Thème: Le rapport de la Psychanalyse à L'Art, à la Litérature, à la Philosophie.

 

 

O Fetiche, Subversão do Símbolo**

Tania Rivera

 

"Quem sonda o símbolo assume todos os riscos."

Oscar Wilde

 

            O símbolo sempre foi um conceito-chave em psicanálise. Não que esta disciplina proponha uma listagem de símbolos que apresenta entre os dois termos uma relação constante e inequívoca, como os populares manuais de interpretação de sonhos. Interessa à teoria psicanalítica sobretudo a discontinuidade entre o símbolo e o termo simbolizado, muito mais que qualquer "simbólica". Pois esta ruptura é uma condição básica do funcionamento psíquico concebido por Freud. Do trabalho do sonho à construção do sintoma, passando pelo lúdico labor do "brincar" infantil, que leva às mais altas realizações culturais, deparamo-nos com o ato de substituir, simbolizando.

            A simbolização pode, de fato, ser "a condição de possibilidade do desejo, do pensamento, do fantasma, e a instauração de uma relação viva com a morte, com o tempo, com a castração", como formula Jean Florence(1). Mas estaria ela exclusivamente ligada ao registro da neurose? Sem dúvida, esta atividade apresenta, desde Lacan, uma intimidade assumida com a estrutura neurótica, como sugere acima a "relação viva com a morte" e "com a castração". Mas a simbolização concebida por Freud como "criação do símbolo da negação (Verneinung)"(2) não pode estar restrita a alguns seres humanos (nem tampouco à maioria deles, considerando-se que seja verdade que os neuróticos estejam em tão grande número): ela é universal, e constitui justamente o que define o ser humano como ser de cultura.

            Onde estão os não-neuróticos — os psicóticos, os perversos — senão na cultura? Não nos deixemos cair no estereótipo do "homem-lobo" — essas histórias fascinantes de crianças perdidas na selva, que não têm nenhum tipo de relação com humanos durante anos, vivendo como lobos ou outra espécie que as tenha adotado. Os psicóticos e os perversos estão longe de ser homens-lobos, apesar de certas elaborações teóricas de Lacan, tomadas de forma extremamente superficial, poderem sugerir este tipo de imagem. Dizer que o psicótico rejeita, forclui, ou seja, coloca fora da simbolização — sem apelação —, não quer dizer que ele esteja totalmente excluído do funcionamento simbólico, e absolutamente incólume à castração. Afirmar que o perverso chega de alguma forma mais próximo da castração, sem no entanto que ela opere de maneira efetiva, não significa que ele permaneça à margem do universo simbólico.

            Devemos abandonar esta espécie de etnocentrismo neurótico que costuma guiar a teorização psicanalítica, e abordar o que se distancia da configuração neurótica de maneira menos "negativa", apenas pelo que aí falta em relação ao neurótico. Devemos tentar conceber seus modos de funcionamento próprios. Pois psicóticos e perversos também "funcionam", bem ou mal — e em que universo este funcionamento poderia se dar senão no simbólico?

            Esta é a preocupação que guia as minhas observações sobre o fetichismo. Lançarei aqui algumas bases para um modelo do funcionamento indicado pelo fetiche, sem me ater à questão dele poder ou não ser expandido à perversão em geral. Nós veremos que o fetichismo lança um desafio, que eu aceitei: o de se conceber uma substituição simbólica que não realize de maneira efetiva a travessia da perda da coisa. Tal é o paradoxo do fetiche que será aqui focalizado.

