as decisões se estabelecem sobre a base do consenso de
muitos, pode atenuar-se na consciência dos indivíduos investidos de
autoridade o sentido da responsabilidade pessoal. Mas ninguém pode jamais
abdicar desta responsabilidade, sobretudo quando tem um mandato
legislativo ou poder decisório que o chama a responder perante Deus, a própria
consciência e a sociedade inteira de opções eventualmente contrárias
ao verdadeiro bem comum. Se as leis não são o único instrumento para
defender a vida humana, desempenham, contudo, um papel muito importante,
por vezes determinante, na promoção de uma mentalidade e dos costumes.
Afirmo, uma vez mais, que uma norma que viola o direito natural de um
inocente à vida, é injusta e, como tal, não pode ter valor de lei. Por
isso, renovo o meu veemente apelo a todos os políticos para não
promulgarem leis que, ao menosprezarem a dignidade da pessoa, minam pela
raiz a própria convivência social.
A Igreja sabe que é difícil atuar uma defesa legal eficaz da vida no
contexto das democracias pluralistas, por causa da presença de fortes
correntes culturais de matriz diversa. Todavia, movida pela certeza de que
a verdade moral não pode deixar de ter eco no íntimo de cada consciência,
ela encoraja os políticos — a começar pelos que são cristãos — a não
se renderem, mas tomarem aquelas decisões que, tendo em conta as
possibilidades concretas, levem a restabelecer uma ordem justa na afirmação
e promoção do valor da vida. Nesta perspectiva, convém sublinhar que não
basta eliminar as leis iníquas. Mas terão de ser removidas as causas que
favorecem os atentados contra a vida, sobretudo garantindo o devido apoio
à família e à maternidade: a política familiar deve constituir o
ponto fulcral e o motor de todas as políticas sociais. Para isso, é
necessário ativar iniciativas sociais e legislativas, capazes de
garantir condições de autêntica liberdade de escolha em ordem à
paternidade e à maternidade; impõe-se, além disso, reordenar as políticas
do emprego, de urbanização, da habitação, dos serviços sociais, para
se conseguir conciliar entre si os tempos do trabalho e da família,
tornando possível um efetivo cuidado das crianças e dos idosos.
91. Um capítulo importante da política em favor da vida é constituído
hoje pela problemática demográfica. As autoridades públicas têm
certamente a responsabilidade de intervir com válidas iniciativas « para
orientar a demografia da população »; 114 mas tais iniciativas devem
pressupor e respeitar sempre a responsabilidade primária e inalienável
dos esposos e das famílias, e não podem recorrer a métodos
desrespeitadores da pessoa e dos seus direitos fundamentais, a começar
pelo direito à vida de todo o ser humano inocente. Por isso, é
moralmente inaceitável que, para regular a natalidade, se encoraje ou até
imponha o uso de meios como a contracepção, a esterilização e o
aborto.
Bem diferentes são os caminhos para resolver o problema demográfico:
os Governos e as várias instituições internacionais devem, antes de
tudo, visar a criação de condições econômicas, sociais, médico-sanitárias
e culturais que permitam aos esposos realizarem as suas opções
procriadoras, com plena liberdade e verdadeira responsabilidade; devem
esforçar-se, depois, por « aumentar os meios e distribuir com maior
justiça a riqueza, para que todos possam participar eqüitativamente dos
bens da criação. São necessárias soluções a nível mundial, que
instaurem uma verdadeira economia de comunhão e participação de
bens, tanto na ordem internacional como nacional ».115 Esta é a única
estrada que respeita a dignidade das pessoas e das famílias, como também
o autêntico patrimônio cultural dos povos.
Vasto e complexo é, portanto, o serviço ao Evangelho da vida.
Ele manifesta-se cada vez mais como âmbito precioso e favorável para uma
efetiva colaboração com os irmãos das outras Igrejas e Comunidades
eclesiais, na linha daquele ecumenismo das obras que o Concílio
Vaticano II, com autoridade, encorajou.116 Além disso, o referido serviço
apresenta-se como espaço providencial para o diálogo e colaboração com
os sequazes de outras religiões e com todos os homens de boa vontade: a
defesa e a promoção da vida não são monopólio de ninguém, mas tarefa
e responsabilidade de todos. O desafio que temos pela frente, na vigília
do terceiro milênio, é árduo: somente a cooperação concorde de todos
aqueles que acreditam no valor da vida, poderá evitar uma derrota da
civilização com conseqüências imprevisíveis.
« Os filhos são bênçãos do Senhor; os frutos do ventre, um mimo
do Senhor » (Sal 127126, 3): a família « santuário da
vida »
92. No seio do « povo da vida e pela vida », resulta decisiva a
responsabilidade da família: é uma responsabilidade que brota da própria
natureza dela — uma comunidade de vida e de amor, fundada sobre o matrimônio
— e da sua missão que é « guardar, revelar e comunicar o amor ».117
Em causa está o próprio amor de Deus, do qual os pais são constituídos
colaboradores e como que intérpretes na transmissão da vida e na educação
da mesma segundo o seu projeto de Pai.118 É, por conseguinte, o amor que
se faz generosidade, acolhimento, doação: na família, cada um é
reconhecido, respeitado e honrado porque pessoa, e se alguém está mais
necessitado, maior e mais diligente é o cuidado por ele.
