RETORNO DA CONJUGALIDADE SOBRE A SUBJETIVIDADE DOS PARCEIROS: UMA QUESTÃO PARA A CLÍNICA PSICANALÍTICA DO CASAL
Neste estudo desenvolvemos uma investigação acerca das
influências da conjugalidade sobre a subjetividade dos parceiros, fundamentada na
literatura psicanalítica sobre as relações amorosas. O processo de formação da
conjugalidade, a partir das interpenetrações subjetivas, é freqüentemente discutido. Contudo, o retorno
da conjugalidade sobre as subjetividades dos parceiros é raramente abordado.
Consideramos muito importante, para a clínica do casal, a discussão dessa
questão.
O processo de instauração da conjugalidade é
geralmente discutido a partir da reatualização da trajetória edípica dos parceiros
e do compromisso inconsciente que sustenta a escolha amorosa. Freud[3],
em “Sobre o narcisismo: uma introdução”, postula que existem dois tipos básicos
de escolha amorosa: a escolha anaclítica, baseada na busca de apoio mútuo, o
parceiro representa o pai ou a mãe da infância; e a escolha narcisista, baseada
na própria imagem do sujeito, guardando estreita relação com o que o sujeito é,
foi, gostaria de ser ou mesmo parte de si próprio.
A
conjugalidade é um amor revivido, acalentado pela esperança de elaboração do
romance familiar. Eiguer[4]
acentua a reedição, a redescoberta do amor infantil e o valor de restituição
simbólica que é atribuído ao encontro amoroso. Este amor possível, que busca
conciliar desejo, angústia de castração e identificação é considerado
equivalente às formações de compromisso inconscientes.
A dimensão da conjugalidade é referida à vivência
compartilhada do casal considerando a relativa continuidade e estabilidade do
vínculo conjugal. Tal dimensão fundamenta-se e estrutura-se na identidade
conjugal, forjada na trama identificatória dos parceiros, que vivenciam uma
relação intensa, baseada em laços afetivos e na noção de complementaridade.
Nessa identidade estão presentes tanto aspectos inconscientes - motivações,
desejos e
fantasias - quanto aspectos conscientes referidos
principalmente ao projeto de vida do casal.
Os estudos sobre a conjugalidade ressaltam a estrutura
que se forma a partir das constituições individuais dos parceiros e do
interjogo dinâmico inconsciente que ocorre no par conjugal. Contudo,
consideramos que o encontro amoroso e a conjugalidade que evolui desse
encontro, através da recordação, da repetição e da elaboração dos Édipos dos
parceiros, exerce influências estruturantes ou desestruturantes para cada um
deles. A vivência da conjugalidade e o interjogo de identificações mobilizado
no enquadre conjugal, produzem efeitos sobre a constituição da subjetividade,
num processo dinâmico que se desenvolve por toda a vida.
Lemaire[5]
questiona a noção de sujeito associada à idéia de indivíduo plenamente
constituído. As construções metapsicológicas são fundamentadas na concepção de
indivíduo autônomo da sociedade moderna ocidental. Em decorrência disso,
pressupõe-se que ao referir-se a um casal, esteja-se tratando de sujeitos
“ideais”, cujos aspectos infantis foram satisfatoriamente elaborados. Essa
pressuposição fundamenta-se no ideário individualista que concebe os indivíduos
como seres autônomos, independentes e auto-suficientes, que se unem por desejo
próprio e pelo bem do interesse social.
Nosso interesse em desenvolver a presente investigação
surgiu na clínica com casais que permanentemente nos provoca o questionamento
acerca dos limites do “eu” dentro do “nós conjugal” e dos pontos de convergência
entre os processos de individuação dos parceiros e a complexificação do vínculo
conjugal.
O “eu” surge a partir de um “nós” primitivo, ilusão de
fusão, reminiscência da simbiose mãe-bebê, e ressurge de forma transmutada na
relação conjugal. Na conjugalidade, nos deparamos com o enquadre privilegiado
para a reatualização desses conflitos primitivos. E, na terapia de casal, mais
especificamente, as questões relativas ao processo de separação-individuação
são evidenciadas com algumas nuances características do vínculo conjugal.
