Anulação da dívida
Ricos fazem jogo de cena
(no site da Campanha:
http://www.jubileu2000.hpg.com.br)O escritor Salman Rushdie (autor de Versos Satânicos) já havia pedido pela imprensa mundial o que considerou um "presente cristão" aos mais pobres, com a anulação dos controversos compromissos externos das nações excluídas, sob pena de os mais ricos terem que arcar com um mundo entregue às conseqüências da barbárie. O ano 2000 chegou e nada do presente. Apesar do estardalhaço na mídia, o "perdão" da dívida a países pobres ficou mesmo, pelo menos até agora, só na conversa. Foi na metade do ano passado que os sete países mais ricos do mundo, integrantes do G7, mais a Rússia, participaram de um encontro em Colônia, na Alemanha, quando anunciaram a anulação de 70 bilhões de dólares em dívidas de países do Terceiro Mundo. Depois de tanta pressão, o Fundo Monetário Internacional (FMI) também levantou, discretamente, a bandeira do perdão, anulando as pendências de pouco mais de 30 países, o que significa uma ínfima parte do problema. Na Europa, várias centrais sindicais, ONGs, intelectuais e outros movimentos sociais incorporam essa idéia há pelo menos quatro anos. A mais importante delas, o Comitê pela Anulação da Dívida Externa do Terceiro Mundo, é sediado na Bélgica. O economista, cientista político Eric Toussaint, que coordena os trabalhos, é um especialista em dívida externa do Terceiro Mundo. Nesta entrevista, concedida a Sergio Ferrari, do Serviço de Imprensa da ONG E-Changer, ele trata de como os países mais poderosos vêm sistematicamente protelando essa urgente medida.
Adverso - Estão havendo avanços realmente significativos para os povos do sul em relação à temática da dívida, desde a Cúpula de Colônia (Alemanha), em junho de 1999?
Eric Toussaint - Absolutamente. O G7 anunciou euforicamente em Colônia a anulação de uns 70 bilhões de dólares. Na verdade, como antecipei naquele momento, e que agora é corroborado por outros estudos - entre os quais um informativo elaborado pela Oxfam Internacional -, esta cifra limita-se a uns 25 bilhões de dólares, montante que significa somente 12% da dívida global das 41 nações mais empobrecidas (que, segundo o banco Mundial, chegava em 1998 a 205 bilhões de dólares), mas apenas 2% da dívida total do denominado Terceiro Mundo.
Adverso - Em setembro e outubro de 1999, tanto a Comunidade Européia como o presidente americano reiteraram algumas dessas propostas. O que há de real nesta nova ofensiva midiática dos grandes do planeta?
Toussaint - O montante em jogo - escassos um bilhão de dólares em quatro anos - significa menos de 0,1% do orçamento militar dos Estados Unidos no mesmo período. Por outra parte, um bilhão de redução representam 0,05% da dívida externa total do Terceiro Mundo, que oscila atualmente em uns 20 ou 30 bilhões de dólares (segundo o Banco Mundial, Global Development Finance 199, Washington), montante que não inclui a parte correspondente aos países do ex-bloco do Leste. É surpreendente, e ao mesmo tempo escandaloso, que uma proposta tão mesquinha de parte da maior potência do Planeta tenha sido recebida de forma tão positiva pelos meios de comunicação e, inclusive, por uma parte do mundo das organizações não-governamentais. É lamentável que no quadro dos que lutam a favor da abolição da dívida externa do Sul haja colegas que se mostrem positivos ante a ofensiva midiática da administração Clinton. Quando ainda economistas de direita, como Jeffrey Sachs, têm expressado que a proposta de Washington é totalmente insuficiente.
Adverso - Insuficiente e um tanto cínica, considerando-se a dimensão real do tema da dívida?
