RETORNO DA CONJUGALIDADE SOBRE A SUBJETIVIDADE DOS  PARCEIROS: UMA QUESTÃO PARA A CLÍNICA PSICANALÍTICA DO CASAL

 

                                             Terezinha FÉRES-CARNEIRO[1]

 

Andrea SEIXAS MAGALHÃES[2]

 

 

         Neste estudo desenvolvemos uma investigação acerca das influências da conjugalidade sobre a subjetividade dos parceiros, fundamentada na literatura psicanalítica sobre as relações amorosas. O processo de formação da conjugalidade, a partir das interpenetrações subjetivas, é  freqüentemente discutido. Contudo, o retorno da conjugalidade sobre as subjetividades dos parceiros é raramente abordado. Consideramos muito importante, para a clínica do casal, a discussão dessa questão.

O processo de instauração da conjugalidade é geralmente discutido a partir da reatualização da trajetória edípica dos parceiros e do compromisso inconsciente que sustenta a escolha amorosa. Freud[3], em “Sobre o narcisismo: uma introdução”, postula que existem dois tipos básicos de escolha amorosa: a escolha anaclítica, baseada na busca de apoio mútuo, o parceiro representa o pai ou a mãe da infância; e a escolha narcisista, baseada na própria imagem do sujeito, guardando estreita relação com o que o sujeito é, foi, gostaria de ser ou mesmo parte de si próprio.

 A conjugalidade é um amor revivido, acalentado pela esperança de elaboração do romance familiar. Eiguer[4] acentua a reedição, a redescoberta do amor infantil e o valor de restituição simbólica que é atribuído ao encontro amoroso. Este amor possível, que busca conciliar desejo, angústia de castração e identificação é considerado equivalente às formações de compromisso inconscientes.

A dimensão da conjugalidade é referida à vivência compartilhada do casal considerando a relativa continuidade e estabilidade do vínculo conjugal. Tal dimensão fundamenta-se e estrutura-se na identidade conjugal, forjada na trama identificatória dos parceiros, que vivenciam uma relação intensa, baseada em laços afetivos e na noção de complementaridade. Nessa identidade estão presentes tanto aspectos inconscientes - motivações, desejos e

fantasias - quanto aspectos conscientes referidos principalmente ao projeto de vida do casal.

Os estudos sobre a conjugalidade ressaltam a estrutura que se forma a partir das constituições individuais dos parceiros e do interjogo dinâmico inconsciente que ocorre no par conjugal. Contudo, consideramos que o encontro amoroso e a conjugalidade que evolui desse encontro, através da recordação, da repetição e da elaboração dos Édipos dos parceiros, exerce influências estruturantes ou desestruturantes para cada um deles. A vivência da conjugalidade e o interjogo de identificações mobilizado no enquadre conjugal, produzem efeitos sobre a constituição da subjetividade, num processo dinâmico que se desenvolve por toda a vida.

Lemaire[5] questiona a noção de sujeito associada à idéia de indivíduo plenamente constituído. As construções metapsicológicas são fundamentadas na concepção de indivíduo autônomo da sociedade moderna ocidental. Em decorrência disso, pressupõe-se que ao referir-se a um casal, esteja-se tratando de sujeitos “ideais”, cujos aspectos infantis foram satisfatoriamente elaborados. Essa pressuposição fundamenta-se no ideário individualista que concebe os indivíduos como seres autônomos, independentes e auto-suficientes, que se unem por desejo próprio e pelo bem do interesse social.

Nosso interesse em desenvolver a presente investigação surgiu na clínica com casais que permanentemente nos provoca o questionamento acerca dos limites do “eu” dentro do “nós conjugal” e dos pontos de convergência entre os processos de individuação dos parceiros e a complexificação do vínculo conjugal.

O “eu” surge a partir de um “nós” primitivo, ilusão de fusão, reminiscência da simbiose mãe-bebê, e ressurge de forma transmutada na relação conjugal. Na conjugalidade, nos deparamos com o enquadre privilegiado para a reatualização desses conflitos primitivos. E, na terapia de casal, mais especificamente, as questões relativas ao processo de separação-individuação são evidenciadas com algumas nuances características do vínculo conjugal.

