CONSUMIDORES DA DEMOCRACIA

 

Roberto Laserna

 

A Bolívia vive um momento de as­censão populista de caráter conser­vador cujos principais atores, em vez de produzir democracia, a es­tão consumindo.  É um avanço po­pulista porque se apóia na imposi­ção de perspectivas fundadas na presão dos que se definem como a autêntica base social.

Eles se apropiam da representa­ção social e assediam as instituçoes democráticas, impedindo-as de exercer suas funçóes e aplicar critérios fundados no interesse ge­ral ou no bem comum.  Trata-se de um avanço conservador porque pro­põe o retorno a um passado caracte­rizado, precisamente, por decisições orientadas pela pressão corporativa e pelo particularismo, e porque se fecha defensivamente diante da mo­dernidade.

Os movimentos sociais dos anos 70 e 80, que permitiram a transição do autoritarismo á democracia, fo­ram descritos como Produtores de Democracia (Ed.  Ceres, 1992). 0 vigor da partcipação social conse­guira então abrir o caminho para uma institucionalidade que permi­tia a formação de maiorias e mino­rias explícitas e que estas resolves­sem suas diferencias nos marcos normativos do Estado de Direito.

Se algo caracteriza este, é que ele permite defender os interesses dos setores menos favorecidos mes­mo que estes não possam-se organi­zar para a pressão.  E o caso das crianças, mulheres rurais ou comu­nidades afastadas dos centros urba­nos.  De fato, pode-se fácilmente comprovar como estes grupos se be­neficiaram dos 20 anos passados de estabilidade institucional.

Alain Touraine, o sociólogo mais destacado na análise dos movi­mentos sociais, postula estudá­los como produtores de sociedade.  Mas ele mesmo percebia a necessi­dade de diferenciá-los dos "antimo­vimentos" sociais, que se apresen­tam sob as mesmas formas, mas são na verdade muito distintos.  Pre­cisamente um de seus colaborado­res, Míchel Wieviorka, estudou gru­pos que, encobrindo sua ação com retórica nacionalista, popular ou re­volucionária, na prática prejudicam quem dizem defender e destroem relações sociais e culturais.  Os "an­timovimentos" sociais poderiam também ser chamados de consumi­dores de sociedade.

A chave da análise dos movi­mentos sociais está em distanciar­se do discurso do ator, dado que es­te é um elemento da ação, mesmo quando é apresentado como sua explicaçao­. 0 discurso é um elemento da ação que esconde com freqüência moti­vações e resultados efetivos e que, na prática, conseguiu enganar mais de um analista.

Tal distanciamiento não é fácil de se obter.  Mas quando alguém con­segue se afastar do discurso, da retó­rica dos líderes e da linguagem dos militantes e concentra sua atenção nos atos e suas conseqüências, po­de distinguir com clareza o que são e para onde apontam as ações coleti­vas.  E constata, por exemplo, que as ações populistas que prevalecem na Bolívia atual são (anti)movimen­tos que consomem democracia, por­que debilitam e erodem o Estado de Direito.

Eles são consumidores de democracia porque suas açóes lutam pa-ra impor criterios e interesses corporativos e, ao fazê-lo, vão destruindo as instituções para satisfazer seus próprios fins.

Agora, se as principais forças so­ciais e políticas estão consumindo democracia, a Bolívia encontrase numa situação de alto risco. 0 en­fraquecimento das normas e das ins­tituições implica o paulatino desa­parecimento de controles da luta so­cial e política, que pode se tornar ca­da vez mais crua e aberta, o que po­de derivar em açóes de violência de altíssimo custo social.  De fato, elas já impuseram um alto custo aos gru­pos mais vulneráveis.

Lamentavelmente, o govemo de Carlos Mesa não só é produto, mas também foi até hoje parte dos con­sumidores de democracia.  Parece atuar com a convicção de que a de­mocracia só estará a salvo se o presi­dente concluir seu mandato em 2007, e organiza sua ação em torno de agendas que lhe permitam conse­gui-lo.  Mas um cronograma não é o mesmo que um programa.  Por ­exemplo, ao dar mais credibilidade ás associações de bairro de El Alto que às prefecturas desta cidade e de La Paz, o govemo debilitou essas instituições essenciais para a demo­cracia e sacrificou os superintenden­tes para aplacar os grupos de pres­são. 0 govemo debilita as munici­palidades quando convoca os pre­feitos para que se pronunciem so­bre temas que não lhes competem, como a Constituinte ou as autono­mias departamentais.  E tem debili­tado o Parlamento continuamente ao comprometé-lo sem consulta prévia e sem levar em conta sua ca­pacidade de realizar açóes nos pra­zos estabelecidos.  De fato, quase to­das as propostas do Executivo, sur­gidas sobretudo no calor da pres­são, envolvem menos o Executivo do que ao Congresso, que logo pode ser fácilmente acusado de descum­prir acordos.

Basta mencionar as promessas da Constituinte, o referendo e a mo­dificação da lei de hidrocarburos, a reforma do código eleitoral para "selecionar" prefeitos e as autono­mias regionais.

A recente crise de incerteza gera­da pela renúncia do Presidente e pela proposta de antecipar as eleições afetou nova­mente o Congresso e é um sinal de que este processo também come­çou a corroer a própria instituição presidencial.  A convocação gover­namental de apoio nas ruas aumentou o risco de violencia civil ao pedir à população que se manifeste contra os bloqueios, quando é dever gover­namental evitá-los.

Para consumir democracia inde­finidamente, deve-se produzi-la continuamente.  Hoje a Bolívia re­quer com urgência uma ação con­certada para defender sua democra­cia. 0 país não poderá impulsionar seu desenvolvimento com eqüida­de se não afirmar o império da lei, exigir o cumprimento de obriga­ções como base dos direitos, pôr em dúvida as agendas impostas por minorias e rechaçar procedimentos ilegítimos. Na produção de demo­cracia, todos temos um lugar e um papel a cumplir.

 

(O Estado de Sao Paulo, quinta feira, 31 de março de 2005)