A conjugalidade produz efeitos individuais nos
parceiros, que se deparam com a oportunidade de elaborar alguns conflitos de
forma produtiva, criativa, ou permanecer repetindo sintomaticamente aspectos
patológicos na relação conjugal. Na clínica com casais, nos deparamos com as
conjunções sintomáticas que são estabelecidas e os seus desdobramentos
individuais. Ademais, temos a possibilidade privilegiada de instrumentalizar
recursos do setting terapêutico, contribuindo para que elas sejam
ressignificadas, promovendo o processo de individuação dos parceiros.
Identificação e o papel dos ideais
O jogo identificatório, ativado permanentemente na
relação conjugal, fornece o enquadre propício para gerar elaborações e
restruturações nas subjetividades envolvidas. Na literatura psicanalítica das
relações amorosas,prevalece a idéia de que a conjugalidade, desde sua fundação,
o momento da escolha amorosa, estrutura-se sobre o processo identificatório,
que reatualiza vivências pré-edípicas e edípicas. Esse processo identificatório
não se limita a uma reprodução da cena edípica, no sentido de uma imitação
estéril. Ao contrário, o enquadre conjugal apresenta-se como terreno fértil,
pleno de possibilidades de novas configurações subjetivas.
Em nosso estudo, consideramos a trama estruturante que
se produz no jogo identificatório mobilizado na relação amorosa e o papel de
sustentação dos ideais de cada parceiro nesse processo. Pensamos que, na
conjugalidade, o ideal do ego e o ego dos parceiros articulam-se de tal forma,
na trama identificatória, que são propiciadas reestruturações subjetivas em
cada um dos cônjuges. É a objetivação da relação entre ego e ideal do ego,
encenada pelos parceiros, que apresenta valor estruturante, devido ao alto grau
de investimento libidinal colocado em ação.
A compreensão do papel dos ideais, na trama
identificatória, torna-se fundamental em nosso estudo devido à representação
metafórica que encarna, a luta entre o narcisismo primário e a necessidade
humana de diferenciar-se e emergir como sujeito. Esse movimento desenvolve-se
durante toda a vida, buscando preencher o intervalo existente entre o ego e o
ideal do ego. A busca do preenchimento desse intervalo constitui o movimento de
tornar-se sujeito. E é a participação da conjugalidade nesse processo que
buscamos analisar em nossa pesquisa.
Em “Psicologia das Massas e Análise do Ego”[6],
Freud enuncia três modalidades de identificação. A primeira diz respeito à
forma originária do laço afetivo com o objeto; é a identificação primária,
canibalesca, pré-edipiana, que coloca em pauta a noção de incorporação, mais
tarde tão bem explorada pelos teóricos das relações objetais. A segunda
refere-se à identificação como substituto regressivo da escolha de objeto
abandonada. A terceira modalidade caracteriza-se por um elemento comum tomado
do outro. Esse elemento, mediante a operação de deslocamento, aparecerá em
outro ponto, sem que haja investimento sexual direto. Essas três modalidades
podem figurar de forma mesclada no jogo identificatório da conjugalidade,
resultando ora num processo enriquecedor das subjetividades em pauta, ora
empobrecedor, ou até patológico, nos casos em que o objeto é colocado no lugar
do ego do sujeito.
Florence[7]
analisa os diferentes tipos de identificação, propostos na obra freudiana,
tecendo algumas considerações elucidativas para a nossa discussão. Considera-se
que a identificação narcísica é a mais primitiva e importante, na medida em que
produz a constituição do eu em suas clivagens. A identificação melancólica
produz um retorno aos aspectos mais arcaicos da ambivalência, clivando o eu em
uma parte sádica, que se identifica com o objeto, e uma parte perseguida pela
fantasia do objeto. A identificação melancólica é considerada uma forma fracassada
do que o autor chamou identificação totêmica ou simbólica. Esse tipo de
identificação pressupõe uma escolha objetal de tipo narcísica na inauguração da
relação. A identificação histérica segue a lógica da identificação onírica,
expressa o desejo sexual recalcado, representado de forma regressiva através
das cenas do sonho e do sintoma.
Podemos traçar um paralelo entre o fenômeno totêmico e
a conjugalidade, considerando que ambos estruturam-se mediante a identificação.