 

Magia e desconhecimento

            Segundo Freud, o fetichista recusa a realidade da falta de pênis na mãe, pois aceitar esta falta implica em reconhecer que sua própria possessão de um pênis está ameaçada. Ele encontra, então, um substituto ao pênis que falta à mãe: o fetiche. Mas a recusa (Verleugnung) da falta que aí está em jogo não deve em absoluto ser confundida com uma alucinação do pênis:

"O menino não contradisse simplesmente sua percepção, e alucinou um pênis onde nada podia ser visto; ele não fez mais do que um deslocamento de valor — transferiu a significação do pênis [die Penisbedeutung] para outra parte do corpo (…)."(3)

            Parece, então, haver a possibilidade de se anular radicalmente esta percepção: ela corresponde à alucinação, e é, neste texto, ligada à psicose. Já a defesa colocada em prática no fetichismo seria menos radical, ela fica numa espécie de meio-termo, o que é indicado pela idéia de que duas correntes subsistem neste caso: tanto a corrente que está de acordo com a "realidade", quanto a corrente conforme ao fantasma. O fetichista conserva a crença de que as mulheres possuem um pênis, e ao mesmo tempo a abandona.

            Apesar das aparências, a defesa psicótica que consistiria numa alucinação do pênis presente está longe de ser bem estabelecida teoricamente. No trecho citado ela tem, me parece, a função de atenuar o que o estudo do fetichismo traz de surpreendente: o fato dele recolocar em questão a própria noção de "reconhecimento" da realidade que funda o processo secundário. Pois a atitude ambígua do fetichista face à castração materna é a atitude de todo Édipo. É esta contradição que marca a clivagem do Eu, e deslancha a fuga metonímica do desejo. A recusa é inerente à inscrição desta percepção, ao seu reconhecimento efetivo. Temos uma ilustração disto num pequeno e curioso texto de Freud: "Uma nota sobre o bloco mágico", de 1924.

            Freud eleva o bloco mágico à condição de metáfora do aparelho psíquico em sua totalidade. Nele, o papel da percepção como material básico do psiquismo é reiterado, mas a percepção nada mais é do que uma escrita feita de sulcos que atravessam as instâncias psíquicas, gravando-se. As marcas que a percepção inscreve passam pelo para-excitação (folha de plástico), em seguida pelo sistema Percepção-Consciência (folha de papel), até se fixarem definitivamente, como sulcos, na prancha de cera (Inconsciente). O inconsciente tem origem, desta forma, nos traços mnésicos, de acordo com uma elaboração freudiana muito precoce e persistente. Mas esta irrupção perceptiva propriamente traumática, tanto pelo excesso de prazer da primeira satisfação quanto pela irremediável frustração que se segue, é sobretudo um corte, incisão transversal ao aparelho psíquico em toda a sua profundidade.

            Este movimento da percepção em direção ao Inconsciente é ainda duplicado por um vetor em sentido contrário, o do investimento inconsciente que vai em direção ao sistema Percepção-Consciência. Se este investimento não se dá de maneira concomitante à percepção, ele não abre caminho para a sua inscrição, e esta não será levada em consideração, não será efetiva. Como o investimento inconsciente é emitido em "rápidos impulsos periódicos"(4), ele escande o trajeto da percepção através do aparelho. A alternância dos dois vetores marca assim uma primeira descontinuidade, uma oscilação entre reconhecimento e recusa.

            Graças à sua possibilidade de desinvestir o Percepção-Consciência, o Inconsciente tem o poder de anular o ataque perceptivo. Basta, como no bloco mágico, que um movimento seja efetuado para que a marca sobre o sistema Pc-Cs seja apagada — e eis a superfície lisa novamente, pronta para receber novas percepções. Mas que isso não nos engane: o sulco está mesmo assim traçado, indelével, sobre a camada de cera, ainda que ele não seja perceptível numa primeira mirada. Ora, este engodo caracteriza a atividade do aparelho apresentado por Freud como um instrumento de memória, que logo torna-se um aparelho de desconhecimento.

            A possibilidade de se recusar a percepção da falta se situa, assim, em uma continuidade em relação ao reconhecimento desta falta. Ou, como diz Freud, o jovem Édipo encontra-se tomado em um "vaivém entre recusa e reconhecimento"(5) da percepção da falta.

