PORQUE O GENOCÍDIO ?

Helena BESSERMAN VIANNA
Carlos Alberto BARRETO
Wylson Lyra de CHEBABI

                  Etimologicamente o termo genocídio deriva de geno, elemento composto do grego gen, radical de gignestai- "originar-se, provir"- que se documenta em alguns compostos introduzidos na linguagem científica internacional, à partir do séc. XIX como genocídio e cídio, do latim cida, cidium, derivado de caedere - "matar". Genocídio significa então matar o que se origina1.
                  A primeira consideração que podemos fazer é a de que do ponto de vista psicanalítico, a fecundidade instiga uma inveja que aciona o desejo de exterminar não só em particular uma raça, mas a própria fecundidade, a força de originar.
                  O termo genocídio foi usado pelo advogado judeu polonês Raphael Lemkin em seu livro "Axis in Europe" (1946). Em 11 de dezembro de 1946 as resoluções 95 e 96 da ONU condenaram o genocídio como crime nas leis internacionais. As resoluções convencionaram que não somente os assassinatos, mas também outras ações de extrema natureza contra os seres humanos, grupos ou indivíduos, são considerados como genocídios. Uma das maiores aquisições da ONU é sua aplicação a todo criminoso independente do "status", isto é, aos encarregados das leis e da ética que lidam com responsabilidade legislativa, seja por atos contra funcionários públicos (p. ex.) ou por indivíduos independentes.
                  O texto foi acatado pela Assembléia Geral de 08 de dezembro de 1948. Em janeiro de 1949, 67 países o ratificaram, alguns (?) com reservas.2345
                  O maior genocídio do sec. XX foi, sem dúvida, o dos judeus alemães e dos países ocupados pelo regime nazista. Aproximadamente 6 entre 7 foram mortos nos campos de concentração e nos progroms. O próprio risco em que o povo judaico sempre viveu acionou necessariamente uma necessidade de se reproduzir o mais possível e deixar descendentes que perpetuassem os pais.
                  Em l915 os turcos praticaram ato genocida contra os armênios. O governo turco resolveu deportar toda a população armênia do país (por volta de 1 750 pessoas) para a Síria e a Mesopotâmia. Em torno de 600 armênios morreram massacrados na viagem.
                  Mas a história registra o pior genocídio que foi o de numerosos grupos ameríndios pelos conquistadores europeus e seus descendentes. Essa prática continua em certas regiões, especialmente na Amazônia, onde as populações indígenas são perseguidas e massacradas com o uso de meios modernos de extermínio.
                  No Brasil o genocídio é reprimido e definido pela lei 2. 889, de 01 de outubro de l956. É considerado genocida quem, com a intenção de destruir, no todo ou em particular, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso: É evidente que o crime não faz as vítimas só a partir da raça física. O odiado é a etnia com seu sistema cultural e ideológico e que põe em questão a universalidade do sistema do exterminador.

1. matar membros do grupo
2. causar lesão grave a integridade física ou mental dos membros do grupo;
3. submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física, total ou parcial;
4. adotar medidas que impeçam nascimento no seio do grupo e
5. efetuar transferência forçada de crianças de um grupo para outro.6