 

A conjugalidade produz efeitos individuais nos parceiros, que se deparam com a oportunidade de elaborar alguns conflitos de forma produtiva, criativa, ou permanecer repetindo sintomaticamente aspectos patológicos na relação conjugal. Na clínica com casais, nos deparamos com as conjunções sintomáticas que são estabelecidas e os seus desdobramentos individuais. Ademais, temos a possibilidade privilegiada de instrumentalizar recursos do setting terapêutico, contribuindo para que elas sejam ressignificadas, promovendo o processo de individuação dos parceiros.

 

Identificação e o papel dos ideais

 

O jogo identificatório, ativado permanentemente na relação conjugal, fornece o enquadre propício para gerar elaborações e restruturações nas subjetividades envolvidas. Na literatura psicanalítica das relações amorosas,prevalece a idéia de que a conjugalidade, desde sua fundação, o momento da escolha amorosa, estrutura-se sobre o processo identificatório, que reatualiza vivências pré-edípicas e edípicas. Esse processo identificatório não se limita a uma reprodução da cena edípica, no sentido de uma imitação estéril. Ao contrário, o enquadre conjugal apresenta-se como terreno fértil, pleno de possibilidades de novas configurações subjetivas.

Em nosso estudo, consideramos a trama estruturante que se produz no jogo identificatório mobilizado na relação amorosa e o papel de sustentação dos ideais de cada parceiro nesse processo. Pensamos que, na conjugalidade, o ideal do ego e o ego dos parceiros articulam-se de tal forma, na trama identificatória, que são propiciadas reestruturações subjetivas em cada um dos cônjuges. É a objetivação da relação entre ego e ideal do ego, encenada pelos parceiros, que apresenta valor estruturante, devido ao alto grau de investimento libidinal colocado em ação.

A compreensão do papel dos ideais, na trama identificatória, torna-se fundamental em nosso estudo devido à representação metafórica que encarna, a luta entre o narcisismo primário e a necessidade humana de diferenciar-se e emergir como sujeito. Esse movimento desenvolve-se durante toda a vida, buscando preencher o intervalo existente entre o ego e o ideal do ego. A busca do preenchimento desse intervalo constitui o movimento de tornar-se sujeito. E é a participação da conjugalidade nesse processo que buscamos analisar em nossa pesquisa.

Em “Psicologia das Massas e Análise do Ego”[6], Freud enuncia três modalidades de identificação. A primeira diz respeito à forma originária do laço afetivo com o objeto; é a identificação primária, canibalesca, pré-edipiana, que coloca em pauta a noção de incorporação, mais tarde tão bem explorada pelos teóricos das relações objetais. A segunda refere-se à identificação como substituto regressivo da escolha de objeto abandonada. A terceira modalidade caracteriza-se por um elemento comum tomado do outro. Esse elemento, mediante a operação de deslocamento, aparecerá em outro ponto, sem que haja investimento sexual direto. Essas três modalidades podem figurar de forma mesclada no jogo identificatório da conjugalidade, resultando ora num processo enriquecedor das subjetividades em pauta, ora empobrecedor, ou até patológico, nos casos em que o objeto é colocado no lugar do ego do sujeito.

Florence[7] analisa os diferentes tipos de identificação, propostos na obra freudiana, tecendo algumas considerações elucidativas para a nossa discussão. Considera-se que a identificação narcísica é a mais primitiva e importante, na medida em que produz a constituição do eu em suas clivagens. A identificação melancólica produz um retorno aos aspectos mais arcaicos da ambivalência, clivando o eu em uma parte sádica, que se identifica com o objeto, e uma parte perseguida pela fantasia do objeto. A identificação melancólica é considerada uma forma fracassada do que o autor chamou identificação totêmica ou simbólica. Esse tipo de identificação pressupõe uma escolha objetal de tipo narcísica na inauguração da relação. A identificação histérica segue a lógica da identificação onírica, expressa o desejo sexual recalcado, representado de forma regressiva através das cenas do sonho e do sintoma.