 

 "Eu bem sei…mas ainda assim"

            O fetichismo é compromisso, insiste Freud, entre reconhecimento e recusa de re-conhecimento da falta do pênis materno(6). O fetiche parece subverter esta falta, ao se propor como substituto do pênis materno; paradoxalmente, ele é um "monumento" ao próprio horror da castração(7). Já o neurótico parece reconhecer a falta e a ela se curvar. Mas ele está sempre disposto a contestá-la, construindo a partir da negação (Verneinung) toda uma rede de substituições, o que permite ao desejo encontrar seu impulso como busca do objeto perdido. Encontramos este funcionamento na célebre fórmula de Octave Mannoni: "Eu bem sei… mas ainda assim", evocada como estrutura desta posição equívoca face à falta do pênis materno. "O neurótico, afirma Mannoni, passa seu tempo a articular [esta frase], mas ele (…) não pode, sobre a questão da existência do falo, enunciar que as mulheres ainda assim o possuem: ele passa seu tempo a dizê-lo de outra maneira". "De outra maneira": pelo sintoma. Já o fetichista "bem sabe que as mulheres não têm falo, mas ele não pode acrescentar nenhum "ainda assim", porque, para ele, o "ainda assim" é o fetiche"(8).

            Em vez de dizer "de outra maneira" o "ainda assim", em uma cadeia de transformações, o fetiche é estanque. Pode-se dizer que ele é a cristalização do "vaivém entre recusa e reconhecimento" em uma posição extrema, e neste sentido ele difere fortemente da solução neurótica. Contudo, esta posição extrema não corresponde a uma anulação radical do reconhecimento. A recusa fetichista não consegue tornar efetivamente não-ocorrida a falta. O fetiche só existe porque a mãe não tem pênis. Poderia-se até supor que o fetiche realiza a síntese inimaginável entre falta e não-falta, se ele não fosse constituído por esta falta, as duas possibilidades em jogo sendo não a falta e a presença, mas a recusa ou o reconhecimento da falta. A Verleugnung nunca é recusa de uma presença (o que levaria ao absurdo de dizer que o fetichista recusa a existência da vagina da mulher), mas sempre recusa da falta.

 

O trabalho do fetiche

            O dispositivo fetichista e a operação neurótica se situam em um mesmo nível, os dois sendo decorrentes da possibilidade de desconhecimento (ou mal-conhecimento) da falta da coisa. A favor desta concepção pesa também o fato de que os dois dão provas de uma "elaboração" do objeto. Ou seja, o fetiche é trabalhado como objeto perdido, ele é construído. Pois, como já disse, ele é o substituto (Ersatz) do pênis que falta à mãe(9). Esta operação de substituição é analisada por Freud através de uma analogia — que está longe de ser fortuita, diga-se de passagem — com a amnésia traumática. É a última percepção antes do estranhamente inquietante que será retida, como último ponto de apoio frente ao que, por natureza, não pode ser apreendido como percepção. Que esta gênese se dê no espetáculo de desnudamento da mãe explica a preponderância de certos objetos como fetiches: peças de lingerie, cabelos que lembram os pêlos pubianos, sapatos e pés que a criança contempla do seu ângulo de visão, ou seja, de baixo. "Últimas" coisas vistas antes do surgimento do invisível. Prevalência, assim, de um movimento metonímico.

            Trata-se de uma sequência quase cinematográfica, que deve suportar um "congelamento da imagem"(10), uma interrupção da sequência. A cena é de suspense: estamos no momento imediatamente anterior, mas já diante da terrível revelação. O fetiche é prefigurado neste hiato, neste instante de ansiosa expectativa. Esta suspensão é momento de gozo extremo onde parecem de fato se reunir a falta e a não-falta.