Ressaltamos que a conjugalidade, enquanto vínculo emocional estável que busca
conciliar a corrente sensual e os impulsos desviados da finalidade sexual
propriamente dita, estrutura-se sob a lei do pai, sob os efeitos do
recalcamento, e opera na aquisição da identidade. A conjugalidade insere o
sujeito num sistema de trocas e numa genealogia. Através do nome, o sujeito se
prontifica a constituir e a ser constituído pela família. O processo
identificatório que ocorre na conjugalidade, dessa forma, também constitui-se
como um dos acessos à individualização e à socialização.
Florence considera a identificação totêmica ou
simbólica uma operação resolutiva, na medida em que opera o luto do objeto
edipiano, com a renúncia a uma relação pulsional ambivalente. Ressalta-se,
ainda, que é o ideal (traço paterno) que substitui o objeto da ambivalência,
viabilizando a identificação dos sujeitos entre si.
Consideramos que, na conjugalidade, os ideais operam
também nesse sentido, fortalecendo o vínculo emocional conjugal, projetando os
sujeitos numa perspectiva diacrônica e favorecendo a elaboração da relação
ambivalente. Esse processo provoca a mutação subjetiva, através do movimento de
ilusão-desilusão-recriação.
Florence
ressalta ainda a multiplicidade evocada no processo identificatório,
utilizando sempre o plural - identificações - enfatizando uma referência ao
conjunto de relações entre personagens que é mobilizado nesse fenômeno. Esse
conjunto identificatório remete ao romance edipiano. A identificação refere-se
sempre a um romance, onde tomam parte desejos contraditórios, ambivalentes,
bissexuais, ativos e passivos. As identificações fundamentam-se em processos
primários, inconscientes e utilizam-se de personagens, “pessoas”. Esses
personagens encenam a representação pulsional. A partir dessa compreensão,
ampliamos nosso olhar, sobre o jogo identificatório constituinte da
conjugalidade. Consideramos que os parceiros representam personagens múltiplos
da cena inconsciente e se servem um do outro, num “faz de conta” fortemente
ancorado na realidade, em projetos compartilhados e conscientes.
Clínica psicanalítica de casal
Diversos desenvolvimentos teóricos da psicanálise vêm
enriquecendo a clínica psicanalítica do casal, que, do nosso ponto de vista,
justifica-se sobretudo a partir da concepção de que a conjugalidade exerce uma
importante influência sobre a subjetividade dos parceiros.
Dentre as contribuições significativas formuladas
pelos teóricos das relações objetais referentes à discussão sobre o retorno da
conjugalidade sobre a subjetividades dos cônjuges, ressalta-se o conceito de
transicionalidade. Winnicott[8]
desenvolve a noção de um objeto que se produz numa “realidade compartilhada”
que pressupõe a existência de uma terceira área do psiquismo, que inclui
realidade interna e externa. A transicionalidade é um fenômeno essencial para a
atividade de ilusão-desilusão, para a progressiva aceitação da realidade
externa, discriminação entre self e não-self, e para o desenvolvimento da
criatividade. O sujeito só opera a individuação a partir de uma experiência de
dependência prévia, onde foi possível contar com o outro sem se perder nele.
Consideramos que essa maleabilidade na estruturação do
self, essa porosidade de limites do “eu”, experimentada na
transicionalidade, possibilita a reestruturação da subjetividade em qualquer
tempo. Na conjugalidade, de forma privilegiada, essa oscilação entre
dependência-independência, diferenciação-indiferenciação, é favorecida. Isso
ocorre na medida em que o objeto amoroso não é realidade nem fantasia,
constitui-se na transicionalidade.
Em nossa investigação, ressaltamos o valor da
transicionalidade na estruturação da conjugalidade, na ativação do processo
ilusão-desilusão, considerando esse fenômeno um fator determinante na dialética
constitutiva conjugalidade-subjetividade. Na transicionalidade, o casal se
interpenetra, se indiscriminando e se discriminando, sendo “eu”, “não-eu”,
“nós”, “não-nós”, “dentro-de-nós”, “fora-de-nós”, “dentro-do-outro,
fora-do-outro.”