Podemos traçar um paralelo entre o fenômeno totêmico e a conjugalidade, considerando que ambos estruturam-se mediante a identificação. Ressaltamos que a conjugalidade, enquanto vínculo emocional estável que busca conciliar a corrente sensual e os impulsos desviados da finalidade sexual propriamente dita, estrutura-se sob a lei do pai, sob os efeitos do recalcamento, e opera na aquisição da identidade. A conjugalidade insere o sujeito num sistema de trocas e numa genealogia. Através do nome, o sujeito se prontifica a constituir e a ser constituído pela família. O processo identificatório que ocorre na conjugalidade, dessa forma, também constitui-se como um dos acessos à individualização e à socialização.

 

Florence considera a identificação totêmica ou simbólica uma operação resolutiva, na medida em que opera o luto do objeto edipiano, com a renúncia a uma relação pulsional ambivalente. Ressalta-se, ainda, que é o ideal (traço paterno) que substitui o objeto da ambivalência, viabilizando a identificação dos sujeitos entre si.

Consideramos que, na conjugalidade, os ideais operam também nesse sentido, fortalecendo o vínculo emocional conjugal, projetando os sujeitos numa perspectiva diacrônica e favorecendo a elaboração da relação ambivalente. Esse processo provoca a mutação subjetiva, através do movimento de ilusão-desilusão-recriação.

Florence  ressalta ainda a multiplicidade evocada no processo identificatório, utilizando sempre o plural - identificações - enfatizando uma referência ao conjunto de relações entre personagens que é mobilizado nesse fenômeno. Esse conjunto identificatório remete ao romance edipiano. A identificação refere-se sempre a um romance, onde tomam parte desejos contraditórios, ambivalentes, bissexuais, ativos e passivos. As identificações fundamentam-se em processos primários, inconscientes e utilizam-se de personagens, “pessoas”. Esses personagens encenam a representação pulsional. A partir dessa compreensão, ampliamos nosso olhar, sobre o jogo identificatório constituinte da conjugalidade. Consideramos que os parceiros representam personagens múltiplos da cena inconsciente e se servem um do outro, num “faz de conta” fortemente ancorado na realidade, em projetos compartilhados e conscientes.

 

Clínica psicanalítica de casal

 

Diversos desenvolvimentos teóricos da psicanálise vêm enriquecendo a clínica psicanalítica do casal, que, do nosso ponto de vista, justifica-se sobretudo a partir da concepção de que a conjugalidade exerce uma importante influência sobre a subjetividade dos parceiros.

Dentre as contribuições significativas formuladas pelos teóricos das relações objetais referentes à discussão sobre o retorno da conjugalidade sobre a subjetividades dos cônjuges, ressalta-se o conceito de transicionalidade. Winnicott[8] desenvolve a noção de um objeto que se produz numa “realidade compartilhada” que pressupõe a existência de uma terceira área do psiquismo, que inclui realidade interna e externa. A transicionalidade é um fenômeno essencial para a atividade de ilusão-desilusão, para a progressiva aceitação da realidade externa, discriminação entre self e não-self, e para o desenvolvimento da criatividade. O sujeito só opera a individuação a partir de uma experiência de dependência prévia, onde foi possível contar com o outro sem se perder nele.

Consideramos que essa maleabilidade na estruturação do self, essa porosidade de limites do “eu”, experimentada na transicionalidade, possibilita a reestruturação da subjetividade em qualquer tempo. Na conjugalidade, de forma privilegiada, essa oscilação entre dependência-independência, diferenciação-indiferenciação, é favorecida. Isso ocorre na medida em que o objeto amoroso não é realidade nem fantasia, constitui-se na transicionalidade.

Em nossa investigação, ressaltamos o valor da transicionalidade na estruturação da conjugalidade, na ativação do processo ilusão-desilusão, considerando esse fenômeno um fator determinante na dialética constitutiva conjugalidade-subjetividade. Na transicionalidade, o casal se interpenetra, se indiscriminando e se discriminando, sendo “eu”, “não-eu”, “nós”, “não-nós”, “dentro-de-nós”, “fora-de-nós”, “dentro-do-outro, fora-do-outro.”