            Se o processo de construção do fetiche parece ser guiado por um movimento metonímico, o fetiche produzido pode dar mostras de uma determinação aparentemente metafórica. Assim, o pé pode representar o pênis por semelhança, por ser apêndice. Mas o fetiche que toma, para Freud, valor de paradigma, é um certo tapa-sexo, que vela tanto a falta como a suposta não-falta, numa perfeita paralisação da imagem, um segundo antes da revelação. Se este tapa-sexo possui um caráter "metafórico", este apresentaria uma relação privilegiada com a falta do "objeto". Esta falta seria aí de alguma maneira reabsorvida, em um só movimento totalizante da imagem. Estranha metáfora, à qual voltaremos em breve.

            O dispositivo neurótico de desmentido face à falta do pênis materno também implica, evidentemente, numa "elaboração" do objeto do desejo, através de toda uma rede de operações metafóricas e metonímicas que sustentam o movimento do desejo. Está aí em jogo uma eleição de objeto, uma escolha que a ereção do fetiche pareceria exemplificar. A idealização do objeto seria, neste sentido, comum aos dois tipos de elaboração. Este aspecto é realçado por Freud em seu primeiro verdadeiro modelo da gênese do fetichismo, apresentado em 24 de fevereiro de 1909 em reunião da Sociedade psicanalítica de Viena, cuja ata estava há até alguns anos desaparecida(11). Esta tese, da qual ele faz um rápido comentário em seu artigo sobre o recalcamento, parte da constatação de que a execração do objeto e a valorização do objeto nada mais são que as duas faces do mesmo corte produzido pelo recalcamento. A idéia está implícita na própria concepção de recalcamento: os objetos das pulsões parciais, embora proibidos, guiarão eles próprios a escolha dos objetos idealizados, por transformação e/ou substituição. É como se a "idealização" revelasse, retroativamente, a proibição anteriormente proferida aos objetos "primários".

            Anteriormente: este esquema do recalcamento comporta, de fato, uma temporalidade. Tal cronologia é justamente o que será subvertido pelo mecanismo que guia a criação do fetiche, o "recalcamento parcial": a defesa efetua, ao mesmo tempo, recalcamento e idealização — o que implica numa divisão da representação de pulsão (Triebrepräsentanz) em dois "pedaços", cada um deles conhecendo um desses destinos. Tal é a base da distinção esboçada por Freud entre o fetiche magnificado e o objeto idealizado. Neste último caso, a idealização, que atua na escolha amorosa, deriva-se de "reminiscências" (sic) que fixam os traços, os atrativos que agem como "condições prévias do amor". Já o fetiche não se deixa compreender a partir desta fórmula. Como o neurótico, o fetichista dá mostras da eclipse de um prazer pulsional, pelo recalcamento; mas nesse caso "o objeto direto de seu complexo é separado da pulsão e erigido em fetiche."(12) Esta "elevação" em fetiche é uma "magnificação" (o termo é de Freud: Hochschätzung) que se produz de supetão: "Se ocorre recalcamento desta pulsão [no caso, a pulsão escópica], o que estava no centro das cenas de desnudamento de repente emerge 'magnificado' deste recalcamento"(13).

            O fetichista dá, assim, provas de recalcamento, o que permite que Freud trace, neste momento (em 1909), uma nítida distinção entre fetichismo e perversão: a perversão é o positivo do fetichismo(14), assim como a neurose é considerada, na retórica inversa dos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", como o negativo das perversões.

 

Uma Metáfora Concreta

            Se o fetiche é um objeto construído, a operação que rege esta construção parece atuar em outros palcos além do cenário sexual fetichista. Segundo Guy Rosolato,

"A operação fetichista é exemplar da atividade de pensamento porque o negativo (a ausência de pênis) desmentido, por sua vez negativado, dá ao objeto, fetiche ou obra de arte, um contato e uma abertura metafórica ao desconhecido."(15)

            Eis recolocado o problema da determinação metafórica do fetiche. Nós acompanhamos a gênese do fetiche segundo Freud, como deslizamento metonímico que se detém às margens da falta, imediatamente antes, mas já diante do estranho (Unheimliche) irrepresentável, e que por esta paralisação mesma o representa. "Representação" que não deixa de ser problemática, pois o fetiche não simboliza o pênis que falta no sentido em que entraria em um jogo de substituições. O bebê que simboliza o pênis, para a mulher, ou o excremento que se equivale ao falo, para o obsessivo, não são fetiches. São duas das posições possíveis na cadeia de substituições proferidas pelo prolixo "ainda assim" neurótico.

