Psicanálise e Educação: algumas observações e hipóteses sobre uma
(im)possível conexão

 

Sandra Francesca Conte de Almeida1

 

          Sempre que sou convocada ou me autorizo a falar sobre as conexões entre Psicanálise e Educação, inevitavelmente uma certa angústia se presentifica e a relaciono ao meu próprio percurso pessoal e profissional como professora e, sobretudo, como analista. Estes dois métiers, embora situados em campos opostos, lidam com o saber e sua transmissão (em diferentes dimensões) e se articulam, no âmbito da minha subjetividade, ao que Freud nomeou de pulsão epistemofílica, ou pulsão de saber, e cuja satisfação possível se deu pela via destes dois destinos : o do ensino e o da prática analítica.

No início da minha atividade acadêmica e por muitos anos subseqüentes, as vicissitudes das minhas "escolhas" pulsionais pareciam que jamais iriam se entrecruzar e que seus destinos seriam sempre paralelos, sem nenhuma possibilidade de algum ponto de ancoragem comum. Marcada pela dívida simbólica com o Outro e com os meus mestres, minhas primeiras respostas ao meu desejo de saber foram marcadas pela busca do conhecimento "científico", legitimamente "garantido" pelas instituições acadêmicas, nacionais e estrangeiras, e de tornar transmissível o seu ensino, compartilhando com o outro o que é possível transmitir em termos da produção dos saberes psicológicos e da tradição cultural socialmente reconhecidos. Talvez eu possa situar, aqui, uma das questões fundamentais ligadas aos ideais educativos: paga-se um preço para se viver na cultura e paga-se, também, para pensar e conhecer "autonomamente", pois o pensamento e o acesso ao conhecimento implicam nessa dívida com o Outro, com quem rompemos e fomos infiéis, arrancando deste Outro o que até então era-lhe suposto pertencer. A dívida se instaura pelo dom e pelo benefício recebidos de termos sido introduzidos na linguagem e no pensamento por meio do Outro. Provavelmente por ser esta uma dívida impagável, jamais me senti segura e garantida na posição de Mestre. Ocupar este lugar se tornava cada vez mais angustiante, fonte de dúvidas e incertezas e essa posição de desconforto crescia à medida em que eu me deixava "contaminar pela peste" da teoria e da experiência da psicanálise, primeiro como analisante e em seguida como analista. Com o passar dos tempos, meus dois destinos se cruzaram, de modo inesperado e imprevisto, como efeito de análise, ou como sintoma inscrito no social, ou, quem sabe, por obra de uma verdadeira reaprendizagem da sublimação, que Assoun (1993)2 descreve como sendo "este destino da falta pulsional de algum modo aculturada" (p. 131).

Passei, então, a me interessar por tudo que dizia respeito às conexões entre psicanálise e educação. As possibilidades e limites dessa relação constituíram-se em um eixo de pesquisa e de produção de conhecimento e ocupam, atualmente, boa parte de minha atenção e dedicação.

Não é minha intenção apresentar, no contexto desta comunicação, uma síntese das idéias freudianas sobre a educação e, muito menos, historiar a produção de diferentes autores, em sua maioria psicanalistas, que escreveram sobre as contribuições ou impossibilidades de articulação entre psicanálise e educação. No trabalho de Jean-Claude Filloux (1987)3 pode-se encontrar uma extensa note de synthèse que combina uma análise histórica das relações entre psicanálise e pedagogia e a classificação dessas relações, proposta pelo autor em termos de duas categorias, segundo o objetivo visado: inspiração imediata de uma prática e leitura com referência a um saber. O artigo de Filloux aborda, sucessivamente, o período das relações entre Freud e seus discípulos educadores (antes de 1925), as publicações (1926-1937) da Revista de Pedagogia Psicanalítica, as pedagogias de inspiração psicanalítica (1945-1970) e as pesquisas, após os anos 70, que se dedicaram a uma abordagem psicanalítica do campo pedagógico. Apesar desse artigo contemplar quase que exclusivamente autores franceses e/ou europeus, pois é uma publicação destinada ao público francophone, não se referindo às contribuições relevantes produzidas por psicanalistas e pesquisadores latino-americanos, trata-se de uma referência clássica da literatura, na área.

