FRICOTES 

 

Ana Maria Medeiros da Costa

 

            É muito impressionante como Pedro Almodóvar consegue interpretar um certo espírito contemporâneo - completamente imerso nele, de dentro dele - a tal ponto que nos confundimos na sua ficção. É o caso de seu último filme, “Tudo sobre minha mãe”, que como último, é sempre o melhor. Tenho dito que ou Almodóvar está se tornando sério, ou estamos nos tornando cada vez mais almodovarianos. Em seus primeiros filmes parecia mais evidente o efeito de non sense e ironia. Nos atuais, esse mesmo non sense não nos surpreende e, ao contrário, nos faz chorar. Parece-nos completamente verossímil que uma mulher vá encontrar no estrangeiro seu marido transformado num travesti (nada menos que um ex-macho portenho), que ainda assim engravide dele, que esse mesmo travesti também engravide outra mulher, que por sinal é uma freira, que além disso pega AIDS, que tem um pai imbecilizado, cujo cachorro é mais inteligente, e por aí vai. Em nenhum momento isso nos soa como contra-senso, ou dramalhão, e as tiradas que produzem humor são mais raras. E por quê isso? Tenho a impressão que Almodóvar é um de nossos melhores intérpretes da histeria atual, ou seja, daquilo pelo que se representa a mulher insatisfeita. Bem entendido, não é sempre do lado das mulheres que isso se representa. Tentarei apresentar algumas idéias que me ocorreram ao assistir “Tudo sobre minha mãe”, que me fizeram pensar num certo desdobramento da histeria no tempo.

            O filme trata de uma mulher que perde seu único filho, e resolve sair em busca do pai dele (que nunca soube que tivera um filho). A circunstância onde o filho morre é por um atropelamento, em função de ter querido ir atrás de uma atriz para pedir autógrafo. É aqui onde se cruzam os tempos. A atriz encenava Blanche, a histérica de “Um bonde chamado desejo”, peça teatral que passou ao cinema (anos 50), trazendo sucesso ao então jovem Marlon Brando e a Vivian Leigh. Duas coisas, que no filme são apresentadas como acessórias, chamaram-me a atenção: a encenação da peça e a encenação do pedido de doação de órgãos. Sobre esta última, já é o terceiro filme do autor onde isso aparece. Poder-se-ia pensar numa simples tomada de posição dele em relação ao assunto, no entanto, não será que adquire certa relevância dentro do tema desenvolvido? O órgão, ali, tem um contexto muito particular.

            Pois bem, para resumir a história, Manuela (a mãe), de atriz passa a sujeito – de trabalhar na encenação da mãe consultada sobre a doação de órgãos, passa a precisar decidir pela doação de órgãos de seu filho morto. Depois disso, ela escolhe ir atrás do pai dele, por ter excluído a fala sobre o pai da vida de seu filho – queixa que ela lê no diário dele. Em Barcelona – cidade onde morou com o marido transformado em travesti - encontra apoio em Amparo (outro travesti). Toma dois caminhos de doação pessoal: cuidar de Rosa, a freira grávida de seu ex-marido, e trabalhar para Huma, a atriz da peça “Um bonde chamado desejo”, último traço do olhar do filho.               

            Esse é apenas um dos resumos da história (quem conta, já interpreta), onde acontecem muitas tiradas preciosas, pérolas de ironias que vão no ponto. Numa delas, Amparo ao mencionar todo silicone e plásticas que lhe modelaram o corpo, diz mais ou menos o seguinte: só somos mulheres quanto mais próximas chegamos do que sonhamos ser; no que transforma o “ser” corporal em ficção. Outra, é o fato de a mãe de Rosa (a freira aidética) ser falsária de pinturas, de obras de arte famosas. Assim, falso e real se encontram de uma forma muito peculiar.   

            Sabemos que (pelo menos para a psicanálise) a histeria começou bastante centrada na representação do órgão, e a conversão era sua expressão característica. É assim que o aspecto “representação” se confunde com encenação e falsidade. O “falso” órgão (que põe em causa um “falso” saber) sempre foi objeto de disputa entre as histéricas (preponderantemente mulheres) e os médicos. Para dizer rapidamente, esse “falso” aparece tributário de uma falha na representação do sexo feminino, reivindicação constantemente dirigida ao pai. Assim que, no fim das contas, esse “falso” também está colocado nos homens, enquanto encarnam uma falha paterna. A clássica mulher insatisfeita tematiza uma posição de reivindicação, na histeria, de um homem “de verdade”, que lhe dê um órgão “real”. A histeria clássica confunde mulher insatisfeita e infantilismo, na reivindicação de receber algo, de que algo lhe é devido.