            Já o tapa-sexo promovido à condição de fetiche não é um símbolo do pênis. Ele é o pênis.. Ele "significa" (bedeutete) ao mesmo tempo a recusa e o reconhecimento da falta do pênis materno(16). Este caso é exemplar da "posição cindida" que caracteriza o fetichismo, e Freud o qualifica de "sofisticado" e "particularmente sólido". Não é difícil notar aí o mais marcante traço estrutural do fetichismo, que Freud nos faz ver através do olhar da criança: sobrevôo em torno da coisa (de baixo para cima: sapato, tecidos, peças de lingerie), até o momento de congelamento da imagem, súbito foco em primeiro plano do objeto assim tornado fetiche. Exatamente antes mas já diante do "inquietante e traumático"(17): a cristalização se produz, em última análise, dentro da fenda, ela é concretização da falta. Esta fórmula é paradoxal de propósito, este é o próprio paradoxo que singulariza a construção do fetiche: de ser a falta presentificada, e assim tornada, segundo a expressão de Freud, sólida..

 

Um Objeto Evanescente

            Metáfora e metonímia são mecanismos de substituição que requerem obrigatoriamente a travessia da distância entre o primeiro signo e aquele que vem representá-lo. O pé só seria propriamente um substituto metafórico do pênis materno se ele negasse o pênis ao tomar seu lugar. Se for concebido segundo este esquema, o fetiche perde sua singularidade, sua surpreendente capacidade de significar ao mesmo tempo reconhecimento e recusa da falta. Ele parece, antes, subverter este mecanismo de substituição, eliminando o hiato existente entre o símbolo e o que ele representa. Ora, como apenas a Verneinung pode conferir aos objetos sua consistência real, em consequência deste processo o fetiche perde sua própria "realidade", e torna-se um objeto evanescente, que a rigor não é um "objeto". Ele é apenas certo brilho no nariz, por exemplo, no caso mais desconcertante de fetiche apresentado por Freud: o do "brilho" do nariz (em alemão: Glanz auf der Nase) que deve ser simplesmente entendido como uma "olhada" sobre o nariz (do inglês: glance)(18). Aqui o desvanecimento do objeto é radical, em proveito do puro olhar que é, por si só, capaz de conferir um brilho fascinante.

            Já o tapa-sexo envolve a falta, sustentando simultaneamente duas possibilidades: seu mascaramento (já que ele a encobre) e seu desvendamento (posto que a reveste). Seria ele uma metáfora do pênis que falta? Não, pois ele não o substitui, mas o "representa" de maneira imediata, erigindo, por assim dizer, a falta como "objeto". Deste imediatismo vem sua contradição fundamental de remeter ao mesmo tempo à falta e à não-falta. O tapa-sexo, como o brilho do nariz, torna-se um puro olhar envolvendo o pênis que falta.

            Se o pênis da mãe pode ser simbolizado por alguma coisa, isto supõe que sua falta foi efetivamente reconhecida, e que o pênis que falta entrou num jogo de substituições metafóricas e metonímicas. Ou seja, um símbolo do pênis da mãe deve percorrer a distância entre o "eu bem sei…" e o "mas ainda assim". Esta distância é precisamente o que o fetiche vem preencher. Poderia-se então pensar que ele se fixa fora do domínio de toda e qualquer simbolização. Freud parece considerar tal hipótese, quando ele fala de alucinação do pênis materno — mas é justamente, como vimos, para rechaçá-la energicamente. Ele insiste no trabalho de construção do fetiche. Afinal, não estaria aí toda a astúcia do fetichista, em construir um "símbolo" sem passar pela morte da coisa? A questão é saber como isto torna-se possível.