As leituras e estudos sobre as principais publicações a respeito das conexões entre psicanálise e educação (campo que ultrapassa a pedagogia), aliados à escuta de meu próprio desejo, nos campos do ensino e da prática analítica, permitiram-me chegar à convicção de que a descoberta freudiana dos processos psíquicos inconscientes permite pensar o sujeito social ou o sujeito da cultura sob uma ótica diferente das demais ciências humanas e sociais. Isto porque o sujeito do inconsciente ou sujeito do desejo, que surge da vivência conflituosa do Complexo de Édipo é, paradoxalmente, aquele que revela a questão da cultura e que a remete em causa, permanentemente, em virtude de seu estatuto de falta-a-ser, deste "impossível de viver", sintoma vivo da cultura, que o neurótico testemunha em palavras e atos. Tal convicção possibilitou servir-me da metapsicologia freudo-lacaniana como um operador de leitura dos fatos e dos fenômenos sociais, na intenção de problematizar e desvelar o que está em jogo no cerne do campo social: a saber, a noção de cultura ou civilização e, portanto, a questão da educação das pulsões sexuais e de transmissão de normas e ideais culturais. Não se trata, portanto, de aplicar a psicanálise ao campo social, mas de utilizar o saber oriundo da teoria e da experiência psicanalíticas para construir algumas observações e hipóteses centradas principalmente em torno de algumas questões fundamentais do campo educativo, visando produzir novos conhecimentos sobre este campo, especialmente sobre as posições subjetivas do aluno e do professor frente ao objeto de conhecimento e sua mediação.

Pretendo, pois, apresentar uma síntese do que venho produzindo mais recentemente, no que concerne às conexões entre psicanálise e educação, limitando-me a três questões: a) o conhecimento como uma das significações fálicas possíveis; b) a idealização do ato educativo e seus efeitos na mediação do conhecimento e c) a posição discursiva do mestre na transmissão do conhecimento.

 

Desejo e aprendizagem na criança: o conhecimento como uma significação fálica possível4

 

Buscar re-significar, desde uma ordem simbólica, a prática pedagógica e o cotidiano das relações inter-subjetivas professor-aluno, interrogando-se sobre o desejo de saber do aluno em sua relação com o desejo de ensinar do professor, implica a compreensão do sujeito humano como um ser de linguagem, efeito dos significantes do Outro e da cultura. Esta concepção permite uma leitura ou interpretação das relações entre a psicanálise e a educação tomando como campo operatório ou de referência o assujeitamento de ambas às leis do funcionamento da ordem simbólica, ou seja, às leis da linguagem, da palavra, enquanto condição de produção de sujeitos.

No processo de ensino e de aprendizagem temos uma relação triangular, cujos protagonistas são o professor e o aluno, sujeitos do desejo, e o conhecimento, objeto que circula nessa estrutura social e relacional. Tal como no complexo de Édipo, vivenciado no núcleo da estrutura de parentesco, a relação que caracteriza a aquisição do conhecimento, pelo aluno, nas aprendizagens escolares, pode ser interpretada desde as suas funções imaginárias (a relação transferencial especular/dual professor/aluno), simbólica (o objeto de conhecimento enquanto conhecimento do Outro, inserido na linguagem e na cultura) e real (a ausência de garantias que marca o "impossível" da educação tanto quanto a impossibilidade radical de realização do desejo - furo no real do corpo pulsional).

Foi necessário apoiar-me em um longo percurso teórico para estabelecer uma conexão entre a constituição do sujeito desejante e a posição do aluno em situação de aprendizagem, frente ao objeto de conhecimento. Os fundamentos da minha hipótese foram construídos a partir das seguintes conceitualizações:

a)    o conceito freudiano do desejo como um processo psíquico interno, dinâmico, distinto da necessidade e que não depende de um objeto externo, concreto, real, para a sua realização;

b)    o conceito lacaniano do desejo como sendo irredutível à necessidade e à demanda, cujo objeto não é um objeto real, como na necessidade, mas um objeto faltoso, denominado por Lacan objeto a, objeto causa do desejo, ligado ao fantasma do sujeito e que nasce além da demanda, lá onde existe o registro de uma falta na satisfação da demanda;