Colman[9]
observa que, quando a conjugalidade falha em sua função de continente
psicológico e propiciadora de desenvolvimento dos parceiros, o enquadre
terapêutico conjugal pode oferecer uma possibilidade de elaboração e
continente, visando restabelecer o potencial terapêutico inerente à relação
conjugal.
Benghozi(1996)[10]
se refere ao pacto de aliança conjugal como uma forma de malha afiliativa
entrecruzando e remalhando os continentes genealógicos das famílias de origem
de cada parceiro. O trabalho clínico com o casal e a família não é, para ele,
apenas terapêutico e não diz respeito apenas às pessoas presentes. Ele é
igualmente preventivo da repetição sobre as gerações seguintes.
O regime econômico, que opera o psiquismo familiar e a
conjugalidade, é baseado no princípio da homeostase, tal como enunciado por
Freud. Ruffiot[11] ressalta
que a dinâmica conjugal fundamenta-se numa troca reguladora de energia
psíquica. Na conjugalidade, instaura-se um psiquismo diádico que realimenta os
psiquismos dos parceiros, em suas formas individualizadas. A partir dessa
idéia, podemos pensar uma conjugalidade que retorna sobre os sujeitos
envolvidos, num movimento dialético e recíproco, estruturante.
O “eu conjugal” constitui-se como um sistema com
funcionamento autônomo e, assim como o “aparelho psíquico grupal” teorizado por
Kaës[12],
apresenta situações de conflito ou crises que se referem a uma dinâmica
inconsciente compartilhada e não exclusivamente a incompatibilidades na
adaptação de duas personalidades diferentes.
Essa concepção de conjugalidade traz efeitos para a
clínica do casal. Eiguer[13]
indica, como objetivos da terapia conjugal, a busca do restabelecimento da
circulação fantasmática e a construção de um novo equilíbrio entre vínculos
objetais e narcisistas, reduzindo-se as identificações projetivas. O papel do
terapeuta é, semelhante à “função alfa”[14]
da relação mãe-bebê, oferecer continente e discriminar afetos e pensamentos do
casal, garantindo o enquadre e viabilizando a discriminação e individuação
desses sujeitos.
A proposta clínica de Eiguer fundamenta-se, dessa
maneira, na idéia por nós compartilhada, de que a restauração da circulação
fantasmática na conjugalidade, além de restituir a cada parceiro o que fora
depositado no outro, pode viabilizar a utilização do potencial de elaboração
inerente à relação amorosa, operando mudanças nas subjetividades dos cônjuges.
Segundo Lemaire[15],
a conjugalidade constitui-se baseada em aspectos arcaicos, partes psicóticas,
de cada parceiro, que se mantêm sob controle ou são canalizadas através das
relações amorosas. Quando surge alguma ameaça de ruptura do vínculo conjugal,
os parceiros se defrontam com o aparecimento do material que se mantinha
recalcado, provocando simultaneamente um movimento de recuperação regressiva e
a perspectiva de reestruturação de cada um.
De acordo com essa perspectiva, alguns sujeitos
vivenciam na conjugalidade aspectos regressivos, focalizando-os na relação e
viabilizando maior autonomia nos outros campos de sua vida, em especial na
sociabilidade. A conjugalidade circunscreve, por vezes, certos distúrbios de
personalidade, mantendo alguns aspectos patológicos sob controle.
Na relação amorosa e na clínica conjugal, observamos
que as trocas mútuas evidenciam que os sujeitos apresentam limites mutáveis,
não existindo integridade ou unidade absoluta. As identificações em jogo são
tão intensas que, por vezes, os sujeitos tendem a se equivocar em relação a si
próprios. A idéia central é a de que a constituição da conjugalidade ocorre em
torno de zonas mal definidas do “si” (soi), senão do próprio “eu “ (moi).
Quando Lemaire refere-se ao “si”, ressalta o aspecto do movimento de
estruturação e organização contínuo, permanente, o desembaraçamento da magma
simbiótica e da matriz psico-cultural, a partir do qual o sujeito
diferencia-se. Nesse processo oscilante, indiferenciação e diferenciação, o
sujeito mostra-se mais atraído por um ou outro parceiro de acordo com áreas
semelhantes, devido à porosidade de seus limites, de seu contorno. As trocas
íntimas ocorrem nessas superfícies porosas, onde os parceiros interpenetram-se.