            Vamos voltar ao "congelamento" na construção do fetiche: ele circunscreve a falta da coisa, em vez de levá-la em consideração para apresentar um substituto do pênis materno. O fetiche também é substituto (Ersatz); porém, ele substitui não o pênis, mas sua falta. É neste sentido que ele é um "monumento" à castração.

 

O Fetiche e o Ícone

            No entanto, este estranho substituto da falta toma como protótipo, nota Freud, o pênis do homem(19). O fetiche apresenta em regra geral, apesar de tudo, uma certa semelhança ao pênis que falta à mãe. De fato, sua construção pode ser ligada à categoria da metáfora, ou pelo menos a um de seus "momentos". Este momento é apresentado, de forma inovadora, pelo lingüista americano Paul Henle em interessante estudo sobre a metáfora.

            Henle faz uso da categoria de ícone, de Charles Sanders Peirce, para dizer que a metáfora "conduz a pensar em alguma coisa considerando alguma coisa parecida; é o que constitui o modo icônico de significar"(20). Um dos exemplos apresentados por Henle é um curto trecho de Virginia Woolf: "Um simpático tordo saltitou ao longo da relva, um anel de elástico róseo enrolado no bico"(21). O verme contorcido é aí descrito nos termos de uma outra situação, o que caracteriza, para Henle, uma metáfora. Esta figura de linguagem depende de uma analogia, na qual um dos termos é utilizado para apresentar o outro. No texto de Woolf, a aparência de um verme é apresentada através de sua semelhança com um pedaço de elástico.

            Henle dirá, apoiando-se sobre a poesia, que o ícone não é, obviamente, apresentado como tal na metáfora poética, mas que a metáfora descreve como se faria a construção de um ícone. A metáfora seria uma "fórmula" para a construção de ícones (22). Virginia Woolf não nos mostra um anel de elástico — dado que um anel de elástico simplesmente não pode fazer parte de uma sentença —, mas ela nos descreve um anel deste tipo. É como se ela dissesse: "pegue um pedaço de elástico cor de rosa de um tamanho que possa ser carregado por um tordo, e você terá um ícone do que estou querendo dizer".

            O ícone está longe de ser a "imagem mental" de um referente, no sentido de uma certa psicologia. Ele é um signo que, sendo imediato, pois remete diretamente a seu "objeto"(23), ao mesmo tempo apresenta traços análogos a seu "objeto", e mostra mais sobre ele do que estes traços. Como diz Peirce: "importante propriedade característica do ícone é a de que, observando-o diretamente, podem ser descobertas outras verdades concernentes a seu objeto, além daquelas que bastam para determinar sua construção. Assim, por meio de duas fotografias pode-se traçar um mapa, etc" (24). Esta propriedade do ícone é extremamente importante: ela aponta para uma espécie de "magia" que não é estranha nem ao fetichismo nem, diga-se de passagem, à arte.

            A estrutura do fetiche me parece especialmente próxima do diagrama colocado por Peirce como exemplo de ícone. O diagrama extrai de seu "objeto" apenas alguns traços — que não são mais do que puros traços, relações entre suas partes, se preferirem — e contudo é capaz de remeter a este objeto em sua "totalidade". Não poderia o fetiche ser concebido como a projeção geométrica dos contornos da falta, mas que no entanto significa o pênis (que falta)? Como se o puro "formato" do pênis se tornasse o "protótipo" — para usar o termo de Freud — de sua própria falta? Estas fórmulas parecem ecoar uma estranha propriedade do ícone que Peirce tenta, à sua maneira, explicitar no seguinte trecho:

