Textos

 

Aposentadoria

(ao grande companheiro Jadson)

- Tem conserto?

- Claro, coisa simples, besteira. E você, aposentado mesmo?

- Sim, já estava aposentado, continuei trabalhando de teimoso. Quero finalmente parar e fazer o que der na cabeça. Jovem era duro, velho sem tempo.

- E está se sentindo aposentado para valer?

- Bem, por enquanto tranqüilo, meu medo é enjoar. Mas estou aprendendo espanhol e quero ir a Cuba.

- Cuba? Por que, Cuba?

- Companheiro, lá sempre foi o marco das idéias que acreditávamos. Sempre quis conhecer, prometi que faria isso um dia.

- Lá as pessoas mal têm o que comer, andam em carros velhos e batem continência para Fidel.

- Não é bem assim, mas de qualquer forma quero ver com meus olhos.

- Você vai ficar na parte dos turistas? Se for, dizem que é ótimo, tem uns bares legais.

- Que é isso, moço? Vou para conhecer o povo, saber o que pensam e fazem, participar um pouco da história deles. Tenho pesquisado bastante na Internet, inclusive tenho e-mail agora. Consigo até ligar o micro sozinho.

- Esse micro?

- Sim, aí quando começou a ficar estranho parei de mexer. Tem sempre um eleito para culpado.

- A barriga encolheu?

- Sim.

- O que houve?

- Meu carro.

- Roubaram?

- Não, vendi e agora ando de ônibus. Quanto comecei a emagrecer pensei que estava com câncer. Mas era esse esforço extra que passei a fazer.

- Depois de velho está andando de ônibus?

- Claro, moço, não me prendo a isso, na verdade meu primeiro carro zero foi só depois de velho.

- Andar de ônibus é um martírio, principalmente com esses bandidos por aí. Não tem medo de assaltos?

- Já aprendi, levo o dinheiro em vários bolsos, e sempre pouco, no máximo 6 reais, e com gente mais velha eles pegam leve.

- Conhece todas as linhas agora, não é?

- Claro, até porque não costumo ir longe. Quando mais distante, a Companheira me leva. Aproveito e faço exercício. E o principal é aqui na frente, o bar do Davi.

- Está se dando bem com esse novo estilo?

- É, sabe, tem algumas coisas boas com a aposentadoria, como fila de banco, eu não sei mais o que é isso, nem em supermercado, e o pessoal costuma tratar a gente melhor.

- E em ônibus?

- Aí ainda faltam 3 anos, só com 65, mas estou na expectativa, aí poderei entrar pela porta da frente.

- Nos bancos pedem identidade para verificar idade?

- Não, mas quando pedem nos ganhamos o dia. Um causo ocorreu semana passada. Um senhor furou a fila dos idosos. Disse que serviu na guerra, que sempre passava na frente porque era ex-combatente e que a Constituição dizia que ele poderia fazer isso.

- E o que fez?

- Ele era bem idoso, mais de 80, deixei passar, depois era sério o que dizia.

- Quer dizer que até na fila dos idosos tem ordem por idade?

- Mais ou menos, na dúvida, sou o calouro, mas as filas são pequenas.

- Será que em Cuba tem fila dos velhos?

- Não sei, boa pergunta.

- Meu plano de aposentadoria é ter minha casa, meu carro, nunca precisar andar de ônibus, viajar para lugares confortáveis e com boa comida e me adaptar com uma barriga inevitável e arredia, cercado de pessoas que não me façam ir a bancos. Mas você é justamente o contrário de tudo isso, nem barrigudo está conseguindo se manter.

- Ô Companheiro, talvez eu não tenha chegado à velhice que está falando. Ainda tenho muitos verões para me esconder do sol.

- Ou então, com toda essa energia que possui e pegando ônibus, você passou direto do ponto em que começamos a ter medo da idade, e por esse temor, começamos a nos sentir frustrados e “velhos”.

- Talvez seja, afinal eu ainda não decorei todos os pontos de ônibus.

- Era exatamente sobre isso que eu estava falando!

Hélio Leal

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