c)     o Complexo de Édipo, descrito por Freud e retomado por Lacan, cuja vivência psíquica permite que a criança se constitua como sujeito no campo do Outro e cujo valor é estruturante na determinação e na posição do desejo do sujeito, em virtude de sua passagem pela castração;

d)    o conceito de pulsão de saber ou pulsão epistemofílica, em Freud, registro da ordem pulsional, inscrito no real do corpo e, como tal, passível de inúmeras vicissitudes, modificações e sucessivas transformações;

e)    a função simbólica da Metáfora Paterna, que constitui-se como uma operação de substituição significante, na qual o desejo da mãe é substituído pelo Nome-do-Pai, o que induz a significação fálica, permitindo a instalação do falo na cultura, enquanto significante da falta. A passagem pela castração, sob o efeito da operação significante introduzida pela Metáfora Paterna, produz a significação fálica, isto é, permite que o falo, como significante da falta, possa assumir outras significações no campo simbólico, no campo da linguagem, podendo ser substituído por outros objetos da cultura que representem a falta.

As concepções psicanalíticas acima citadas permitiram-me formular a hipótese de que a aquisição do conhecimento, sustentada pelo desejo de saber, pode tornar-se uma das significações fálicas possíveis, inscrita na ordem simbólica, dependendo da posição subjetiva da criança diante do desejo do Outro, representado, imaginária e simbolicamente, pela figura do professor.

A relação professor-aluno pode (re)produzir, segundo as leis do funcionamento do inconsciente, uma relação transferencial imaginária, especular, na qual o aluno-falo submete-se à Lei do desejo do mestre, para ser reconhecido e amado enquanto eu-ideal, por este Outro, suposto tudo saber, tudo poder. Ao projetar no aluno suas fantasias (de reparação, de onipotência ou quaisquer outras) e ao "seduzí-lo" para que esse lhe responda desde uma posição subjetiva de assujeitamento, o professor estará atualizando, ele mesmo, a sua própria condição subjetiva face ao desejo e à castração. O que está em jogo é o que representa este ou aquele aluno no inconsciente do professor, na sua "constelação de insígnias", e de que lugar, imaginário ou simbólico, ele responde ao desejo de saber do aluno ou à sua obstinação de nada querer saber.

Em uma relação imaginária de amor ou de ódio5 não há espaço para a circulação do objeto de conhecimento enquanto objeto simbólico, representante da falta de saber do aluno e da falta de tudo poder do professor, objeto, portanto, independente dos personagens em cena. O conhecimento, quando investido simbolicamente, vem operar no lugar da Lei, cuja função é de corte, de separação da relação dual professor-aluno. O professor que se recusa a abrir mão de seu suposto poder fálico aprisiona o aluno ao seu desejo, mantendo-o na condição de sujeito não desejante, impedido de construir novas significações fálicas no campo do Outro.

Da mesma forma que o desejo se constitui no campo simbólico-discurso do Outro, no reconhecimento da falta, da perda, no Édipo, o desejo de saber do aluno e o seu acesso ao conhecimento estão ligados à sua posição diante da castração. Segundo Levy (1996)6, "conforme sua posição são possíveis construções como a sublimação ou construções como os sintomas" (p. 139). Cabe ao professor o manejo dessa relação transferencial e pode-se entender porque as relações interpessoais professor-aluno, quando apenas imaginarizadas, tendem a promover, na criança, modalidades sintomáticas de acesso ao conhecimento: seja pelo excesso de nada faltar, seja pela violência da palavra que lhe é negada, do desejo não reconhecido ou esmagado por imperiosas demandas, às quais a criança não pode se identificar, seja pela pulsão de saber ignorada ou interditada. Se não cabe ao professor promover a sublimação, por ser esta um processo inconsciente, quem sabe poderia ele fazer a experiência de escutar o desejo da criança, nas suas expressões mais diversas: nas suas realizações de sucesso, nos fracassos, nos tropeços, na palavra tímida ou decididamente formulada.

No que concerne à criança, na medida em que ela puder re-significar a perda do objeto imaginário substituindo-o por objetos inseridos na cultura, objetos simbólicos, que não pertencem a ninguém, em particular, é que ela aprenderá, que por assim ser, pode-se tê-los ou não tê-los, tê-los e perdê-los, o que implica a constituição de uma cadeia significante com múltiplas possibilidades de sentido.

