O plebiscito da dívida externa
PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
(Jornal "Folha de São Paulo", 14 de setembro de 2000
A iniciativa da CNBB e outras entidades religiosas teve
um mérito inegável: trazer à tona
um problema que andava meio
esquecido. Não que a dívida tivesse deixado de ser uma questão relevante. Ao contrário, os dados
que apresentei no artigo da semana passada deixam claro o quanto o problema se agravou na era
FHC.
Curiosamente, entre os que se
indignaram com o plebiscito da
CNBB estão justamente aqueles
que, no governo FHC, mais contribuíram para ampliar o endividamento. A sua retórica "moralista" e "responsável" contrasta
com a sua prática financeira
oportunista e leviana, que conduziu o país à crise cambial em 1999
e nos aproximou perigosamente
de uma nova ruptura financeira.
Não é a primeira vez que isso
acontece. Nos anos 70, economistas como Mario Henrique Simonsen e Delfim Netto comandaram
forte ampliação das obrigações
externas do país e nos colocaram
na rota da crise de endividamento da década seguinte. Delfim
chegou a atrasar pagamentos e a
renegociar a dívida. Depois, já fora do governo, os dois ex-ministros comandaram o coro dos que,
ao longo dos anos 80, exigiam o
cumprimento dos acordos externos, ainda que em condições financeiras adversas e com sacrifício da autonomia e do desenvolvimento do Brasil.
O plebiscito da CNBB não tem
-nem pretendeu ter- validade
legal. Também não terá efeitos
práticos sobre a política econômica. Permitiu, contudo, que parte
significativa da população brasileira tomasse consciência de um
assunto que não vinha merecendo o devido destaque nos meios
de comunicação de massa.
É evidente que aspectos do plebiscito podem ser criticados. As
perguntas foram formuladas de
forma tendenciosa e imprecisa. A
resposta ("não" para as três perguntas) estava claramente sugerida na própria formulação da consulta. Foi uma espécie de "Você
Decide" da CNBB. Assim, não é
de surpreender que o resultado
anunciado ontem tenha sido um
placar digno de eleição de país
africano ou das antigas "democracias socialistas".
Mas não é isso o mais importante. A questão central sugerida
pelo plebiscito é se o Brasil deve
ou não entrar em moratória.
Questão delicada, raramente
abordada de maneira equilibrada. O governo não o faz; a oposição também não.
A moratória constitui medida
de emergência e, como tal, só deve
ser adotada em situações de
emergência. Nas condições
atuais, a proposta não convém ao
Brasil. A situação do país é difícil,
mas não chega a ser de crise financeira externa.
Em 1987, por exemplo, quando
o governo brasileiro suspendeu o
pagamento de parte dos juros da
dívida externa, o Brasil estava,
desde 1982, praticamente sem
acesso a créditos voluntários do
exterior. A crise da dívida asfixiava o crescimento da economia.
Hoje, o quadro é diferente. Embora a dívida tenha crescido muito desde 1994, o acesso da economia brasileira a capitais externos
não foi interrompido. A flutuação
cambial tem sido, até agora, razoavelmente bem-sucedida. Graças ao abandono da malfadada
"âncora" cambial, o déficit das
contas externas e as taxas de juro
começaram a cair. Com a desvalorização e a redução dos juros, a
economia entrou em fase de recuperação.
O que cabe fazer é adotar desde
logo as medidas de ajustamento e
proteção da economia que afastariam o risco de emergências financeiras como as que tivemos
nos anos 80 e, menos intensamente, em 1999. Deve-se promover de
forma sistemática a exportação e
a substituição de importações,
por meio das políticas cambial, de
comércio exterior, de crédito e tributária. Cabe, também, reduzir o
grau de abertura financeira da
economia, introduzindo controles seletivos sobre os movimentos
internacionais de capital. É recomendável, finalmente, reforçar as
reservas internacionais do país,
primeira linha de defesa em caso
de novas turbulências financeiras.
O governo FHC, com a clarividência e a eficiência que lhe são
peculiares, demora a adotar providências desse tipo. Às vezes, chega a tomar medidas na direção
contrária, quando permite, por
exemplo, uma certa revalorização cambial, reduz os controles de
capital ou trabalha contra a reforma do sistema tributário.
Assim, se o Brasil for engolfado
por novas crises financeiras e voltar a atrasar ou suspender pagamentos, os responsáveis serão
exatamente alguns dos que hoje
manifestam (ou simulam) grande indignação com as propostas
de "calote".
Uma última observação: o governo insiste, com fervor, na necessidade de cumprir religiosamente os compromissos financeiros com os credores externos e internos. Porém não se nota o mesmo fervor quando se trata de
cumprir as obrigações com os titulares do FGTS que, por decisão
recente e unânime do Supremo
Tribunal Federal, devem ter os
seus saldos corrigidos para compensar "calotes" praticados nos
planos de estabilização de 1989 e
1990.
Há quem suspeite que o governo esteja preparando -para depois das eleições de outubro, claro- manobras jurídicas para
evitar o cumprimento das suas
obrigações com os trabalhadores.
Se isso acontecer, já podemos fazer uma pequena previsão: os
mesmos políticos, economistas e
jornalistas que agora atacam o
plebiscito da CNBB como "calote
irresponsável" serão os que defenderão, com os argumentos de
sempre ("as finanças públicas
não comportam", "não há como
pagar" etc.), o "calote" contra o
FGTS.
Paulo Nogueira Batista Jr., 45, economista e professor da Fundação Getúlio
Vargas-SP.