A família tem a ver com os seus membros durante toda a existência de
cada um, desde o nascimento até à morte. Ela é verdadeiramente « o santuário
da vida (...), o lugar onde a vida, dom de Deus, pode ser
convenientemente acolhida e protegida contra os múltiplos ataques a que
está exposta, e pode desenvolver-se segundo as exigências de um
crescimento humano autêntico ».119 Por isso, o papel da família é determinante
e insubstituível na construção da cultura da vida.
Como igreja doméstica, a família é chamada a anunciar,
celebrar e servir o Evangelho da vida. Esta tríplice função
compete primariamente aos cônjuges, chamados a serem transmissores da
vida, apoiados numa consciência sempre renovada do sentido da
geração, enquanto acontecimento onde, de modo privilegiado, se
manifesta que a vida humana é um dom recebido a fim de, por sua vez,
ser dado. Na geração de uma nova vida, eles tomam consciência de
que o filho « se é fruto da recíproca doação de amor dos pais, é,
por sua vez, um dom para ambos: um dom que promana do dom ».120
A família cumpre a sua missão de anunciar o Evangelho da vida,
principalmente através da educação dos filhos. Pela palavra e
pelo exemplo, no relacionamento mútuo e nas opções quotidianas, e
mediante gestos e sinais concretos, os pais iniciam os seus filhos na
liberdade autêntica, que se realiza no dom sincero de si, e cultivam
neles o respeito do outro, o sentido da justiça, o acolhimento cordial, o
diálogo, o serviço generoso, a solidariedade e os demais valores que
ajudam a viver a existência como um dom. A obra educadora dos pais cristãos
deve constituir um serviço à fé dos filhos e prestar uma ajuda para
eles cumprirem a vocação recebida de Deus. Entra na missão educadora
dos pais ensinar e testemunhar aos filhos o verdadeiro sentido do
sofrimento e da morte: podê-lo-ão fazer se souberem estar atentos a todo
o sofrimento existente ao seu redor e, antes ainda, se souberem
desenvolver atitudes de solidariedade, assistência e partilha com doentes
e idosos no âmbito familiar.
93. Além disso, a família celebra o Evangelho da vida com a
oração diária, individual e familiar: nela, agradece e louva o
Senhor pelo dom da vida e invoca luz e força para enfrentar os momentos
de dificuldade e sofrimento, sem nunca perder a esperança. Mas a celebração
que dá significado a qualquer outra forma de oração e de culto é a que
se exprime na existência quotidiana da família, quando esta é
uma existência feita de amor e doação.
A celebração transforma-se assim num serviço ao Evangelho da
vida, que se exprime através da solidariedade, vivida no seio
e ao redor da família como atenção carinhosa, vigilante e cordial nas ações
pequenas e humildes de cada dia. Uma expressão particularmente
significativa de solidariedade entre as famílias é a disponibilidade
para a adoção ou para o acolhimento das crianças
abandonadas pelos seus pais ou, de qualquer modo, em situação de grave
dificuldade. O verdadeiro amor paterno e materno sabe ir além dos laços
da carne e do sangue para acolher também crianças de outras famílias,
oferecendo-lhes quanto seja necessário para a sua vida e o seu pleno
desenvolvimento. Entre as formas de adoção, merece ser assinalada a adoção
à distância, que se há de preferir sempre que o abandono
tenha por único motivo as condições de grave pobreza da família. Na
realidade, com esta espécie de adoção é oferecida aos pais a ajuda
necessária para manter e educar os próprios filhos, sem ter de os
desarraigar do seu ambiente natural.
Concebida como « determinação firme e perseverante de se empenhar
pelo bem comum »,121 a solidariedade requer ser também concretizada
mediante formas de participação social e política.
conseqüentemente, servir o Evangelho da vida implica que as famílias,
nomeadamente tomando parte em apropriadas associações, se empenhem por
que as leis e as instituições do Estado não lesem de modo algum o
direito à vida, desde a sua concepção até à morte natural, mas o
defendam e promovam.
94. Um lugar especial há de ser reconhecido aos idosos.
Enquanto, nalgumas culturas, a pessoa de mais idade permanece inserida na
família com um papel ativo importante, noutras, ao contrário, quem
chegou à velhice é sentido como um peso inútil e fica abandonado a si
mesmo: em tal contexto, pode mais facilmente surgir a tentação de
recorrer à eutanásia.
A marginalização ou mesmo a rejeição dos idosos é intolerável. A
sua presença na família ou, pelo menos, a estreita solidariedade desta
com eles quando, pelo reduzido espaço da habitação ou outros motivos,
essa presença não fosse possível, é de importância fundamental para
criar um clima de intercâmbio recíproco e de comunicação enriquecedora
entre as várias idades da vida. Por isso, é importante que se conserve,
ou se restabeleça onde tal se perdeu, uma espécie de « pacto » entre
as gerações, de modo que os pais idosos, chegados ao termo da sua
caminhada, possam encontrar nos filhos aquele acolhimento e solidariedade
que lhes tinham oferecido quando estes estavam a desabrochar para a vida:
exige-o a obediência ao mandamento divino que ordena honrar o pai e a mãe
(cf. Ex 20, 12; Lv 19, 3). Mas há mais... O idoso não há de
ser considerado apenas objeto de atenção, solidariedade e serviço.