 

A idealização do ato educativo e seus efeitos na mediação do conhecimento7

 

Millot (1987)8, em sua obra Freud antipedagogo, coloca em lados antagônicos a psicanálise e a educação. Os pilares que sustentam a tese de Millot estão entre si articulados: os ideais megalomaníacos das metas preventivas, enquanto eliminadores de conflitos psíquicos, mostram um distanciamento da realidade da condição humana, marcada pela falta e pela angústia; o ideal de controle, que marca os atos educativos e o cotidiano escolar, no qual o inconsciente aparece como um intruso, por deslocar do registro do egóico a relação educador-educando; e, por fim, o ideal narcísico que permeia o objetivo educativo, com o qual o conceito de pulsão de morte esbarra de forma inelutável.

O antagonismo entre estes dois campos de conhecimento, psicanálise e educação, estabelece-se, então, pela divergência de concepções sobre o sujeito humano. As metas pedagógicas operam por ignorar a realidade da condição humana e a psicanálise constrói-se como um campo novo de conhecimento, marcando uma ruptura epistemológica com as ciências do homem por apontar, justamente, essa realidade. A negação daquilo que marca o humano, negação que está presente nas metas educativas e no ideário psicopedagógico hegemônico, acaba por repercutir, sob a forma de sintomas (fracasso escolar, problemas no aprendizado, exclusão escolar), no cotidiano das salas de aula.

Considerando as questões apresentadas no ítem anterior, torna-se fundamental analisar os efeitos, na mediação do conhecimento, de uma prática educativa que se espelha no ideal e na ilusão imaginária.

As questões inconscientes que permeiam a relação triangular professor/aluno/objeto de conhecimento remetem ao campo transferencial, que se instaura tendo como base a relação emocional primitiva da criança com os pais. É por efeito da transferência que o aluno se identifica ao professor, fator fundamental para que haja aprendizagem. Entretanto,  a paixão transferencial pelo professor deve ceder lugar, em um segundo momento, à paixão pelo conhecimento. Os entraves dessa passagem, no entanto, existem, pois o aluno pode ficar aprisionado pelo viés transferencial, privilegiando sua paixão ambivalente pelo professor e relegando a um segundo plano o interesse pelo conhecimento. Assim, a forma pela qual o professor responderá a esse laço transferencial será de extrema importância para que o aluno consiga realizar essa passagem e liberar seus investimentos libidinais para o trabalho de aprender.

Contudo, o campo transferencial na relação professor-aluno não se esgota somente nas fixações libidinais e hostis da criança. É preciso considerar, também, as questões narcísicas, decorrentes da angústia de castração, que afetam os sujeitos envolvidos no ato pedagógico. Tomar a criança como aluno-falo significa, na economia narcísica do educador, colocá-la no lugar de eu-ideal , investí-la narcisicamente para que ela realize o ideal que ele mesmo não pôde realizar. Por meio de demandas idealizadas, o educador endereça à criança o pedido de que ela responda do lugar da ordem da perfeição, na ilusão de que é possível tamponar a falta. Por outro lado, quando o aluno toma seu professor como alguém suposto tudo saber e tudo poder, essa suposição denota a permanência da criança em um estado de ilusão de que ao Outro nada falta. Em ambos os casos, o laço transferencial é imaginário.

Quando o professor não responde ao aluno do lugar daquele que tudo sabe, mas sim daquele que conhece e que toma esse conhecimento não como uma verdade, mas como uma convicção culturalmente aceita e socialmente compartilhada, o professor ocupa o lugar de mediador do objeto de conhecimento, o qual marca a entrada de um terceiro na relação professor-aluno. Somente ocupando este lugar é que o professor tem chances de reverter as questões imaginárias e narcísicas que se mesclam no campo educativo. Isto implica que o educador renuncie ao ideal de completude narcísica imaginária e à ilusão de que é possível gestar, por obra dos ideais e normas educativas "pelo menos um adulto do futuro a quem nada falta" (Lajonquière, 1997, p. 40)9.

Vale lembrar, no entanto, que quando o aluno, por circunstâncias diversas (condições econômicas precárias, problemas de ordem familiar, escolar, dentre outras), não consegue causar no educador um desejo de investimento é porque o viés narcísico mostra sua outra face: ao invés de responder do lugar do ideal, da "criança-esperança", como se refere Lajonquière, o aluno responde de um lugar que remete o educador às experiências de gozo, que assolam o cotidiano das escolas, tais como as queixas freqüentes dos professores e os preconceitos, das mais diversas ordens.