«Na realidade, um diagrama, na medida em que possui uma significação geral, não é um puro ícone; mas, durante nosso raciocínio, esquecemos em grande parte seu caráter abstrato, e o diagrama torna-se para nós a própria coisa. Assim, contemplando um quadro, há um momento em que perde-se a consciência de que ele não é a coisa, a distinção entre o real e a cópia desaparece, e é neste momento puro sonho — não uma existência particular, logo não geral. Neste momento contemplamos um Ícone."(25)

            O fetiche toma de seu objeto alguns traços — talvez o seu puro formato, como um recorte feito em uma fotografia —, e através disso ele consegue a façanha de concretizar este vazio delimitado. Ele torna-se, então, "a própria coisa". Assim pode-se pensar os diversos exemplos de fetiche, tão disparates como o sapato, o tapa-sexo e o puro olhar envolvendo o nariz, a partir de uma mesma lógica: a de ícones construídos pelo encobrimento de seu "objeto" (no sentido peirceano(26)) que é a falta do suposto pênis materno.

            Como vemos, o elemento icônico da metáfora indica uma possibilidade de que esta se situe, ao menos em um de seus "momentos" (como diz Henle), na dimensão peirceana da "primariedade", logicamente anterior ao símbolo que é determinado de maneira triádica. É importante frisar que não se trata de uma característica geral e definitória da metáfora, mas apenas de uma possibilidade indicada por seu modo de funcionamento. Não deixa de ser interessante que Henle tenha ido pinçar esta noção no domínio da poesia. Será que a metáfora poética escreve uma construção análoga à do fetiche?

            O gozo fetichista parece, com efeito, análogo ao "momento de puro sonho" do qual fala Peirce, a propósito da contemplação estética de uma obra de arte. Este estranho parentesco entre fetiche e arte merece ser estudado mais em detalhe, o que devo renunciar a fazer neste artigo. Fica, mesmo assim, a ressalva: o fetichista não é necessariamente um artista. Mas ele faz arte, de uma certa maneira (como se diz de uma criança que ela "fez arte"). O seu fetiche é uma artimanha que parece salvá-lo da falta, se bem que esta esteja irremediavelmente inscrita no próprio fetiche. Pois, como diz Gherasim Luca, "a não-ferida é a cicatrização implícita de uma ferida loucamente ignorada"(27).

 

Tania Rivera

rivera@tba.com.br

 

Notas

**Publicado em Percurso. Revista de Psicanálise, 1997, nº 19

(1) Florence, J., "La Symbolisation chez Freud", in Correspondances Freudiennes, outubro 1994, n° 42, p. 13.

(2) Freud, S., "A Negativa" (1925), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (ESB), Rio de Janeiro, Imago, vol. XIX, p. 300. Esta e as demais citações de Freud foram eventualmente modificadas, de acordo com o original alemão.

(3) Freud, S. "A Divisão do Ego no Processo de Defesa" (1938), ESB, vol. XXIII, p. 311.

(4) Freud, S., "Uma Nota sobre o Bloco Mágico" (1924), ESB, vol. XIX, p. 290.

(5) Freud, S., "A Divisão do Ego no Processo de Defesa", op. cit., p. 312.

(6) Muitos autores indicam uma pré-figuração ou um 'presságio' da falta por parte da criança, frente aos órgãos genitais femininos. Henri Rey-Flaud considera a teoria infantil do pênis universal como sendo uma figuração (Darstellung) e não uma representação (Vorstellung), o que o leva a ver nesta teoria a consequência de uma espécie de "denegação originária" da falta. Cf. Rey-Flaud, H., Comment Freud Inventa leFétichisme… et Réinventa la Psychanalyse, Paris, Payot & Rivages, 1994, p. 153-159. Janine Chasseguet-Smirgel declara-se surpresa, por sua vez, com a "intensa curiosidade visual" apresentada pelo menino em relação aos órgãos sexuais da mãe, da qual fala Freud em seu estudo sobre Leonardo da Vinci. "A intensidade da curiosidade não viria antes de uma 'pré-ciência' de uma diferença?", indaga esta autora. E argumenta: "A convicção de que há uma reduplicação dos próprios órgãos sexuais na mãe deveria conduzir, ao contrário, a uma estase da curiosidade, o 'jovem investigador' não tendo nada a descobrir que ele já não saiba". Chasseguet-Smirgel, J., Éthique et Esthétique de la Perversion, Seyssel, Champ Vallon, 1984, p. 51.