Também ele tem um valioso contributo a prestar ao Evangelho da vida. Graças
ao rico patrimônio de experiência adquirido ao longo dos anos, o idoso
pode e deve ser transmissor de sabedoria, testemunha de esperança e de
caridade.
Se é verdade que « o futuro da humanidade
passa pela família »,122 tem-se de reconhecer que as atuais
condições
sociais, econômicas e culturais freqüentemente tornam mais árdua e
penosa a tarefa da família ao serviço da vida. Para poder realizar a sua
vocação de « santuário da vida », enquanto célula de uma sociedade
que ama e acolhe a vida, é necessário e urgente que a família como
tal seja ajudada e apoiada. As sociedades e os Estados devem assegurar
todo o apoio necessário, mesmo econômico, para que as famílias possam
responder de forma mais humana aos próprios problemas. Por seu lado, a
Igreja deve promover incansavelmente uma pastoral familiar capaz de ajudar
cada família a redescobrir, com alegria e coragem, a sua missão no que
diz respeito ao Evangelho da vida.
« Comportai-vos como filhos da luz » (Ef 5, 8): para
realizar uma viagem cultural
95. « Comportai-vos como filhos da luz. (...) Procurai o que é agradável
ao Senhor, e não participeis das obras infrutuosas das trevas » (Ef 5,
8.10-11). No contexto social de hoje, marcado por uma luta dramática
entre a « cultura da vida » e a « cultura da morte », importa maturar
um forte sentido crítico, capaz de discernir os verdadeiros valores e
as autênticas exigências.
Urge uma mobilização geral das consciências e um esforço
ético comum, para se atuar uma grande estratégia a favor da
vida. Todos juntos devemos construir uma nova cultura da vida: nova,
porque em condições de enfrentar e resolver os problemas inéditos de
hoje acerca da vida do homem; nova, porque assumida com convicção mais
firme e laboriosa por todos os cristãos; nova, porque capaz de suscitar
um sério e corajoso confronto cultural com todos. A urgência desta viagem
cultural está ligada à situação histórica que estamos a
atravessar, mas radica-se sobretudo na própria missão evangelizadora
confiada à Igreja. De fato, o Evangelho visa « transformar a partir de
dentro e fazer nova a própria humanidade »; 123 é como o fermento que
leveda toda a massa (cf. Mt 13, 33) e, como tal, é destinado a
permear todas as culturas e a animá-las a partir de dentro,124 para que
exprimam a verdade integral sobre o homem e sua vida.
Tem-se de começar por renovar a cultura da vida no seio das próprias
comunidades cristãs. Muitas vezes os crentes, mesmo até os que
participam ativamente na vida eclesial, caiem numa espécie de dissociação
entre a fé cristã e as suas exigências éticas a propósito da vida,
chegando assim ao subjetivismo moral e a certos comportamentos inaceitáveis.
Devemos, pois, interrogar-nos, com grande lucidez e coragem, acerca da
cultura da vida que reina hoje entre os indivíduos cristãos, as famílias,
os grupos e as comunidades das nossas Dioceses. Com igual clareza e decisão,
teremos de individuar os passos que somos chamados a dar para servir a
vida na plenitude da sua verdade. Ao mesmo tempo, devemos promover um
confronto sério e profundo com todos, inclusive com os não crentes,
sobre os problemas fundamentais da vida humana, tanto nos lugares da
elaboração do pensamento, como nos diversos âmbitos profissionais e nas
situações onde se desenrola diariamente a existência de cada um.
96. O primeiro e fundamental passo para realizar esta viagem
cultural
consiste na formação da consciência moral acerca do valor
incomensurável e inviolável de cada vida humana. Suma importância tem
aqui a descoberta do nexo indivisível entre vida e liberdade. São
bens inseparáveis: quando um é violado, o outro acaba por o ser também.
Não há liberdade verdadeira, onde a vida não é acolhida nem amada; nem
há vida plena senão na liberdade. Ambas as realidades têm, ainda, um
peculiar e natural ponto de referência que as une indissoluvelmente: a
vocação ao amor. Este, enquanto sincero dom de si,125 é o sentido mais
verdadeiro da vida e da liberdade da pessoa.