 

Colman[9] observa que, quando a conjugalidade falha em sua função de continente psicológico e propiciadora de desenvolvimento dos parceiros, o enquadre terapêutico conjugal pode oferecer uma possibilidade de elaboração e continente, visando restabelecer o potencial terapêutico inerente à relação conjugal.

Benghozi(1996)[10] se refere ao pacto de aliança conjugal como uma forma de malha afiliativa entrecruzando e remalhando os continentes genealógicos das famílias de origem de cada parceiro. O trabalho clínico com o casal e a família não é, para ele, apenas terapêutico e não diz respeito apenas às pessoas presentes. Ele é igualmente preventivo da repetição sobre as gerações seguintes.

O regime econômico, que opera o psiquismo familiar e a conjugalidade, é baseado no princípio da homeostase, tal como enunciado por Freud. Ruffiot[11] ressalta que a dinâmica conjugal fundamenta-se numa troca reguladora de energia psíquica. Na conjugalidade, instaura-se um psiquismo diádico que realimenta os psiquismos dos parceiros, em suas formas individualizadas. A partir dessa idéia, podemos pensar uma conjugalidade que retorna sobre os sujeitos envolvidos, num movimento dialético e recíproco, estruturante.

O “eu conjugal” constitui-se como um sistema com funcionamento autônomo e, assim como o “aparelho psíquico grupal” teorizado por Kaës[12], apresenta situações de conflito ou crises que se referem a uma dinâmica inconsciente compartilhada e não exclusivamente a incompatibilidades na adaptação de duas personalidades diferentes.

Essa concepção de conjugalidade traz efeitos para a clínica do casal. Eiguer[13] indica, como objetivos da terapia conjugal, a busca do restabelecimento da circulação fantasmática e a construção de um novo equilíbrio entre vínculos objetais e narcisistas, reduzindo-se as identificações projetivas. O papel do terapeuta é, semelhante à “função alfa”[14] da relação mãe-bebê, oferecer continente e discriminar afetos e pensamentos do casal, garantindo o enquadre e viabilizando a discriminação e individuação desses sujeitos.

 

A proposta clínica de Eiguer fundamenta-se, dessa maneira, na idéia por nós compartilhada, de que a restauração da circulação fantasmática na conjugalidade, além de restituir a cada parceiro o que fora depositado no outro, pode viabilizar a utilização do potencial de elaboração inerente à relação amorosa, operando mudanças nas subjetividades dos cônjuges.

Segundo Lemaire[15], a conjugalidade constitui-se baseada em aspectos arcaicos, partes psicóticas, de cada parceiro, que se mantêm sob controle ou são canalizadas através das relações amorosas. Quando surge alguma ameaça de ruptura do vínculo conjugal, os parceiros se defrontam com o aparecimento do material que se mantinha recalcado, provocando simultaneamente um movimento de recuperação regressiva e a perspectiva de reestruturação de cada um.

De acordo com essa perspectiva, alguns sujeitos vivenciam na conjugalidade aspectos regressivos, focalizando-os na relação e viabilizando maior autonomia nos outros campos de sua vida, em especial na sociabilidade. A conjugalidade circunscreve, por vezes, certos distúrbios de personalidade, mantendo alguns aspectos patológicos sob controle.

Na relação amorosa e na clínica conjugal, observamos que as trocas mútuas evidenciam que os sujeitos apresentam limites mutáveis, não existindo integridade ou unidade absoluta. As identificações em jogo são tão intensas que, por vezes, os sujeitos tendem a se equivocar em relação a si próprios. A idéia central é a de que a constituição da conjugalidade ocorre em torno de zonas mal definidas do “si” (soi), senão do próprio “eu “ (moi). Quando Lemaire refere-se ao “si”, ressalta o aspecto do movimento de estruturação e organização contínuo, permanente, o desembaraçamento da magma simbiótica e da matriz psico-cultural, a partir do qual o sujeito diferencia-se. Nesse processo oscilante, indiferenciação e diferenciação, o sujeito mostra-se mais atraído por um ou outro parceiro de acordo com áreas semelhantes, devido à porosidade de seus limites, de seu contorno. As trocas íntimas ocorrem nessas superfícies porosas, onde os parceiros interpenetram-se.