Partindo destas considerações, reafirmamos nossa idéia
acerca da parcialidade e fluidez da integridade e identidade do sujeito dentro
da conjugalidade. É importante ressaltar os efeitos da conjugalidade nesse
processo de estruturação e constituição permanente do sujeito.
Assim, configura-se a noção de um sujeito que se
desembaraça lentamente da condição simbiótica fundante, de forma desigual,
flutuante e intermitente. Do ponto de vista psicológico, o sujeito jamais
conclui sua individuação por completo. E os espaços mais apropriados para
vivenciar os aspectos primitivos, não-integrados, são as relações conjugais,
familiares, algumas amizades e alguns grupos.
Na clínica
conjugal, temos a possibilidade de tratar sujeitos mal individualizados através
do enfoque terapêutico da simbiose que estabelecem com seus parceiros. Alguns
terapeutas tendem a indicar, nestes casos, o tratamento individual, supondo que
o fato de o casal estar excessivamente fusionado, indiscriminado, possa
comprometer o processo de individuação. Para Lemaire, isto significa confundir
o resultado almejado do tratamento com a indicação terapêutica.
Do nosso ponto de vista, despreza-se a atuação da
conjugalidade no processo de individuação. Não se trata de priorizar o tratamento
conjugal em detrimento da terapia individual, mas de aproveitar a oportunidade
de um acesso privilegiado a determinada forma de mobilização psíquica
individual dentro da conjugalidade.
Estudo de campo : o “ eu” tranformado pelo “nós”
Visando desenvolver uma melhor compreensão acerca da
influência da conjugalidade sobre a subjetividade dos parceiros, realizamos um
estudo de campo entrevistando 12 (doze) casais da classe média da cidade do Rio
de Janeiro, com tempo de coabitação superior a 8 (oito) anos, com idades entre
34 e 44 anos. Os cônjuges possuíam em grande maioria nível de instrução
superior e foram escutados individualmente. Optamos por entrevistar somente casais
que não tivessem experiências conjugais anteriores, visando evitar a influência
de variáveis próprias do recasamento.
Na avaliação do material obtido foram formuladas as
seguintes categorias de análise : concepção de conjugalidade; escolha do
parceiro; percepção do parceiro; auto-percepção; expectativas sobre o parceiro;
auto-expectativas; espaço lúdico; espaços da individualidade; projetos
conjugais e individuais; percepção de influências da conjugalidade sobre a
subjetividade.
Na maioria das
análises, encontramos diferenças significativas entre homens e mulheres. Em
relação à conjugalidade, considerando as influências dos valores
sócio-culturais implicados, as vivências individuais, os afetos e os ideais
associados a essa dimensão, os homens valorizaram o “compartilhamento” e a
“família” como definidores e determinantes fundamentais da relação conjugal,
enquanto as mulheres atribuíram maior importância à “cumplicidade” e ao “amor”,
embora, com menor ênfase, tenham também se referido à “família”.
No grupo pesquisado, consideramos que a localização
dos casais dentro do ciclo vital familiar pode ter favorecido a tendência à
maior valorização da “família” na definição de conjugalidade. Todos os casais
tinham filhos e a maioria (dez casais) tinha filhos abaixo de dez anos de
idade. Nessa etapa do ciclo vital, o cuidado com a criação e o com o
desenvolvimento dos filhos torna-se um dos objetivos centrais, realçando os
papéis do casal parental.
O relato dos sujeitos sobre a escolha de parceiro,
momento inicial da trama identificatória conjugal, nos forneceu elementos para
compreender a origem do processo de interpenetração das subjetividades e de
conformação dos “eus” em função do “nós conjugal”. A reatualização da cena
edípica, mobilizada por ocasião do engajamento amoroso, coloca a conjugalidade
dentro da série identificatória constitutiva da subjetividade.
Nas falas de homens e mulheres, observamos diferenças
em relação à valorização de atributos determinantes da escolha amorosa.
Enquanto a maioria dos homens tendeu a enfatizar qualidades de suas parceiras
que os complementavam no terreno da sociabilidade, em primeiro plano, e que
lhes proporcionava preenchimento afetivo e “apoio pessoal”, em segundo plano,
como motivadores do engajamento amoroso, a maioria das mulheres tendeu a
enfatizar “afinidades”, em primeiro lugar, e “carência afetiva”, em segundo.
