As campanhas da dívida
Valter Pomar
(Texto disponibilizado no Site da Campanha: http://www.jubileu2000.hpg.com.br)
Na primeira semana de setembro de 2000, o povo brasileiro terá a possibilidade de dizer o que acha do acordo com o FMI, da dívida externa e da dívida interna brasileiras.
A oportunidade está sendo criada pela "Campanha Jubileu 2000, por um milênio sem dívidas", coalizão composta por igrejas, movimentos sociais, partidos políticos e outras entidades.
A coalizão, que em 1999 já realizou o Tribunal da Dívida, agora está preparando um grande plebiscito popular.
O plebiscito será um marco de uma campanha que não se limita ao Brasil. Forte nos anos 80, meio desaparecida no entre-décadas, a campanha contra a dívida externa ganhou novo alento em meados dos anos 90.
Alguns pensam que o estímulo veio de uma mensagem do Papa, pedindo o perdão da dívida dos países pobres. Outros lembram o contexto criado pela crise de 1994, que atingiu principalmente o México e quebrou o cristal do neoliberalismo.
O fato é que desde então a campanha contra a dívida ganhou fôlego em todo o mundo, sob o guarda-chuva do Jubileu e com o estímulo de várias igrejas.
A idéia do Jubileu faz parte da tradição judaico-cristã, remetendo a necessidade de uma redistribuição periódica das riquezas, para que a sociedade não desabe sobre o peso de sua própria desigualdade. Uma idéia tão generosa, como é óbvio, criou empolgação inclusive onde a tradição dos testamentos é apenas marginal.
Naturalmente, há diferenças entre as várias campanhas contra a dívida. Algumas, como a campanha brasileira, enfatizam a idéia do Jubileu 2000, do "milênio sem dívidas". Outras preferem enfatizar o Jubileu 2000, ou seja, acham que a campanha termina este ano.
A campanha brasileira é unitária e plural, do ponto de vista ecumênico, político e social. Noutros países, a presença da "sociedade civil" limita-se de fato a setores da hierarquia católica e as ONGs.
Ademais, nossa campanha busca ter um caráter de massas, exigindo mudanças na política do governo brasileiro. Noutros países, a campanha constitui um "grupo de pressão", que busca principalmente sensibilizar os governos, os organismos multilaterais e os formadores de opinião dos países ricos.
A campanha brasileira e a coalizão Jubileu Sul --lançada em novembro de 1999, em Johanesburgo, por representantes de 33 países-- vinculam fortemente a luta contra dívida e a luta contra o modelo econômico, com destaque para o comércio desigual, a financeirização e o crescimento da dívida pública.
Outros setores da campanha internacional falam em um novo modelo econômico, mas priorizam de fato o perdão ou a renegociação da dívida, contrastando com o veredito do nosso Tribunal, que fala em cancelamento.
Na mesma linha, a coalizão Jubileu Sul opta pelo confronto com organismos internacionais como FMI e Banco Mundial, enquanto outras campanhas cooperam com estes organismos, inclusive se dispondo a participar de programas de "troca de dívida por investimentos".
Vale lembrar a profunda diferença existente entre os países devedores. De um lado, há mais de quarenta países pobres altamente endividados, que estão em situação falimentar. Para estes países, o Banco Mundial está propondo cancelar dívidas, em troca de investimentos; mas só faz isso para os países que aceitam determinadas "condicionalidades", leia-se, políticas de ajuste de tipo neoliberal.
A "sociedade civil" é convidada a legitimar a dívida e a cooperar com os organismos internacionais na administração dos programas de cancelamento (e de ajuste).
Para dourar a pílula, o Banco Mundial fala também em trocar dívida por programas de combate a pobreza. Tirante a hipocrisia, os programas propostos não atacam as estruturas geradoras de desigualdade.
De outro lado há países, como o Brasil, que têm conseguido pagar suas dívidas. Claro que o custo social e econômico é altíssimo, mas o que importa para os credores é "honrar os contratos".
Para um país como o nosso, os organismos multilaterais não sugerem perdão parcial, troca de dívida por investimentos e/ou combate a pobreza. Aqui, trata-se de sugar o máximo possível, pelo maior tempo possível. Donde a alternativa tem que ser uma decisão soberana, que limite total ou parcialmente os gastos com a dívida, tendo em vista investir os recursos poupados na superação da desigualdade social.
A abordagem jurídica da dívida é outro tema polêmico na campanha internacional. Há estudos que pretendem fundamentar a ilegitimidade e a ilegalidade da dívida externa, visando questioná-la em organismos como o Tribunal de Haia ou mesmo a Assembléia Geral da ONU.
Mas há também quem proponha estabelecer regras para o endividamento e proteger países que não têm mais condições de seguir pagando. O problema é que para fazer isso, algumas propostas de arbitragem e insolvência não apenas reconhecem a legitimidade/legalidade da dívida, como levam as nações a abrir mão --voluntariamente-- da sua soberania.
A dívida externa mundial corresponde a cerca de 5% do estoque de capital financeiro existente no mundo: 2 trilhões em 37 trilhões de dólares, segundo cálculos de Eric Toussaint.
Num só dia, o mercado financeiro internacional de câmbio movimenta recursos equivalentes ao total da dívida externa mundial.
É por isto que o G7 pode se dar ao luxo de "perdoar" 70 bilhões de dólares das dívidas dos países pobres. Se amanhã, toda a dívida externa fosse cancelada, isso não acabaria com a pobreza na Terra, porque continuariam de pé os fundamentos desiguais da economia mundial. Aliás, novos créditos poderiam até mesmo azeitar partes enferrujadas da economia --o que explica o estímulo que alguns países europeus têm dado à certas iniciativas da campanha.
Por isso é fundamental ver a dívida externa como a ponta do iceberg, a partir da qual se pode questionar a ordem econômica mundial. O que exigirá uma coalizão entre os "países-devedores", a cooperação entre a campanha da dívida e outras articulações internacionais, bem como a construção de uma agenda própria, que inclua temas como a redução da jornada de trabalho e o combate ao imperialismo. Porque na ausência de uma alternativa de conjunto, podemos apenas estar tirando a castanha do fogo.