Na formação da consciência, igualmente decisiva é a descoberta
do laço constitutivo que une a liberdade à verdade. Como disse já várias
vezes, o desarraigar a liberdade da verdade objetiva torna impossível
fundar os direitos da pessoa sobre uma base racional sólida, e cria as
premissas para se afirmar, na sociedade, o arbítrio desenfreado dos indivíduos
ou o totalitarismo repressivo do poder público.126
Então é essencial que o homem reconheça a evidência primordial da
sua condição de criatura que recebe de Deus o ser e a vida como dom e
tarefa: só admitindo esta inata dependência no seu ser, pode o homem
realizar em plenitude a vida e a liberdade própria e, simultaneamente,
respeitar em toda a sua profundidade a vida e a liberdade alheia. É
sobretudo aqui que se manifesta como, « no centro de cada cultura, está
o comportamento que o homem assume diante do mistério maior: o mistério
de Deus ».127 Quando se nega Deus e se vive como se Ele não existisse ou
de qualquer modo não se tem em conta os seus mandamentos, então
facilmente se acaba por negar ou comprometer também a dignidade da pessoa
humana e a inviolabilidade da sua vida.
97. À formação da consciência está estritamente ligada a obra
educativa, que ajuda o homem a ser cada vez mais homem, introduzi-lo sempre mais profundamente na verdade, orienta-o para um crescente respeito
da vida, forma-o nas justas relações entre as pessoas.
De modo particular, é necessário educar para o valor da vida,a
começar das suas próprias raízes. É uma ilusão pensar que se pode
construir uma verdadeira cultura da vida humana, se não se ajudam os
jovens a compreender e a viver a sexualidade, o amor e a existência
inteira no seu significado verdadeiro e na sua íntima correlação. A
sexualidade, riqueza da pessoa toda, « manifesta o seu significado íntimo
ao levar a pessoa ao dom de si no amor ».128 A banalização da
sexualidade conta-se entre os principais fatores que estão na origem do
desprezo pela vida nascente: só um amor verdadeiro sabe defender a vida.
Não é possível, pois, eximir-nos de oferecer, sobretudo aos
adolescentes e aos jovens, uma autêntica educação da sexualidade e
do amor, educação essa que requer a formação para a castidade,
como virtude que favorece a maturidade da pessoa e a torna capaz de
respeitar o significado « esponsal » do corpo.
A obra de educação para a vida comporta a formação dos cônjuges
sobre a procriação responsável. No seu verdadeiro significado, esta
exige que os esposos sejam dóceis ao chamamento do Senhor e vivam como fiéis
intérpretes do seu desígnio: este cumpre-se com a generosa abertura da
família a novas vidas, permanecendo em atitude de acolhimento e de serviço
à vida, mesmo quando os cônjuges, por sérios motivos e no respeito da
lei moral, decidem evitar, com ou sem limites de tempo, um novo
nascimento. A lei moral obriga-os, em qualquer caso, a dominar as tendências
do instinto e das paixões e a respeitar as leis biológicas inscritas na
pessoa de ambos. É precisamente este respeito que torna legítimo, ao
serviço da procriação responsável, o recurso aos métodos naturais
de regulação da fertilidade: estes têm-se aperfeiçoado
progressivamente sob o ponto de vista científico e oferecem
possibilidades concretas para decisões de harmonia com os valores morais.
Uma honesta ponderação dos resultados conseguidos deveria fazer ruir
preconceitos ainda demasiado difusos e convencer os cônjuges, bem como os
profissionais da saúde e da assistência social, sobre a importância de
uma adequada formação a tal respeito. A Igreja está agradecida àqueles
que, com sacrifício pessoal e dedicação freqüentemente ignorada, se
empenham na pesquisa e na difusão de tais métodos, promovendo ao mesmo
tempo uma educação dos valores morais que o seu uso supõe.
A obra educativa não pode deixar de tomar em consideração, ainda,
o sofrimento e a morte. Na realidade, ambos fazem parte da experiência
humana, e é vão, para além de ilusório, procurá-los reprimir ou
ignorar. Ao contrário, cada um deve ser ajudado a compreender, na
concreta e dura realidade, o seu mistério profundo. Também a dor e o
sofrimento têm um sentido e um valor, quando são vividos em estreita
ligação com o amor recebido e dado. Nesta perspectiva, quis que se
celebrasse anualmente o Dia Mundial do Doente, fazendo ressaltar «
a índole salvífica da oferta do sofrimento, que, vivido em comunhão com
Cristo, pertence à essência mesma da redenção ».129 Até a morte, aliás,
não é de forma alguma aventura sem esperança: é a porta da existência
que se abre de par em par à eternidade e, para aqueles que a vivem em
Cristo, é experiência de participação no mistério da sua morte e
ressurreição.
98. Em resumo, podemos dizer que a viagem cultural, aqui desejada,
exige de todos a coragem de assumir um novo estilo de vida que se
exprime colocando, no fundamento das decisões concretas — a nível
pessoal, familiar, social e internacional —, uma justa escala dos
valores: o primado do ser sobre o ter,130 da pessoa sobre as
coisas.131 Este novo estilo de vida implica também a passagem da
indiferença ao interesse pelo outro, a passagem da recusa ao seu
acolhimento: os outros não são concorrentes de quem temos de nos
defender, mas irmãos e irmãs de quem devemos ser solidários; hão de ser amados por si mesmos; enriquecem-nos pela sua própria presença.
Na mobilização por um nova cultura da vida, que ninguém se sinta
excluído: todos têm um papel importante a desempenhar. Ao lado da
tarefa das famílias, é particularmente valiosa a missão dos professores
e dos educadores. Deles está em larga medida dependente a
possibilidade de os jovens, formados para uma autêntica liberdade,
saberem preservar dentro de si e espalhar ao seu redor ideais autênticos
de vida, e saberem crescer no respeito e ao serviço de cada pessoa, em
família e na sociedade.
