Relhas de Arado
Como é um eletrodoméstico que ocupa boa parte dos lares brasileiros,mesmo
os mais longinquos e paupérrimos, a TV de uma forma ou de outra sempre é
encaixada em alguma conversa, seja com amigos, conhecidos ou até aquele vizinho chato, que a gente mantém uma linha mínima de conversação em
defesa da boa vizinhança e, claro, pensando no seu possível apoio na próxima
pauta da reunião condominial.
Assim, quando a televisão passa a ser o foco da conversa, a pergunta inevitável surge: "Você
costuma assistir ao quê?" Sou categórico na resposta que meus interesses televisivos
restringuem-se a jornais e jogos. Claro que isso não é inflexível, afinal nem sempre quando desejamos assistir TV está passando um desses gêneros, e somos conduzidos a
engolir certos programas que em geral condenamos nas rodas de amigos, principalmente quando o possuidor do controle é alguém com maior
força, como sua mãe ou mulher.
Sobre os inúmeros jornais que assisto, fico catando de canal em canal, e quando dois estão passando simultaneamente, fico em um vai e vem
interminável, o que causa um certo desconforto e protesto em relação a quem
teve o azar de assistir TV comigo.
Mas há um assunto que está tomando espaço quase que diário dos
noticiários: o desarmamento.
Como sabem, o governo federal está tentando resolver o problema das armas
nas mãos da população civil, e os jornais apresentam esse ítem no seu cardápio de manchetes como se fosse seu prato principal, ainda que o
diferencial informado de um dia para outro seja uma coisa bem simples, como
se dissesse que trocou a marca do sal utilizado no preparo do prato.
Meu pai tem uma arma, bem antiga, daquelas que cheiram mais a ferrugem do que pólvora. Anos atrás descobri que tínhamos essa peça bélica em
casa. Da minha parte foi uma surpresa, fora aqueles revólveres de espoleta que temos
quando pequenos, e que são perfeitos para fazer qualquer pessoa morrer de
raiva com o barulho do tiro, jamais pegara em uma arma de verdade.
Os anos passaram e essa arma foi esquecida, até que o Governo começou esse
programa de desarmamento remuneratório. Minha estimada mãe, querendo se livrar de um problema, visando o social e por acaso o valor pago pela
sua entrega, incumbiu-me de patrocinar a desova do pequeno revólver no posto
policial.
Contudo, os estimulantes compromissos do dia-a-dia patrocinaram a ociosidade da minha parte no cumprimento dessa missão, e, como de
costume, serviram como combustível aos protestos da minha mãe, e tentando minimizá-los, decidi ir à frente e realizar minha função de filho.
Perguntei, como quem quisesse nada, o que seria feito do valor
obtivo, e minha mãe comentou que estava trocando de óculos, e que o novo lhe custara suas últimas economias. Dei a idéia de que fosse usado o valor pago
no sentido de custear parte das lentes de correção visual. Pelo seu sorriso,
até as broncas foram interrompidas.
Enquanto atravessava a cidade de um extremo a outro, visto que Polícia Federal consegue
localizar-se no canto mais recôndito possível, pensava no dia em que passara na frente das Nações Unidas, e vislumbrei a enorme
escultura de bronze com os dizeres tirados da Bíblia, que rezavam que Deus
transformaria as armas em relhas de arado.
Claro que, simultaneamente, pensava que se um ladrão decidisse me
assaltar no caminho da entrega da arma, ele que seria o transformador, do meu dia de broncas e queixas maternas, em explicações angustiadas na delegacia
sobre uma arma roubada.
Mas pensava que de fato era mais ou menos o que dizia esse trecho das escrituras o que minha pessoa estava fazendo, estaria transformando a
arma em relhas de arado, claro que não literais, mas de qualquer forma,minha querida mãe usaria seus novos óculos no seu ofício, assim esses
seriam os arados modernos.
Finalmente percebia como as coisas podem mudar drasticamente, e que muitas
outras relhas de arado poderiam ser forjadas pela atitude do governo.
Já escondido no frio do meu quarto, após cumprir espinhosa missão, encontro
minha mãe pestanejando os óculos novos, e com a pergunta mais do que óbvia.
"Meu filho, deu tudo certo? Você levou a arma?"
E em um dos raros momentos poéticos, respondi, olhando profundamente em seus olhos protegidos pelas lentes novas:
"Mãe, transformei-a em relhas de arado"
Abracei-a e voltei ao meu gélido dormitório, enquanto ouvia uma voz ansiosa
em segundo plano:
"Relhas de Arado... era só o que faltava"
Hélio Leal