            Parece-me que o pano de fundo do filme é o desdobramento geracional da representação dessa mulher insatisfeita. Nesse ponto, “Um bonde chamado desejo” – a peça dentro do filme – tem relevância. Relembrando a  história da peça[1], Stela e seu marido (uma espécie de macho brutalizado) recebem a irmã dela – Blanche – em sua casa de subúrbio. A personagem de Blanche é fantástica: é a clássica histérica que representa a fantasia de A mulher. Ela se alimenta do engano e da fantasia, da encarnação forçada da fragilidade, tão esvoaçante e etérea como seus vestidos. Entra em rota de choque com o marido da irmã, que encarna a fantasia do homem de “verdade” (encenação forçada do grande macho viril, que bate na mulher). Assim, os dois excessos – o grande macho e A mulher – aparecem como verso e reverso de uma mesma questão. No meio, Stela, aquela que ama os dois e os aceita nos seus limites.      

            Se supusermos uma espécie de continuidade no tempo entre “Um bonde chamado desejo” e “Tudo sobre minha mãe”, poderemos considerar Manuela como uma Stela contemporânea[2]. Ela parece essa testemunha da vida, tal qual ela se mostra, escolhendo simplesmente amar, e não “ser” ou “fazer” isto ou aquilo. Nesse sentido, ela é sempre levada, de um lugar a outro, pelos laços que faz. E Blanche, onde estará? Certamente em Huma[3], que por sinal é lésbica (outra brincadeira do autor, até bem freudiana), mas muito particularmente em Esteban/Lola, o ex-marido travesti. É no travestismo que se representa a fantasia de mulher que as Blanches encarnavam.

            Pode-se dizer que o tema de Almodóvar é sempre o mesmo e sua genialidade também está em apresenta-lo, a cada vez, por primeira vez. Ele parece fascinado pela fantasia de mulher e, muito mais, pela mulher como fantasia. Ela também surge signatária da fantasia do macho, a quem ele não poupa. Nesse sentido, no seu primeiro filme a fazer sucesso entre nós (“Mulheres a beira de um ataque de nervos”), é onde isso melhor se mostra. A mulher como fantasia está na preocupação excessiva com as vestes e também na teatralidade[4] da insatisfação. A personagem de “Mulheres...” está no fundo do poço porque foi abandonada grávida. Ela desmaia, chora desesperada, tenta suicídio, mas nunca descuida do visual: troca de roupa a cada cinco minutos, para cada pessoa que chega, a cada ocasião de saída, sempre lembrando dos adereços, é claro (brincos, maquiagem e de fazer as combinações corretas). O macho como fantasia está nesse personagem narcisista, que tem uma palavra de conquista para cada mulher, clichê do microfone para uma platéia particular (cena inicial de “Mulheres...”).

            Mesmo que para o autor o foco sejam as mulheres, o que ele tematiza é a identidade sexual como fantasia. “Fantasia”, aqui, não é uma denúncia: não é uma acusação de que ali se encarna algo falso, cuja essência estaria em outro lugar. O que se pode interpretar de seus filmes é que a aparência é a própria essência da identidade: não há nada que se sustente “por trás”, ou mais profundo: nem natureza corpórea, nem uma suposta transcendência abstrata.

            É diferente da peça de T. Williams, cuja homenagem ele presta. Em “Um bonde chamado desejo” as personagens de Blanche e Stanley (o grande “macho”) aparecem como restos caricatos de uma herança dilapidada: nada menos que a derrocada do patriarcalismo sulista dos EUA. Williams deixa entrever uma crítica ao patriarcalismo como promotor das caricaturas de homem e mulher (ou seja, como produtor de ilusões, de fantasias, logo, de histerias). Assim, as “fantasias” de homem e mulher (que termina, como ápice, na internação de Blanche louca) são responsáveis pela alienação e miséria subjetiva das personagens. Resta para Stela – a que não se engana porque não quer saber – o consolo de ter um filho.

            Pois bem, talvez pudéssemos dizer que, com o desdobramento, no tempo, da mulher insatisfeita, Manuela/Stela perdeu o filho, junto com o que a fantasia representava de ilusão. Se com Almodóvar a fantasia pode mostrar o que é – uma face, uma veste, um significante, um recorte do real – nem por isso perde seus efeitos de leveza ou crueldade (seja como chiste, seja como supereu), na função de mediadora das relações. Talvez o que se acentue ali seja um maior reconhecimento da solidão que o abandono da ilusão provoca. É nessa medida que ilusão não se confunde necessariamente com fantasia, pois é desta última que adquirimos a possibilidade de representar.   

 

 NOTAS


[1] A peça foi escrita por Tennessee Williams.

[2] Por sinal, parece ser isso que o autor sugere, quando Manuela substitui a atriz que fazia Stela, por saber “seu papel de cor”.

[3] Tem uma brincadeira do autor com o nome da atriz, que ela mesma revela: é alusivo a fumaça, ao que se desmancha no ar, último traço da vaporosa Blanche original.

[4] As mulheres almodovarianas sempre trazem a função de fabricação de fantasias: atrizes, apresentadoras de TV, escritoras...


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