Também os intelectuais muito podem fazer para construir uma
nova cultura da vida humana. Responsabilidade particular cabe aos
intelectuais católicos, chamados a estarem ativamente presentes
nas sedes privilegiadas da elaboração cultural, ou seja, no mundo da
escola e das universidades, nos ambientes da investigação científica e
técnica, nos lugares da criação artística e da reflexão humanista.
Alimentando o seu gênio e ação na seiva límpida do Evangelho, devem
comprometer-se ao serviço de uma nova cultura da vida, através da produção
de contributos sérios, documentados e capazes de se imporem pelos seus méritos
ao respeito e interesse de todos. Precisamente nesta perspectiva, instituí
a Pontifícia Academia para a Vida, com a missão de « estudar,
informar e formar acerca dos principais problemas de biomedicina e de
direito, relativos à promoção e à defesa da vida, sobretudo na relação
direta que eles têm com a moral cristã e as diretrizes do Magistério
da Igreja ».132 Um contributo específico há de vir das Universidades,
em particular católicas, e dos Centros, Institutos e Comissões
de bioética.
Grande e grave é a responsabilidade dos profissionais dos
mass-media, chamados a pugnarem por que as mensagens, transmitidas com
tamanha eficácia, sejam um verdadeiro contributo para a cultura da vida.
Importa, por isso, apresentar exemplos altos e nobres de vida e dar espaço
aos testemunhos positivos e por vezes heróicos de amor pelo homem;
propor, com grande respeito, os valores da sexualidade e do amor, sem
contemporizar com nada daquilo que deturpa e degrada a dignidade do homem.
Na leitura da realidade, hão de recusar-se a pôr em destaque tudo o que
possa inspirar ou fazer crescer sentimentos ou atitudes de indiferença,
desprezo ou rejeição da vida. Na escrupulosa fidelidade à verdade dos fatos, eles são chamados a conjugar num todo a liberdade de informação,
o respeito por cada pessoa e um profundo sentido de humanidade.
99. Nessa viagem cultural a favor da vida, as mulheres têm um
espaço de pensamento e ação singular e talvez determinante: compete a
elas fazerem-se promotoras de um « novo feminismo » que, sem cair na
tentação de seguir modelos « masculinizados », saiba reconhecer e
exprimir o verdadeiro gênio feminino em todas as manifestações da
convivência civil, trabalhando pela superação de toda a forma de
discriminação, violência e exploração.
Retomando as palavras da mensagem conclusiva do Concílio Vaticano II,
também eu dirijo às mulheres este premente convite: « Reconciliai os
homens com a vida ».133 Vós sois chamadas a testemunhar o sentido do
amor autêntico, daquele dom de si e acolhimento do outro, que se
realizam de modo específico na relação conjugal, mas devem ser também
a alma de qualquer outra relação interpessoal. A experiência da
maternidade proporciona-vos uma viva sensibilidade pela outra pessoa e
confere-vos, ao mesmo tempo, uma missão particular: « A maternidade
comporta uma comunhão especial com o mistério da vida, que amadurece no
seio da mulher. (...) Este modo único de contacto com o novo homem que se
está formando, cria, por sua vez, uma atitude tal para com o homem — não
só para com o próprio filho, mas para com o homem em geral — que
caracteriza profundamente toda a personalidade da mulher ».134 Com
efeito, a mãe acolhe e leva dentro de si um outro, proporciona-lhe forma
de crescer no seu seio, dá-lhe espaço, respeitando-o na sua diferença.
Deste modo, a mulher percebe e ensina que as relações humanas são autênticas
quando se abrem ao acolhimento da outra pessoa, reconhecida e amada pela
dignidade que lhe advém do fato mesmo de ser pessoa e não de outros fatores, como a utilidade, a força, a inteligência, a beleza, a saúde.
Este é o contributo fundamental que a Igreja e a humanidade esperam das
mulheres. E é premissa insubstituível para uma autêntica viagem cultural.
Um pensamento especial quereria reservá-lo para vós, mulheres, que
recorrestes ao aborto. A Igreja está a par dos numerosos
condicionalismos que poderiam ter influído sobre a vossa decisão, e não
duvida que, em muitos casos, se tratou de uma decisão difícil, talvez
dramática. Provavelmente a ferida no vosso espírito ainda não está
sarada. Na realidade, aquilo que aconteceu, foi e permanece profundamente
injusto. Mas não vos deixeis cair no desânimo, nem percais a esperança.
Sabei, antes, compreender o que se verificou e interpretai-o em toda a sua
verdade. Se não o fizestes ainda, abri-vos com humildade e confiança ao
arrependimento: o Pai de toda a misericórdia espera-vos para vos oferecer
o seu perdão e a sua paz no sacramento da Reconciliação. Dar-vos-eis
conta de que nada está perdido, e podereis pedir perdão também ao vosso
filho que agora vive no Senhor. Ajudadas pelo conselho e pela
solidariedade de pessoas amigas e competentes, podereis contar-vos, com o
vosso doloroso testemunho, entre os mais eloqüentes defensores do direito
de todos à vida. Através do vosso compromisso a favor da vida, coroado
eventualmente com o nascimento de novos filhos e exercido através do
acolhimento e atenção a quem está mais carecido de solidariedade,
sereis artífices de um novo modo de olhar a vida do homem.