Esses dados realçaram a idéia de prevalência da
tendência masculina a realizar escolhas amorosas de acordo com a modalidade
anaclítica ou de apoio e da tendência feminina a realizar suas escolhas em
conformidade com o modelo de escolha narcísica. As mulheres tenderam a
enaltecer o sentimento amoroso como motivador do engajamento conjugal e a
manifestar uma maior idealização de seus parceiros.
Ressaltamos, contudo, que a importância da idealização
na base da escolha amorosa, mais freqüentemente acentuada na escolha feminina
não é sugestiva de um tipo escolha mais regressiva, no sentido de imaturidade,
quando comparado à escolha masculina. Essas duas trajetórias indicam diferentes
modos de participação na trama identificatória conjugal, produzindo diferenças
qualitativas na assimilação de atributos do parceiro e, conseqüentemente,
mudanças na estrutura subjetiva.
A percepção do parceiro e a auto-percepção
nos forneceu elementos ilustrativos sobre o processo de redefinição da
subjetividade a partir da conjugalidade, dentro do jogo projetivo-introjetivo.
A impossibilidade de coincidir com o objeto do desejo do outro leva os
parceiros a se esforçarem no sentido de elaborar aspectos primitivos, visando à
manutenção da conjugalidade, mediante acordos e pactos inconscientes que
determinam posições a serem ocupadas e papéis a serem desempenhados por cada um
dos parceiros.
Observamos que ocorreu uma
consonância entre a percepção de si e a do outro entre homens e mulheres,
fundamentada na busca de complementaridade. A maioria dos sujeitos identificou
os homens como representantes do pólo de ponderação e racionalidade da
conjugalidade e as mulheres como representantes do pólo relacional. Ressaltamos
que a idéia da mulher identificada com os sentimentos e do homem com o racional
ainda é enfatizada no imaginário social.
Relativo às expectativas sobre o parceiro e às auto-expectativas,
orientadas para a relação conjugal, ressalta-se a ilusão de complementaridade
associada à imagem de potência do par conjugal. Entra em cena a reformulação
dos ideais de cada um dentro da conjugalidade, mobilizada pelas expectativas de
preenchimento de necessidades afetivas primitivas e aspirações fusionais.
Os homens manifestaram
necessidade de preenchimento afetivo de forma mais direta, mediante o discurso
auto-referido, enquanto as mulheres tenderam a manifestar suas necessidades de
preenchimento afetivo canalizando-as para a relação conjugal. Consideramos que
os homens tenderam a apresentar suas demandas num nível mais narcísico,
enquanto as mulheres, na maioria das vezes, revelaram uma busca de sublimação
pelo amor. Em suas falas, as mulheres consideraram que é a relação amorosa que
preenche afetivamente e não o objeto-parceiro.
A fruição do espaço lúdico na conjugalidade é
uma das mais significativas evidências do potencial de transicionalidade
presente na relação amorosa. Consideramos que, mediante esse espaço
transicional, as subjetividades dos parceiros reestruturam-se, transitando
entre o “eu’ e o “outro”. Essa dimensão da conjugalidade evidenciou as
possibilidades de expressão da criatividade dos parceiros e o grau de
flexibilidade da estrutura conjugal. A maioria dos sujeitos atribuiu
importância a essa dimensão, relacionando-a com a preservação da relação
amorosa e com a expressão de aspectos ocultos do “eu”.
Os projetos individuais e conjugais são
considerados provenientes da articulação dos ideais dos parceiros,
prospectivamente, de acordo com o princípio de realidade. Eles mobilizam a
atividade representacional conjunta, desencadeando reestruturações subjetivas
em cada parceiro. A conjugação desses projetos e sua possibilidade de
reformulação, colocam em pauta a elaboração do ideal do ego conjugal.