Partindo destas considerações, reafirmamos nossa idéia acerca da parcialidade e fluidez da integridade e identidade do sujeito dentro da conjugalidade. É importante ressaltar os efeitos da conjugalidade nesse processo de estruturação e constituição permanente do sujeito.

Assim, configura-se a noção de um sujeito que se desembaraça lentamente da condição simbiótica fundante, de forma desigual, flutuante e intermitente. Do ponto de vista psicológico, o sujeito jamais conclui sua individuação por completo. E os espaços mais apropriados para vivenciar os aspectos primitivos, não-integrados, são as relações conjugais, familiares, algumas amizades e alguns grupos.

 Na clínica conjugal, temos a possibilidade de tratar sujeitos mal individualizados através do enfoque terapêutico da simbiose que estabelecem com seus parceiros. Alguns terapeutas tendem a indicar, nestes casos, o tratamento individual, supondo que o fato de o casal estar excessivamente fusionado, indiscriminado, possa comprometer o processo de individuação. Para Lemaire, isto significa confundir o resultado almejado do tratamento com a indicação terapêutica.

Do nosso ponto de vista, despreza-se a atuação da conjugalidade no processo de individuação. Não se trata de priorizar o tratamento conjugal em detrimento da terapia individual, mas de aproveitar a oportunidade de um acesso privilegiado a determinada forma de mobilização psíquica individual dentro da conjugalidade.

 

 

Estudo de campo : o “ eu” tranformado pelo “nós”

 

Visando desenvolver uma melhor compreensão acerca da influência da conjugalidade sobre a subjetividade dos parceiros, realizamos um estudo de campo entrevistando 12 (doze) casais da classe média da cidade do Rio de Janeiro, com tempo de coabitação superior a 8 (oito) anos, com idades entre 34  e 44  anos. Os cônjuges possuíam em grande maioria nível de instrução superior e foram escutados individualmente. Optamos por entrevistar somente casais que não tivessem experiências conjugais anteriores, visando evitar a influência de variáveis próprias do recasamento.

Na avaliação do material obtido foram formuladas as seguintes categorias de análise : concepção de conjugalidade; escolha do parceiro; percepção do parceiro; auto-percepção; expectativas sobre o parceiro; auto-expectativas; espaço lúdico; espaços da individualidade; projetos conjugais e individuais; percepção de influências da conjugalidade sobre a subjetividade.

 Na maioria das análises, encontramos diferenças significativas entre homens e mulheres. Em relação à conjugalidade, considerando as influências dos valores sócio-culturais implicados, as vivências individuais, os afetos e os ideais associados a essa dimensão, os homens valorizaram o “compartilhamento” e a “família” como definidores e determinantes fundamentais da relação conjugal, enquanto as mulheres atribuíram maior importância à “cumplicidade” e ao “amor”, embora, com menor ênfase, tenham também se referido à “família”.

No grupo pesquisado, consideramos que a localização dos casais dentro do ciclo vital familiar pode ter favorecido a tendência à maior valorização da “família” na definição de conjugalidade. Todos os casais tinham filhos e a maioria (dez casais) tinha filhos abaixo de dez anos de idade. Nessa etapa do ciclo vital, o cuidado com a criação e o com o desenvolvimento dos filhos torna-se um dos objetivos centrais, realçando os papéis do casal parental.

O relato dos sujeitos sobre a escolha de parceiro, momento inicial da trama identificatória conjugal, nos forneceu elementos para compreender a origem do processo de interpenetração das subjetividades e de conformação dos “eus” em função do “nós conjugal”. A reatualização da cena edípica, mobilizada por ocasião do engajamento amoroso, coloca a conjugalidade dentro da série identificatória constitutiva da subjetividade.

Nas falas de homens e mulheres, observamos diferenças em relação à valorização de atributos determinantes da escolha amorosa. Enquanto a maioria dos homens tendeu a enfatizar qualidades de suas parceiras que os complementavam no terreno da sociabilidade, em primeiro plano, e que lhes proporcionava preenchimento afetivo e “apoio pessoal”, em segundo plano, como motivadores do engajamento amoroso, a maioria das mulheres tendeu a enfatizar “afinidades”, em primeiro lugar, e “carência afetiva”, em segundo.