100. Neste grande esforço por uma nova cultura da vida,
somos sustentados e fortalecidos pela confiança de quem sabe que o Evangelho
da vida,
como o Reino de Deus, cresce e dá frutos abundantes (cf. Mc 4,
26-29). Certamente é enorme a desproporção existente entre os meios
numerosos e potentes, de que estão dotadas as forças propulsoras da «
cultura da morte », e os meios de que dispõem os promotores de uma «
cultura da vida e do amor ». Mas nós sabemos que podemos confiar na
ajuda de Deus, para Quem nada é impossível (cf. Mt 19, 26).
Com esta certeza no coração e movido de pungente solicitude pela
sorte de cada homem e mulher, repito hoje a todos aquilo que disse às famílias,
empenhadas em suas difíceis tarefas por entre as ciladas que as ameaçam:
135 é urgente uma grande oração pela vida, que atravesse o mundo
inteiro. Com iniciativas extraordinárias e na oração habitual, de cada
comunidade cristã, de cada grupo ou associação, de cada família e do
coração de cada crente eleve-se uma súplica veemente a Deus, Criador e
amante da vida. O próprio Jesus nos mostrou com o seu exemplo que a oração
e o jejum são as armas principais e mais eficazes contra as forças do
mal (cf. Mt 4, 1-11), e ensinou aos seus discípulos que alguns demônios
só desse modo se expulsam (cf. Mc 9, 29). Então, encontremos
novamente a humildade e a coragem de orar e jejuar, para conseguir
que a força que vem do Alto faça ruir os muros de enganos e mentiras que
escondem, aos olhos de muitos dos nossos irmãos e irmãs, a natureza
perversa de comportamentos e de leis contrárias à vida, e abra os seus
corações a propósitos e desígnios inspirados na civilização da vida
e do amor.
« Escrevemo-vos estas coisas para que a vossa alegria seja completa
» (1 Jo 1, 4): o Evangelho da vida é para bem da cidade
dos homens
101. « Escrevemo-vos estas coisas, para que a vossa alegria seja
completa » (1 Jo 1, 4). A revelação do Evangelho da vida
foi-nos confiada como um bem que há de ser comunicado a todos: para que
todos os homens estejam em comunhão conosco e com a Santíssima Trindade
(cf. 1 Jo 1, 3). Nem nós poderíamos viver em alegria plena, se não
comunicássemos este Evangelho aos outros, mas o guardássemos apenas para
nós.
O Evangelho da vida não é exclusivamente para os crentes:
destina-se a todos. A questão da vida e da sua defesa e promoção não
é prerrogativa unicamente dos cristãos. Mesmo se recebe uma luz e força
extraordinária da fé, aquela pertence a cada consciência humana que
aspira pela verdade e vive atenta e apreensiva pela sorte da humanidade.
Na vida, existe seguramente um valor sagrado e religioso, mas de modo
algum este interpela apenas os crentes: trata-se, com efeito, de um valor
que todo o ser humano pode enxergar, mesmo com a luz da razão, e, por
isso, diz necessariamente respeito a todos.
Por isso, a nossa ação de « povo da vida e pela vida » pede para
ser interpretada de modo justo e acolhida com simpatia. Quando a Igreja
declara que o respeito incondicional do direito à vida de toda a pessoa
inocente — desde a sua concepção até à morte natural — é um dos
pilares sobre o qual assenta toda a sociedade, ela « quer simplesmente promover
um Estado humano. Um Estado que reconheça como seu dever primário a
defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente da mais débil
».136
O Evangelho da vida é para bem da cidade dos homens. atuar
em
favor da vida é contribuir para o renovamento da sociedade, através
da edificação do bem comum. De fato, não é possível construir o bem
comum sem reconhecer e tutelar o direito à vida, sobre o qual se
fundamentam e desenvolvem todos os restantes direitos inalienáveis do ser
humano. Nem pode ter sólidas bases uma sociedade que se contradiz
radicalmente, já que por um lado afirma valores como a dignidade da
pessoa, a justiça e a paz, mas por outro aceita ou tolera as mais
diversas formas de desprezo e violação da vida humana, sobretudo se débil
e marginalizada. Só o respeito da vida pode fundar e garantir bens tão
preciosos e necessários à sociedade como a democracia e a paz.
De fato, não pode haver verdadeira democracia, se não é
reconhecida a dignidade de cada pessoa e não se respeitam os seus
direitos.