Embora a divisão subjetiva do sujeito e o mal-estar na cultura atestem o impossível da educação, enquanto ideal de perfeição narcísica, o ato educativo permite, segundo Garcia (1998)10, "modificar a relação do sujeito frente ao real" (p. 11), que interpreto como a modificação do sujeito frente à castração, pois educar e educar-se implica, sobretudo, estar em contato permanente com a alteridade e ter de se haver com a diferença. Entre a imagem ideal do aluno e o aluno real, de carne, ossos e desejo, se estende uma diferença radical, da mesma forma que existe uma diferença entre a imagem ideal do mestre, que corresponde àquele que seria capaz de educar sem perdas e danos e o adulto concreto, incapaz de atender às exigências de perfeição que esta imagem ideal lhe impõe. Assim, aquele que se aplica à função (im)possível da educação é convidado ao imprevisível do ato educativo e a um encontro inevitável com sua própria face, pois "aquele que suporta o ato de educar (...) não se confrontaria apenas com a criança viva para a qual formula um projeto, mas também e, sobretudo, com a criança recalcada que o inspira na maioria de suas reações. (...) Este laço educativo não estaria isento de projeções imaginárias, de ilusões e exageros; nele dominariam, soberanos, os impulsos inconscientes e os desejos insatisfeitos, uma história dissimulada que não pára de repetir-se..." (Cifali, 1987, citada em Pereira, 1998, p. 175)11.

 

A posição discursiva do mestre na transmissão do conhecimento12

 

Se a psicanálise pode contribuir, de alguma forma, com o campo da educação é apontando para a necessidade de uma postura reflexiva sobre a tarefa educativa, que supõe uma re-significação, a ser feita pelo professor, de sua atuação junto aos alunos. Pontuar os efeitos das metas idealizadas e grandiosas que inspiram o ato de educar,  pois elas negam a realidade do desejo e, por conseguinte, negam também a criança como sujeito. Assinalar, para o professor, que a mediação do conhecimento e sua possibilidade de significação, pelo aluno, passam pela via da linguagem e da fala, que é sempre endereçada a um Outro. Apontar, ainda, que a posição subjetiva do professor, frente à castração, determina as suas modalidades discursivas e que estas têm efeitos de diferente natureza no processo relacional de transmissão e aquisição do conhecimento.

É a propósito desta última questão, que envolve as quatro posições discursivas teorizadas por Lacan, que farei, ainda, algumas observações13.

O discurso do Mestre é aquele que coloca o Mestre (S1 - significante mestre) na posição de Senhor, daquele que se dirige como Mestre ao Saber, mas que não o produz, pois quem ocupa o lugar da produção ( como objeto pequeno a, como resto ou mais-de-gozar) é o Escravo. Portanto, o Senhor é dependente do Escravo, e apenas deste obtém o seu estatuto e posição de Mestre, ou seja, só existe como tal porque mantém a ilusão de que é autônomo, que tem escravos para lhe servir e que destes pode prescindir. A dialética do discurso do Mestre nos revela, então, a sua relação com o Saber enquanto meio de gozo, pois trata-se de um saber sobre tudo, e aponta para uma verdade: a de que o Mestre é castrado, pois ele se assujeita à Lei.

 

Discurso do Mestre

S1 ® S2

       
   

 

                                                                       S       a

 

 

Para Lacan, o discurso que produz o saber é o discurso da histérica, que permitiu a Freud o descobrimento da psicanálise, isto é, a verdade do inconsciente que, para Lacan, trata-se da verdade do desejo, desejo que abriga um Saber-não sabido, um Saber fundamental. O discurso histérico é, então, aquele que revela a verdade do Mestre, que o coloca no lugar de um Outro, permitindo-lhe a produção de um Saber (S2) que, no entanto, fica sob a barra, recalcado, pois tem a ver com a verdade da castração do Outro. O que escapa ao recalque, entretanto, pela via da sublimação, é o que o homem produz como cultura, civilização, como conhecimento, pois devido à sua falta crônica constitutiva o homem é condenado a fazer alguma coisa. Posição do cientista que, como sujeito barrado e agente do discurso, se dirige à ciência como significante mestre, colocada na posição do Outro, e que produz um Saber do qual o sujeito, ele mesmo, encontra-se separado e para o qual nada conta. Mas, tal como a histérica, o cientista busca um Mestre para o dominar: a ciência enquanto suposto-Saber.