(7) Freud, S., "Fetichismo" (1927), ESB, vol. XXI, p. 181.

(8) Mannoni, O., "Je Sais Bien, Mais Quand-Même…", in Clés pour L'imaginaire ou l'Autre Scène. Le Théâtre et la Folie, Paris, Seuil, 1969, p. 11-12.

(9) Freud, S., "Fetichismo", op. cit.., p. 180.

(10) Como nota Paul-Laurent Assoun em seus estudos sobre o olhar e o fetichismo. Cf. Assoun, P.-L., Leçons Psychanalytiques sur le Regard et la Voix. Tome 2: Figures, Paris, Anthropos/Économica, 1995, p. 14-15; e Le Fetichisme, Paris, P.U.F., 1994, p. 87 (coleção Que Sais-je?).

(11) Este manuscrito foi encontrado no fundo Otto Rank da Universidade de Columbia, entre as notas daquele que exercia o papel de secretário durante as reuniões. Ele foi publicado em inglês em 1988, no Psychoanalytic Quaterly (t. LVII, pp. 147-166). Em francês ele recebeu o título "De la Genèse du Fétichisme", e foi publicado na Revue Internationale d'Histoire de la Psychanalyse (n° 2, Paris, P.U.F., 1989, pp. 423-439). O original só foi publicado em 1992: "Zur Genese des Fetichismus", in Federn, E. et Wittenberger, G. (Org.), Aus dem Kreis um Sigmund Freud, Frankfurt am Main, Fischer Taschenbuch, p. 10-22.

(12) Note-se que os exemplos aí evocados por Freud são de pulsão escópica (Sehtrieb) e coprofílica. Freud, S., "Zur Genese des Fetichismus", op. cit., p. 16.

(13) Ibid., p. 13.

(14) Ibid., p. 16.

(15) Rosolato, G., "La Pulsion de Mort en Tant Que Mythe", in Psychanalyse à L'Université, 1988, 13, 50, p. 255.

(16) Freud, S., "Fetichismo", op. cit.., p. 184.

(17) Ibid., p. 182.

(18) Ibid., p. 179.

(19) Ibid., p. 185.

(20) Cf. Henle, P., "Metaphor", in Language, Thought and Culture, Ann Arbor, The University of Michigan Press, 1958, p. 177.

(21) Ibid.., p. 177.

(22) Ibid., p. 177-178.

(23) "Um Ícone é um Representamen cuja Qualidade representativa é uma sua Primariedade como primeiro, isto é, uma qualidade que ele possui qua coisa torna-o apto a ser um Representamen. (…) Um Representamen, por simples Primariedade, só pode ter um Objeto similar". Peirce, Ch. S., Semiótica e Filosofia, São Paulo, Cultrix, Editora da Universidade de São Paulo, 1975, p. 116.

(24) Ibid., p. 117.

(25) Ibid., p. 144-145. Grifo meu.

(26) "Os objetos — pois um signo pode ter vários — podem, cada um deles, ser uma única coisa existente conhecida ou uma única coisa que acreditamos que existiu anteriormente, ou que esperamos que exista, ou uma coleção de coisas, ou uma qualidade ou uma relação ou um fato conhecidos". Peirce, Ch. S., Écrits sur le Signe, Paris, Seuil, 1978, p. 124.

(27) Luca, G., Le Secret du Vide et du Plein, Bucarest, Infra-Noir, avril 1947, p. 2.


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