Nem pode haver verdadeira paz, se não se defende e promove a
vida, como recordava Paulo VI: « Todo o crime contra a vida é um
atentado contra a paz, especialmente se ele viola os costumes do povo
(...), enquanto nos lugares onde os direitos do homem são realmente
professados e publicamente reconhecidos e defendidos, a paz torna-se a
atmosfera feliz e geradora de convivência social ».137
O « povo da vida » alegra-se de poder partilhar o seu empenho com
muitos outros, de modo que seja cada vez mais numeroso o « povo pela vida
», e a nova cultura do amor e da solidariedade possa crescer para o
verdadeiro bem da cidade dos homens.
CONCLUSÃO
102. Chegados ao termo desta Encíclica, espontaneamente o olhar volta
a fixar-se no Senhor Jesus, o « Menino nascido para nós » (cf. Is 9,
5), a fim de n'Ele contemplar « a Vida » que « se manifestou » (1
Jo 1, 2). No mistério deste nascimento, realiza-se o encontro de Deus
com o homem e tem início o caminho do Filho de Deus sobre a terra,
caminho esse que culminará com o dom da vida na Cruz: com a sua morte,
Ele vencerá a morte e tornar-Se-á para a humanidade princípio de vida
nova.
Quem esteve a acolher « a vida » em nome e proveito de todos, foi
Maria, a Virgem Mãe, a qual, por isso mesmo, mantém laços pessoais
estreitíssimos com o Evangelho da vida. O consentimento de Maria,
na Anunciação, e a sua maternidade situam-se na própria fonte do mistério
daquela vida, que Cristo veio dar aos homens (cf. Jo 10, 10). Através
do acolhimento e carinho que Ela prestou à vida do Verbo feito carne, a
vida do homem foi salva da condenação à morte definitiva e eterna.
Por isso, « como a Igreja, de que é figura, Maria é a Mãe de todos
os que renascem para a vida. Ela é verdadeiramente a Mãe da Vida que faz
viver todos os homens; ao gerar a Vida, gerou de certo modo todos aqueles
que haviam de viver dessa Vida ».138
Ao contemplar a maternidade de Maria, a Igreja descobre o sentido da própria
maternidade e o modo como é chamada a exprimi-la. Ao mesmo tempo, a
experiência materna da Igreja entreabre uma perspectiva mais profunda
para compreender a experiência de Maria, qual modelo incomparável de
acolhimento e cuidado da vida.
« Apareceu um grande sinal no Céu: uma mulher revestida de Sol » (Ap
12, 1): a maternidade de Maria e da Igreja
103. A relação recíproca entre Maria e o mistério da Igreja
manifesta-se claramente no « grande sinal » descrito no Apocalipse: «
Apareceu um grande sinal no céu: uma mulher revestida de Sol, tendo a Lua
debaixo dos seus pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça » (12,
1). Neste sinal, a Igreja reconhece uma imagem do próprio mistério:
apesar de imersa na história, ela está consciente de a transcender,
porquanto constitui na terra « o germe e o princípio » do Reino de
Deus.139 Tal mistério, a Igreja vê-o realizado, de modo pleno e
exemplar, em Maria. É Ela a mulher gloriosa, na qual o desígnio de Deus
se pôde atuar com a máxima perfeição.
Aquela « mulher revestida de Sol » — assinala o Livro do Apocalipse
— « estava grávida » (12, 2). A Igreja está plenamente consciente de
trazer em si o Salvador do mundo, Cristo Senhor, e de ser chamada a dá-Lo
ao mundo, regenerando os homens para a própria vida de Deus. Mas não
pode esquecer que esta sua missão tornou-se possível pela maternidade de
Maria, que concebeu e deu à luz Aquele que é « Deus de Deus », « Deus
verdadeiro de Deus verdadeiro ». Maria é verdadeiramente a Mãe de Deus,
a Theotokos, em cuja maternidade é exaltada, até ao grau supremo,
a vocação à maternidade inscrita por Deus em cada mulher. Assim Maria
apresenta-se como modelo para a Igreja, chamada a ser a « nova Eva », mãe
dos crentes, mãe dos « viventes » (cf. Gn 3, 20).
A maternidade espiritual da Igreja só se realiza — também disto está
ciente a Igreja — no meio das ânsias e « dores de parto » (Ap 12,
2), isto é, em perene tensão com as forças do mal, que continuam a
sulcar o mundo e a dominar o coração dos homens, que opõem resistência
a Cristo: « N'Ele estava a Vida e a Vida era a luz dos homens; a luz
resplandece nas trevas, mas as trevas não a acolheram » (Jo 1,
4-5).
À semelhança da Igreja, também Maria teve de viver a sua maternidade
sob o signo do sofrimento: « Este Menino está aqui (...) para ser sinal
de contradição; uma espada trespassará a tua alma, a fim de se
revelarem os pensamentos de muitos corações » (Lc 2, 34-35). Nas
palavras que Simeão dirige a Maria, já no alvorecer da existência do
Salvador, está sinteticamente representada aquela rejeição de Jesus —
e com Ele a rejeição de Maria —, que culmina no Calvário. « Junto da
cruz de Jesus » (Jo 19, 25), Maria participa no dom que o Filho
faz de Si mesmo: oferece Jesus, dá-O, gera-O definitivamente para nós. O
« sim » do dia da Anunciação amadurece plenamente no dia da Cruz,
quando chega para Maria o tempo de acolher e gerar como filho cada homem
feito discípulo, derramando sobre ele o amor redentor do Filho: « Então
Jesus, ao ver sua mãe e junto dela, o discípulo que Ele amava, Jesus
disse a sua mãe: "Mulher, eis aí o teu filho" » (Jo
19, 26).