 

Discurso da Histérica

 
 

 

S   ®S1

       
   

 

                                              a        S2

 

O discurso universitário, em Lacan, é aquele que, paradoxalmente, não produz nenhum saber. O Saber encontra-se na posição do agente do discurso e se dirige a um outro (pequeno a), na ilusão de produzir um sujeito divido. Na verdade, trata-se, nesta modalidade discursiva, de uma relação imaginária com o Saber, enquanto Saber Todo, sem furo, sem falhas, portanto sem consistência simbólica, já que o sujeito que se pretende produzir encontra-se separado do seu significante mestre que, no discurso universitário encontra-se, justamente, sob a barra do Saber. O modelo de conhecimento, freqüentemente presente no discurso universitário, é organizado e articulado como um conhecimento paranóico, como lembra Ivan Corrêa, na medida que não admite dúvidas, furos, apenas certezas e garantias delirantes. Esta é a lógica do conhecimento derivado de um saber todo, cuja argumentação, que se pretende rigorosa, falha exatamente naquilo que pretendia alcançar.

 

Discurso da Universidade

S2  ® a

           
   
 
   

 

                                               S1          S

 

Posso supor, a partir do que foi exposto, que o conhecimento que verdadeiramente se ensina é o que se transmite como efeito de um Saber sobre a própria castração, em uma relação educativa que é sempre de filiação e de reconhecimento do valor simbólico da diferença que marca o lugar de cada um na cadeia de transmissão. Neste sentido, o conhecimento possui a mesma estrutura que está na origem da constituição do eu. É preciso um Outro suposto-saber que confirme e reconheça o movimento de conhecer do aluno na condição de sujeito desejante.

Qual seria, então, a modalidade discursiva que permitiria a alguém, na posição de professor, transmitir o conhecimento culturalmente produzido e acumulado ao longo dos tempos de tal forma que este ensino não produza escravos, clones ou sujeitos delirantes? Esta é uma questão que tem me acompanhado, de modo insistente e recorrente, nos últimos anos, na minha trajetória profissional como professora universitária. Questão que me formulo, sem dúvida, em virtude de minha experiência analítica e que se desdobra em inúmeras outras questões. O que eu ensino, verdadeiramente? No que se ancora o meu saber? O que sou capaz de transmitir aos meus alunos, para além de alguns fragmentos de conhecimento, aqui e ali costurados e organizados em modelos, teorias e metodologias? Quais são os ideais educativos que sustentam os meus atos de linguagem, bem como meus humores oscilantes e, porque não dizer, meu desejo (recalcado) de Mestria?

Trato aqui, certamente, dos impasses que cada educador, seja pai ou mestre, se confronta frente à tarefa da educação.

Resta-me abordar, ainda, o discurso do analista, ao qual vou me referir como uma posição ética discursiva.

Discurso do Analista

a   ®   S

       
   

 

                                             S2              S1

 

 

Como se pode observar, a estrutura discursiva que define a posição do analista e, como efeito, a do analisante, coloca o analista na posição dominante do agente do discurso, mas como objeto pequeno a, ou seja, como objeto perdido, como objeto causa do desejo, que se dirige ao outro, enquanto sujeito dividido, separado do significante mestre que o representa. A posição do analista visa, então, a fazer operar no sujeito a produção de seu significante mestre, o qual encontra-se recalcado, ou seja, operar no sujeito um movimento de re-significação de sua castração simbólica, de reposicionamento do significante fálico, primordialmente recalcado. Para que esta operação se torne possível, o analista cala sobre o seu próprio desejo, faz silêncio-em-si, segundo expressão cunhada por J.-D. Nasio, e, assumindo uma posição ética discursiva, faz semblante de Sujeito-suposto-Saber sobre o desejo do analisante. O analista não é, portanto, aquele que sabe, não é o sujeito do Saber, ele é o suposto Saber.