Toussaint - Certamente. E nega um elemento histórico chave. A grande crise do endividamento do Terceiro Mundo que estourou em 1982 se deveu em grande parte ao efeito conjugado da alta repentina dos juros, decidida pela Reserva Federal dos Estados Unidos nos finais de 1979; a queda das rendas de exportação dos países do sul e ao freio nos créditos bancários. Sem esquecer algumas cifras decisivas: entre 1982 e 1988, em menos de duas décadas, os países de periferia pagaram em conjunto mais de quatro vezes o que deviam. Mesmo assim, o montante da dívida resultava em 1998 três vezes e meia mais do que em 1982! Crescimento que se acompanha com uma tendência cada vez mais irreversível: a dos credores internacionais, sejam estes o banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Clube de Paris (que reúne os governos do Norte, portanto os credores), ou o Clube de Londres (os bancos privados do Norte), ditando suas condições aos países endividados.
Adverso - Chegamos a um ponto determinante da nova realidade mundial e dos mecanismos de dependência... A relação entre dívida externa e planos de ajuste...
Toussaint - Sem dúvida. Obra mestra dessas condições: a ampliação dos planos de ajuste estrutural que constituem uma ferramenta para domesticar os países de Terceiro Mundo e o Leste Europeu. E que implica no aumento do desemprego (23 milhões de postos de trabalho perdidos no sudeste asiático desde a crise de 1997); redução drástica dos gastos sociais; aceleração das privatizações; degradação da saúde e educação; desajustamento das relações de trabalho; aumento desenfreado do número de pessoas eu vivem abaixo do nível da pobreza absoluta...
Adverso - Junto com isto, a panacéia da iniciativa dos países mais empobrecidos altamente endividados (HIPC), que trata de criar ilusões aos últimos da pirâmide planetária, mas sem resultados até agora muito otimistas...
Toussaint - Acabo de regressar de uma viagem de trabalho a Mali e Senegal, dois dos países que fazem parte das 41 nações mais endividadas involucradas na iniciativa HIPC. Posso afirmar, no caso de Mali, que as medidas tomadas em Washington no final de setembro de 1999, pelo Banco Mundial e o FMI com o apoio do Clube de Paris, representaram, no melhor dos casos, uma redução de somente 8% de sua dívida externa. Além disso, é muito provável que o que pagará Mali depois de ver "reduzida" sua dívida será mais alto do que o país pagou nestes últimos anos e que representou mais de 20% dos ingressos fiscais do Estado. Nada para comemorar! Mali é hoje um país de dez milhões de habitantes, com mais de 80% de analfabetismo e com mais de 70% da população que vive abaixo dos níveis de pobreza absoluta. Com classes escolares com 80 alunos por aula (chegando a 110 no campo). Menos de 10% da população têm acesso a luz elétrica e há duas linhas telefônicas para cada mil habitantes. 34% da população de Mali morrerão antes de chegar aos 40 anos!
Adverso - Poderíamos concluir esta reflexão afirmando que a resolução estratégica e de fundo da dívida externa dos países do Sul está muito longe de qualquer otimismo oficial tal como o apresentam os governos e um setor da comunidade não-governamental dos países do Norte?
Toussaint - Certamente. É um desafio aberto, muito grande, que exige o aprofundamento da mobilização da cidadania que vem aumentando paulatinamente. Constatamos que muitos atores e iniciativas, tanto no Norte como no Sul, multiplicam esta mobilização. Desde o Jubileu 2000, até a ATTAC, que apóia a anulação geral da dívida pública dos países dependentes e a utilização dos recursos liberados a favor das populações e do desenvolvimento duradouro. Nosso comitê, o CADTM, defende a mesma reivindicação da ATTAC internacional. Destacando que, para nós - que apoiamos também a aplicação da Taxa Tobin - esses recursos devem ser colocados em um fundo de desenvolvimento nacional controlado pelos movimentos sociais. Mobilização, mobilização e mais mobilização. Tal como acertamos em junho passado em Paris, no Encontro Internacional, organizado pela ATTAC, coordenado pela CADTM, o Fórum Mundial de Alternativas e a Development of Alternatives for Women in a New Era (DAWN). Acertamos ali encontros de convocação e protestos. Como, por exemplo, durante a próxima Cúpula do G7, de Okinawa, em julho, ocasião oportuna para exigir novamente a anulação da dívida dos países do Sul e do Leste.