« O dragão deteve-se diante da mulher (...) para lhe devorar o
filho que estava para nascer » (Ap 12, 4): a vida ameaçada
pelas forças do mal
104. No Livro do Apocalipse, o « grande sinal » da « mulher » (12,
1) é acompanhado por « outro sinal no céu »: « um grande dragão
vermelho » (12, 3), que representa Satanás, potência pessoal maléfica,
e conjuntamente todas as forças do mal que agem na história e contrariam
a missão da Igreja.
Também nisto, Maria ilumina a Comunidade dos Crentes: de
fato, a
hostilidade das forças do mal é uma obstinada oposição que, antes de
tocar os discípulos de Jesus, se dirige contra a sua Mãe. Para salvar a
vida do Filho daqueles que O temem como se fosse uma perigosa ameaça,
Maria tem de fugir com José e o Menino para o Egito (cf. Mt 2,
13-15).
Assim, Maria ajuda a Igreja a tomar consciência de que a vida está
sempre no centro de uma grande luta entre o bem e o mal, entre a luz e
as trevas. O dragão queria devorar « o filho que estava para nascer » (Ap
12, 4), figura de Cristo, que Maria gera na « plenitude dos tempos »
(Gal 4, 4) e que a Igreja deve continuamente oferecer aos homens
nas sucessivas épocas da história. Mas é também, de algum modo, figura
de cada homem, de cada criança, sobretudo de cada criatura débil e ameaçada,
porque — como recorda o Concílio — « pela sua encarnação, Ele, o
Filho de Deus, uniu-Se de certo modo a cada homem ».140 Precisamente na
« carne » de cada homem, Cristo continua a revelar-Se e a entrar em
comunhão conosco, pelo que a rejeição da vida do homem, nas
suas diversas formas, é realmente rejeição de Cristo. Esta é a
verdade fascinante mas exigente, que Cristo nos manifesta e que a sua
Igreja incansavelmente propõe: « Quem receber um menino como este, em
meu nome, é a Mim que recebe » (Mt 18, 5); « Em verdade vos
digo: Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a
Mim mesmo o fizestes » (Mt 25, 40).
« Não mais haverá morte » (Ap 21, 4): o esplendor
da ressurreição
105. A anunciação do anjo a Maria está inserida no meio destas
expressões tranqüilizadoras: « Não tenhas receio, Maria » e « Nada é
impossível a Deus » (Lc 1, 30.37). Na verdade, toda a existência
da Virgem Mãe está envolvida pela certeza de que Deus está com Ela e A
acompanha com a sua benevolência providente. O mesmo se passa também com
a existência da Igreja que encontra « um refúgio » (cf. Ap 12,
6) no deserto, lugar da provação mas também da manifestação do amor
de Deus pelo seu povo (cf. Os 2, 16). Maria é uma mensagem de viva
consolação para a Igreja na sua luta contra a morte. Ao mostrar-nos o
seu Filho, assegura-nos que n'Ele as forças da morte já foram vencidas:
« Morte e vida combateram, mas o Príncipe da vida reina vivo após a
morte ».141
O Cordeiro imolado vive com os sinais da paixão, no esplendor
da ressurreição. Só Ele domina todos os acontecimentos da história:
abre os seus « selos » (cf. Ap 5, 1-10) e consolida, no tempo e
para além dele, o poder da vida sobre a morte. Na « nova Jerusalém
», ou seja, no mundo novo para o qual tende a história dos homens, «
não mais haverá morte, nem pranto, nem gritos, nem dor, por que as
primeiras coisas passaram » (Ap 21, 4).
Como povo peregrino, povo da vida e pela vida, enquanto caminhamos
confiantes para « um novo céu e uma nova terra » (Ap 21, 1),
voltamos o olhar para Aquela que é para nós « sinal de esperança
segura e consolação ».142
Ó Maria,
aurora do mundo novo,
Mãe dos viventes,
confiamo-Vos a causa da vida:
olhai, Mãe,
para o número sem fim
de crianças a quem é impedido nascer,
de pobres para quem se torna difícil viver,
de homens e mulheres
vítimas de inumana violência,
de idosos e doentes assassinados
pela indiferença
ou por uma presunta compaixão.
Fazei com que todos aqueles que crêem
no vosso Filho
saibam anunciar com desassombro e amor
aos homens do nosso tempo
o Evangelho da vida.
Alcançai-lhes a graça de o acolher
como um dom sempre novo,
a alegria de o celebrar com gratidão
em toda a sua existência,
e a coragem para o testemunhar
com laboriosa tenacidade,
para construírem,
juntamente com todos os homens
de boa vontade,
a civilização da verdade e do amor,
para louvor e glória de Deus Criador
e amante da vida.
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 25 de Março, solenidade da
Anunciação do Senhor, do ano 1995, décimo sétimo de Pontificado.