Embora Lacan tenha se referido inúmeras vezes ao desejo do analista e tenha dito a seu respeito que se tratava do "desejo de obter a diferença absoluta, aquela que separa o objeto a que constitui o estofo do sujeito da imagem idealizada que o constituiu primeiramente" (Chemama,1995, p. 79)14, isto é, da onipotência fantasmática ligada à perfeição do eu ideal, a questão do desejo do analista resta ainda aberta à elaboração. O que se pode dizer, minimamente, sobre o desejo do analista, como referido em Chemama, é que se trata de um desejo menos dependente do desejo do Outro, de quem, no fantasma, cada um se faz objeto.

Findo o percurso sobre as quatro estruturas discursivas, retomo a indagação anteriormente colocada para tentar estabelecer algumas conexões possíveis com a educação.

Como ponto de partida, descarto, de imediato, o discurso da universidade como tendo algum interesse para o meu propósito, já que o modelo de conhecimento proposto por esta discursividade engendra um tipo de laço social e de relação inter e intrasubjetiva entre o Saber e o sujeito que promove e faz apelo às relações imaginárias na educação e aos ideais megalomaníacos e narcísicos do educador.

Penso que a questão da educação, que representa o encontro inevitável do homem com a cultura, na sua dimensão simbólica, liga-se à questão do pai e à da interdição, pois o ato educativo encontra sua significação na confrontação à ordem simbólica, que ordena as relações de parentesco e as relações sociais. Sustentar e transmitir às novas gerações a tradição simbólica que funda, de uma só vez, o sujeito e a cultura, tal é a tarefa imposta pela civilização ao adulto na posição de educador, não importa se pais ou mestres. Trata-se aí de uma árdua missão ou de uma transmissão que mobiliza no adulto os impasses de sua própria neurose, reaviva o seu narcisismo, as fantasias de onipotência e a nostalgia do prazer fusional, cujo risco, dentre muitos, é o de aprisionar o outro aos seus ideais, tomando-o pelo objeto que, imaginariamente, preencheria a sua falta-a-ser constitutiva.

Cumprir essa tarefa sem cair nas armadilhas e ciladas que ela oculta constitui, ao meu ver, o maior impasse do ato educativo. O desafio que se coloca para o educador, para que ele se preste ao exercício dessa função, será, então, o de criação, no que esta comporta de atividade sublimatória, de uma nova estrutura discursiva, uma posição subjetiva que lhe permita dirigir-se ao Saber como um Saber-não-Todo, como um Saber furado, tomando de empréstimo a posição do analista no que concerne ao Sujeito-suposto-Saber. A transferência que se estabelece na relação professor-aluno coloca o professor na suposição de saber e faculta surgir no aluno o discurso histérico, único capaz de produzir saber e de revelar a verdade da castração do Mestre.

"Assim, ao invés da transmissão ocorrer por meio de uma apropriação que o professor possa fazer do aluno, do tipo 'eu sei o que você deve saber', ela se dará em um espaço vazio, em que impera o acaso, pois o professor não sabe o que o aluno deseja saber, mas o aluno supõe que o saber que ele busca está no professor. O enunciado do saber produzido pela enunciação do desejo de ensinar criará uma oferta que estabelecerá um porto onde ocasionalmente o desejo de saber do aluno atracará" (Mendonça Filho, 1998, p. 100)15.

Poder suportar, subjetivamente, a angústia de uma posição discursiva que implica em renunciar à onipotência narcísica e aos ideais de grandeza e de perfeição, em fazer semblante de saber, ocupando o lugar de Mestre, eu diria de Mestre barrado, para que o ensino e a transmissão sejam possíveis e realizáveis. Estar na posição de um ser em falta que deseja o desejo de saber (de aprender) do aluno. Por ser esta uma posição dificílima de ser sustentada, atribuo a essa dificuldade grande parte daquilo que faz sintoma na educação e no educador. Por isto considero imprescindível que o professor seja escutado, assim como a sua instituição, no que eles trazem de angústias, de sofrimento e de experiências de gozo. De minha parte, continuo sonhando o sonho de Freud: que todos os educadores pudessem se beneficiar de uma análise pessoal. Enquanto isto não é possível ou desejável, para muitos, resta-nos produzir algum conhecimento transmissível sobre as possibilidades de conexão entre a Psicanálise e a Educação, na esperança de provocar e sensibilizar psicanalistas e professores na difícil tarefa de pensar a cultura e a educação.