Esses dados realçaram a idéia de prevalência da tendência masculina a realizar escolhas amorosas de acordo com a modalidade anaclítica ou de apoio e da tendência feminina a realizar suas escolhas em conformidade com o modelo de escolha narcísica. As mulheres tenderam a enaltecer o sentimento amoroso como motivador do engajamento conjugal e a manifestar uma maior idealização de seus parceiros.

Ressaltamos, contudo, que a importância da idealização na base da escolha amorosa, mais freqüentemente acentuada na escolha feminina não é sugestiva de um tipo escolha mais regressiva, no sentido de imaturidade, quando comparado à escolha masculina. Essas duas trajetórias indicam diferentes modos de participação na trama identificatória conjugal, produzindo diferenças qualitativas na assimilação de atributos do parceiro e, conseqüentemente, mudanças na estrutura subjetiva.

 

A percepção do parceiro e a auto-percepção nos forneceu elementos ilustrativos sobre o processo de redefinição da subjetividade a partir da conjugalidade, dentro do jogo projetivo-introjetivo. A impossibilidade de coincidir com o objeto do desejo do outro leva os parceiros a se esforçarem no sentido de elaborar aspectos primitivos, visando à manutenção da conjugalidade, mediante acordos e pactos inconscientes que determinam posições a serem ocupadas e papéis a serem desempenhados por cada um dos parceiros.

Observamos que ocorreu uma consonância entre a percepção de si e a do outro entre homens e mulheres, fundamentada na busca de complementaridade. A maioria dos sujeitos identificou os homens como representantes do pólo de ponderação e racionalidade da conjugalidade e as mulheres como representantes do pólo relacional. Ressaltamos que a idéia da mulher identificada com os sentimentos e do homem com o racional ainda é enfatizada no imaginário social.

Relativo às expectativas sobre o parceiro e às auto-expectativas, orientadas para a relação conjugal, ressalta-se a ilusão de complementaridade associada à imagem de potência do par conjugal. Entra em cena a reformulação dos ideais de cada um dentro da conjugalidade, mobilizada pelas expectativas de preenchimento de necessidades afetivas primitivas e aspirações fusionais.

Os homens manifestaram necessidade de preenchimento afetivo de forma mais direta, mediante o discurso auto-referido, enquanto as mulheres tenderam a manifestar suas necessidades de preenchimento afetivo canalizando-as para a relação conjugal. Consideramos que os homens tenderam a apresentar suas demandas num nível mais narcísico, enquanto as mulheres, na maioria das vezes, revelaram uma busca de sublimação pelo amor. Em suas falas, as mulheres consideraram que é a relação amorosa que preenche afetivamente e não o objeto-parceiro.

A fruição do espaço lúdico na conjugalidade é uma das mais significativas evidências do potencial de transicionalidade presente na relação amorosa. Consideramos que, mediante esse espaço transicional, as subjetividades dos parceiros reestruturam-se, transitando entre o “eu’ e o “outro”. Essa dimensão da conjugalidade evidenciou as possibilidades de expressão da criatividade dos parceiros e o grau de flexibilidade da estrutura conjugal. A maioria dos sujeitos atribuiu importância a essa dimensão, relacionando-a com a preservação da relação amorosa e com a expressão de aspectos ocultos do “eu”.

Os projetos individuais e conjugais são considerados provenientes da articulação dos ideais dos parceiros, prospectivamente, de acordo com o princípio de realidade. Eles mobilizam a atividade representacional conjunta, desencadeando reestruturações subjetivas em cada parceiro. A conjugação desses projetos e sua possibilidade de reformulação, colocam em pauta a elaboração do ideal do ego conjugal.

A investigação dessa dimensão evidenciou que, freqüentemente, os homens foram identificados como pólo realizador de conquistas do casal. Os ideais dos homens foram privilegiados na constituição do ideal conjugal, na maioria das vezes, sendo realçados pela tendência à maior idealização do parceiro por parte das mulheres. Esse desnivelamento na constituição do ideal conjugal resultou em restrição tanto dos projetos individuais quanto dos conjugais e refletiu-se principalmente nas queixas de insatisfação profissional e pessoal de algumas das mulheres entrevistadas.