A investigação dessa dimensão evidenciou que,
freqüentemente, os homens foram identificados como pólo realizador de
conquistas do casal. Os ideais dos homens foram privilegiados na constituição
do ideal conjugal, na maioria das vezes, sendo realçados pela tendência à maior
idealização do parceiro por parte das mulheres. Esse desnivelamento na
constituição do ideal conjugal resultou em restrição tanto dos projetos
individuais quanto dos conjugais e refletiu-se principalmente nas queixas de
insatisfação profissional e pessoal de algumas das mulheres entrevistadas.
A preservação de espaços da individualidade dentro
da conjugalidade ilustrou o grau de discriminação entre os parceiros,
relacionado com a capacidade de diferenciação egóica dos sujeitos. De modo
geral, a maioria dos entrevistados valorizou a preservação da individualidade
dentro da relação conjugal. Contudo, embora nas falas das mulheres a
valorização da individualidade tenha sido mais evidenciada, os homens foram
identificados como os que usufruem mais desses espaços individuais,
relacionando-os principalmente com atividades profissionais.
Observamos, nas falas de cada um, que a preservação da
individualidade refletiu-se na expressão do potencial de realização e de
crescimento, assim como no sentimento de valorização associado a esses
aspectos. Esses espaços individuais foram considerados ao mesmo tempo suportes
e resultantes do processo de individuação. Na conjugalidade, eles são
representativos do reconhecimento da alteridade do parceiro.
Nos depoimentos relativos à percepção de influências da conjugalidade sobre a
subjetividade, observamos que as transformações individuais consideradas,
pelos sujeitos, resultantes de aprendizados da vivência conjugal, foram
propiciadas pela tendência à complementaridade presente na conjugalidade. Na
maioria dos casos, as mutações subjetivas foram consideradas resultantes do
desenvolvimento e da complexificação vincular, originando a percepção de troca
intersubjetiva gratificante. Em outros poucos casos, as mudanças foram
percebidas como negativas, resultantes de uma pseudo-complementaridade, na qual
um ou os dois parceiros se submeteram à posição de assistente do outro.
Discutimos as
influências da conjugalidade para a subjetividade dos parceiros, tendo em vista
sobretudo a relevância desta questão para o campo da clínica do casal.
Consideramos que a psicoterapia conjugal psicanalítica, muito além da resolução
de conflitos conjugais, visa à metabolização de aspectos primitivos não
elaborados pelos parceiros, organizados sob a forma de um conluio, ancorado em
pactos inconscientes.
NOTAS
[1] Professora Titular do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Terapeuta de Casal e Família
[2] Doutoranda do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Terapeuta de Casal e Família.
[3] Freud, S. ( 1914) “ Sobre o narcisismo: uma introdução” , ESB, Rio de Janeiro, Imago, 1985
[4] Eiguer, A.“ La thérapie familiale
psychanalitique” , Paris, Dunod , 1983.
[5] Lemaire , J. “ Du je au nous , ou du nous au je ? “Il n’y a pas de sujet tout constitué” ,Paris, Dialogue, 4 , 1988.
[6] Freud, S. ( 1921 ) “ Psicologia das massas e análise do ego,” , ESB , Rio de Janeiro , Imago , 1985.
[7] Florence, J. “ As identificações”, in Mannoni, M. ( org. ), As identificações na clínica e na teoria psicanalítica, Rio de Janeiro, Relume – Dumará , 1994.
[8] Winnicott D. ( 1965 ) “ Família e o desenvolvimento individual”, São Paulo, Martins Fontes, 1993
[9]Colman. W. “ Marriage as a
psychological container” in Ruszcynski , S. ( org.) Psychotherapy with couples , London , Karnak Books ,
1993.
[10] Benghozi, P. Trompe l’amour: des
transactions familiales incestueuses au remaillage des liens
généalogiques,
Paris,Dialogue,1, 1997.
[11] Ruffiot , A. L. Thérapie psychanalitique du couple , Paris , Dunond
, 1984.
[12] Kaës R. (1976). L’ appareil
psychique groupal. Paris, Dunod, 1976.
[13] Eiguer , A. “ Les deux strates du
transfert en thérapie psychanalitique de couples , Paris , Dialogue , 1
, 1987.
[14] Bion, W. (1961). Experiências com
grupos: os fundamentos da psicoterapia de grupo. Rio de Janeiro,
Imago, 1975.
[15] Lemaire , J. Le couple : Sa vie , sa mort , Paris , Payot , 1979.
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