                  No Brasil, no séc. XIX, houve um movimento religioso chefiado pelo beato Antônio Conselheiro (Antônio Vicente Mendes Maciel) a quem se atribuía a condição de enviado de Deus. Um grupo de sertanejos organizou-se em comunidade armada (1893)com o propósito de minorar o sofrimento da população rural e reparar os pecados do regime republicano que instituíra o casamento civil e rompera o vínculo que unia Igreja e Estado. Esse movimento e conhecido como CANUDOS porque ocorreu no Arraial de Canudos - Estado da Bahia. Em seu ápice, o Arraial reunia em torno de 25 mil indivíduos organizados em uma comunidade autônoma e auto - suficiente. A comunidade ameaçava tanto os senhores da terra quanto os governos estadual e federal. Após acharem um pretexto (pró-monarquia), o governo enviou para Canudos (1896), contingente policial que foram derrotados pelos sertanejos. Foi dada de Canudos não o entendimento de uma explosão contra as injustiças, o de uma rebelião anti-republicana.
                  Ainda aqui não se trata do extermínio de uma raça e sim de uma consciência, assumida por um grupo ou por uma comunidade, do que considera injusto e errôneo no sistema convencional e este se vale de distorções e falácias para racionalizar os seus impulsos a procurar exterminar a fecundidade do sistema social e ideológico que não confirma nem bajula a versão dominante.
                  Enfim, foi enviado um exército que, após forte resistência, logrou exterminar a comunidade. No embate foram utilizadas armas modernas recém importadas da Europa. A cabeça de Antônio Conselheiro foi decepada e apresentada como troféu. EUCLIDES DA CUNHA em " OS SERTÕES " descreve a aposição entre a sociedade urbana e a sociedade rural brasileira, massacrada pela ignorância e pela condição miserável. O desfecho da guerra foi dantesco: 04 sobreviventes - 01 velho, 02 homens feridos e 01 criança, a frente dos quais rugiam raivosamente 5mil soldados.
                  Os exemplos citados referem-se aos genocídios historicamente conhecidos. São os genocídios do passado. Vamos agora citar exemplos do passado presente e os atuais.
                  Em 1968 foi preso durante a ditadura brasileira, um frade dominicano conhecido como Frei Tito. O seu crime foi o de ter alugado um sitio de sua propriedade para que estudantes realizassem um encontro não permitido em local público como era desejado. Pois bem ! Frei Tito foi preso, torturado barbaramente e expulso do país. Aos 31 anos de idade, em 07 de agosto de 1974, não suportando a tortura que lhe consumia as entranhas, suicidou-se, ou como foi reconhecido pela Igreja, sucumbiu à tortura. Terminava a violência da tortura que transformara sua vida em um suplício. Foi sepultado no cemitério dominicano de Sainte Marie de la Tourette e em l983 foi transladado de Lyon para o Brasil onde foi solenemente recebido e os restos mortais repousam em sua terra natal , Fortaleza.
                  Em 1995, 34 trabalhadores rurais foram assassinados e 21 presos em 1996, 49 mortos e 13 presos;
                  em 1997, 26 mortos e 177 presos;
                  em 1998, são 38 mortos e 141 presos e, não finalmente;
                  em l999, 04 mortos e 57 presos.
Esses dados são de Frei Betto, dominicano como Frei Tito e com ele preso e torturado.
                  Porque o genocídio? Na carta de FREUD a EINSTEIN (setembro de 1932) se coloca um princípio geral de que os conflitos entre os homens tentam ser resolvidos em geral através da violência. O direito (ética) e o poder de uma comunidade têm sido recursos muito precários na resolução desses desastres sociais. Mesmo no seio de uma comunidade não se consegue evitar o conflito de interesses, mesmo que o conflito seja mais prejudicial do que a perda de privilégios. Se a humanidade se unisse no estabelecimento de uma autoridade central, que julgaria todos os conflitos de interesses, poder-se-ia supor que isso seria resolvido. Mas é inútil tentar abolir a inclinações agressivas do homem. Somente a civilização poderá agir simultaneamente contra a guerra.3
                  É de supor que o Estado agiria como antídoto da guerra civil, sempre latente. No entanto, o Estado representa a comunidade no monopólio da violência. Nem o Estado, nem o intelectual, nem as religiões e somente os vínculos afetivos e os processos civilizatórios lutam contra os crimes de guerra e os genocídios.7
                  A gênese do genocídio não encontra nenhuma justificativa objetiva que conduza sequer ao reconhecimento do que leva o homem à prática genocida. Pode-se querer considerar que a luta pelo poder do lucro possa ser a razão objetiva do genocídio e da violência social, já que incontestavelmente toda luta dentro da sociedade oferece negócios e lucros para todos os lados. O genocídio tem oferecido lucros enormes pela captura dos bens dos exterminados. A opulência, contudo, dos vitoriosos pelo massacre dos vencidos, historicamente é seguida das mais terríveis derrocadas. Por que o ser humano não aprende com a sua própria história? Assistimos neste século na América do Sul opulentas ditaduras que, como na Europa, seguiram-se de adversidades terríveis, tanto para a população quanto para os dirigentes. Temos de considerar pois, que a sociabilidade é algo que tem sempre de vencer resistências graves surgidas na natureza mais profunda, inconsciente, irracional e compulsiva.
                  O vínculo social e o reconhecimento de si próprio só se fazem com a presença do Outro que se apresenta como diferente. Essa diferença que nos retira da instintiva reclusão narcísica e egocêntrica, denegada. Aqueles que são diferentes, que pensam diferente, que agem diferente, portanto, fogem ao controle e o "poder produz, a partir do real, domínios do objeto e rituais de verdade "7. O controle é a expressão da pulsão de morte, mundo da alienação e da destruição do indivíduo. Por isto o que incita o ódio contra o diferente não é só a diferença de raça, mas a diferença de história e de cultura que impede que o controle seja exercido. Outras comunidades que giram em torno de entendimentos, valores e práticas diversas não estão devidamente domesticadas. São portanto temidas. Com isto, a alteridade se torna insuportável.
                  Nos grupos envolvidos nos genocídios destacam-se alguns pontos:

1. no fundo da questão está a luta pelo poder onde todos são eleitos;
2. os eleitos tem direito a posse não só territorial como dos seus oponentes;
3. no mundo das idéias a diferença e aparentemente aceita desde que não se faça demonstrativamente presente e
4. a impossibilidade de dialetizar as questões.

                  A imposição de um feitio de vigência da Pulsão de morte é marcante. Este feitio é justamente a aplicação da pulsão de morte para matar delirantemente a morte. Para matar a morte é preciso matar o tempo. Morre-se para não morrer jamais. Daí surgem a homogeneização, a ausência da polêmica criativa para pretender justificar uma verdade única, numa rigidez cadavérica. Cadáver não morre mais. Oponente não diz apenas da sua presença, pelo contrário, afirma a fragilidade do que determina a verdade.
                  Se os crimes genocidas podem ser especulados pelos psicanalistas, a passagem ao ato determina a imperiosa presença da Lei, forjadora da ética, restando a todos nos o cuidado de não torná-lo coisa do passado, mas presentificá-la nas atitudes mascaradas desse crime contra a humanidade.
                  O mais recente genocídio é apresentado ao mundo: no Timor leste, colônia portuguesa desde 1520 e dominada pelos descobridores por 455 anos. Quando de lá saíram os portugueses há 24 anos, a Indonésia ocupou-a militarmente cometendo atrocidades como a eliminação de 1/3 dos 600 mil habitantes da ilha.
                  A independência sempre foi uma aspiração do homem para romper os limites da dominação e a questão se repete.
                  Os judeus prestaram um serviço à humanidade - denunciaram o genocídio na segunda guerra mundial mostrando que é preciso lembrar todas as atrocidades cometidas e a todo instante. Quando na passagem ao ato termina a justificativa terapêutica da psicanálise, persiste a palavra dos psicanalistas enquanto cidadãos. É preciso lembrar. É preciso presentificar o passado para justificar nossa crença na civilização.
                  A psicanálise continua discriminada pela estratégia de sua banalização pelo poder convencional. É a revelação indesejável do que mora nos porões da sociedade e do ser humano, pelas várias versões da experiência e que não fazem ordem unida com os poderes militares, que precisa ser extinto. Neste sentido, pois sempre se encontra uma base etnocida em todo genocídio. São as raízes do judaísmo, do islamismo, das culturas orientais, dos indianos e dos africanos que relativizam as certezas da visão de mundo ocidental acadêmica. A estratégia de extinção das culturas heterogêneas não se pratica só pelas guerras cruentas. Há uma guerra em que estamos imersos sempre e que nos atinge a todos que não se enfileram nas tropas do poder convencional, que é a guerra econômica que vitima a todos. É na miséria que se encontra a multidão de derrotados nesse campo de batalha cruel em que vivemos. Pelo fato de ser a psicanálise um saber que revela essa crueldade, ela também precisa ser cooptada pela sedução dos grandes senhores econômicos, para ser esterilizada. É aí que o etnocídio é genocídio.
                  A ameaça reside na fecundidade.



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

1. Dicionário etimológico da língua portuguesa - Antônio Geraldo da Cunha -Nova Fronteira- 1982
2. Enciclopédia judaica Ketter - N.ROBINSON - Genocide convention (1960).
3. Revue internationale du droit penal, n. 17 (1945) - artigo de LEMKIN.
4. La prophylaxie du genocide - n. 11/13 (1967) e 14/15(1968)
5. Patterns of prejudice (nov./dez 1968 ) -artigo de FAWCETT.
6. Enciclopédia Larousse Cultural - Nova Fronteira - 1998
7. Henriquez E. - Da Horda ao Estado

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