A preservação de espaços da individualidade dentro da conjugalidade ilustrou o grau de discriminação entre os parceiros, relacionado com a capacidade de diferenciação egóica dos sujeitos. De modo geral, a maioria dos entrevistados valorizou a preservação da individualidade dentro da relação conjugal. Contudo, embora nas falas das mulheres a valorização da individualidade tenha sido mais evidenciada, os homens foram identificados como os que usufruem mais desses espaços individuais, relacionando-os principalmente com atividades profissionais.

Observamos, nas falas de cada um, que a preservação da individualidade refletiu-se na expressão do potencial de realização e de crescimento, assim como no sentimento de valorização associado a esses aspectos. Esses espaços individuais foram considerados ao mesmo tempo suportes e resultantes do processo de individuação. Na conjugalidade, eles são representativos do reconhecimento da alteridade do parceiro.

Nos depoimentos relativos à  percepção de influências da conjugalidade sobre a subjetividade, observamos que as transformações individuais consideradas, pelos sujeitos, resultantes de aprendizados da vivência conjugal, foram propiciadas pela tendência à complementaridade presente na conjugalidade. Na maioria dos casos, as mutações subjetivas foram consideradas resultantes do desenvolvimento e da complexificação vincular, originando a percepção de troca intersubjetiva gratificante. Em outros poucos casos, as mudanças foram percebidas como negativas, resultantes de uma pseudo-complementaridade, na qual um ou os dois parceiros se submeteram à posição de assistente do outro.

 Discutimos as influências da conjugalidade para a subjetividade dos parceiros, tendo em vista sobretudo a relevância desta questão para o campo da clínica do casal. Consideramos que a psicoterapia conjugal psicanalítica, muito além da resolução de conflitos conjugais, visa à metabolização de aspectos primitivos não elaborados pelos parceiros, organizados sob a forma de um conluio, ancorado em pactos inconscientes.

 

             Terezinha FÉRES-CARNEIRO e Andrea SEIXAS MAGALHÃES

            teferca@psi.puc-rio.br

 

 

             NOTAS

 

 [1] Professora Titular do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Terapeuta de Casal e Família

 

[2] Doutoranda do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Terapeuta de Casal e Família.

 

[3] Freud, S. ( 1914) “ Sobre o narcisismo: uma introdução” , ESB, Rio de Janeiro, Imago, 1985

 

[4] Eiguer,  A.“ La thérapie familiale psychanalitique” , Paris, Dunod , 1983.

 

[5] Lemaire , J. “ Du je au nous , ou du nous au je ? “Il n’y a pas de sujet tout constitué” ,Paris, Dialogue, 4 , 1988.

 

[6] Freud, S. ( 1921 )  “ Psicologia das massas e análise do ego,” , ESB , Rio de Janeiro , Imago , 1985.

 

[7] Florence, J. “ As identificações”,  in Mannoni, M. ( org. ), As identificações na clínica e na teoria psicanalítica, Rio de Janeiro, Relume – Dumará , 1994.

 

[8] Winnicott D. ( 1965 ) “ Família e o desenvolvimento individual”, São Paulo, Martins Fontes, 1993

 

[9]Colman. W. “ Marriage as a psychological container”  in  Ruszcynski , S. ( org.) Psychotherapy  with couples , London , Karnak Books , 1993.

 

        [10] Benghozi, P. Trompe l’amour: des transactions familiales incestueuses au remaillage des liens             généalogiques, Paris,Dialogue,1, 1997.

         

[11] Ruffiot ,  A. L. Thérapie psychanalitique du couple , Paris , Dunond , 1984.

 

[12]  Kaës R. (1976). L’ appareil psychique groupal. Paris, Dunod, 1976.

 

[13] Eiguer , A. “ Les deux strates du transfert en thérapie psychanalitique de couples , Paris , Dialogue , 1 , 1987.

 

[14]  Bion, W. (1961). Experiências com grupos: os fundamentos da psicoterapia de grupo. Rio de Janeiro, Imago, 1975.

 

[15] Lemaire , J. Le couple : Sa  vie , sa   mort , Paris , Payot , 1979.

 

 


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