Concluo, afirmando que só é capaz de educar e de ensinar aquele que suportar o fracasso constitutivo do ato educativo. Aí reside a impossibilidade da educação, a que se referiu Freud, pois o ideal educativo irá se confrontar, sempre, com algo "ineducável" do sujeito, ou seja, no coração mesmo da civilização "há um isso que será sempre sem educação" (Pereira, 1998, p. 191)16. Por outro lado, se a educação se choca com o rochedo do desejo do sujeito (parafraseando Freud), ela está condenada a fazer com que o Saber, convertido em desejo de conhecer e de ensinar, e a função educativa sejam, assim mesmo, possíveis e realizáveis.

 

 

Notas

1. Professora-Doutora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília e Membro Analista do Percurso Psicanalítico de Brasília.

2. Assoun, P.-L. (1993). Freud et les sciences sociales. Paris: Armand Collin.

3. Filloux, J.-C. (1987). Psychanalyse et pédagogie ou: d'une prise en compte de l'inconscient dans le champ pédagogique. Révue Française de Pédagogie, no 81, pp. 69 - 102.

4. Almeida, S. F. C. (1998). Desejo e aprendizagem na criança: o conhecimento como uma significação fálica possível. Estilos da Clínica, Ano III, no 5, pp. 84 - 93.

5. H. Bleichmar, em Introdução ao estudo das perversões - teoria do Édipo em Freud e Lacan, Porto Alegre, Artes Médicas, 1984, lembra que é preciso ter em conta que nem sempre a relação imaginária produz uma unidade narcísica equivalente à criança/falo - mãe/fálica. Portanto, a criança pode não se constituir como falo.

6. Levy, E. (1996). A interpelação interdisciplinar na clínica psicopedagógica. Estilos da Clínica, Ano I, no 1, pp. 128 - 145.

7. Almeida, S. F. C. (1999). O adolescente e a educação: a função (im)possível dos ideais educativos. Em: Escola Lacaniana de Psicanálise do Rio de Janeiro (Org.). O adolescente e a modernidade. Congresso Internacional de Psicanálise e suas Conexões (pp. 69 -78). Rio de Janeiro: Companhia de Freud.

Legnani, V. N. & Almeida, S. F. C. (1999). A idealização do ato educativo: efeitos no fracasso escolar das crianças das camadas populares. Artigo submetido à publicação.

8. Millot, C. (1987). Freud antipedagogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

9. Lajonquière, L. de (1997). Dos 'erros' e em especial daquele de renunciar à educação. Notas sobre psicanálise e educação. Estilos da Clínica, Ano II, no 2, pp. 27 - 43.

10. Garcia, C. (1998). Psicanálise e Educação. Em: E. M. T. Lopes (Org.). A psicanálise escuta a educação (pp. 11 -33). Belo Horizonte: Autêntica.

11. Pereira, M. R. (1998). O relacional e seu avesso na ação do bom professor. Em: E. M. T. Lopes (Org.). A psicanálise escuta a educação (pp. 151 -193). Belo Horizonte: Autêntica.

12. Almeida, S. F. C. (1999). Psicanálise e educação: entre a transmissão e o ensino, algumas questões e impasses. Conferência. I Colóquio do Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância - A Psicanálise e os impasses da educação. Instituto de Psicologia e Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo: São Paulo.

13. Tomei como referência para o estudo dos quatro discursos o Seminário 17, de Lacan, O avesso da psicanálise, e o trabalho de Ivan Corrêa, intitulado A escrita do sintoma, publicado em 1997 pelo Centro de Estudos Freudianos do Recife.

14. Chemama, R. (1995). Verbete Désir du psychanalyste. Dictionnaire de la psychanalyse. Paris: Larousse.

15. Mendonça Filho, J. B. de (1998). Ensinar: do mal-entendido ao inesperado da transmissão. Em: E. M. T. Lopes (Org.). A psicanálise escuta a educação (pp. 71 -106). Belo Horizonte: Autêntica.

16. Pereira, M. R. (1998). Op.cit.

Sandra Francesca Conte de Almeida

   sandral@uol.com.br

 


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