A Montanha pariu um rato[1]
Os escritos do grupo Krisis, reunido à volta de Robert Kurz , sociólogo
e editor na Alemanha da revista com o mesmo nome, eram pouco conhecidos em
França. Lacuna essa já colmatada pela
publicação do Manifesto contra o trabalho.[2]
A crítica da moral do trabalho no pensamento de esquerda, dá o tom e
frescura a um texto em que Krisis tenta caracterizar a situação actual do
capitalismo. Trata-se para eles, desde o princípio, de desmontar as receitas
reformista que pretendem corrigir os malefícios do capitalismo de casino: as
nostalgias keynesianas, as reivindicações dum salário social, ou ainda a taxa
Tobin-Attac. Para Kurz e seus amigos, a especulação é a consequência da crise
de investimento e não ao invés. «É precisamente o critério da rentabilidade,
assim como as suas bases, que são as da sociedade do trabalho, que é preciso
atacar como obsoletas.» (p.74) Krisis demarca-se também dos projectos das
diversas correntes socialistas que quiseram fazer das reivindicações
quantitativas, das lutas económicas e sindicais, a alavanca da emancipação social.
Este processo de integração é actualmente seguido pelo desmoronamento do mundo
operário; terreno no qual «dobram os sinos pela esquerda clássica» (p. 86). É
por isso que, nos projectos da sua refundação, «a nostalgia social-democrata e
keynesiana substitui a ruptura com as categorias do trabalho» (p.87). Krisis
sublinha a natureza estatista dos projectos de salário social e do rendimento
garantido, confirmando assim outras críticas.[3]
Até aqui, nada de novo debaixo do sol! No que diz respeito à crítica do
reformismo moderno, Krisis repete - com um gosto pronunciado pela
auto-suficiência, aquilo que já foi escrito. Exemplo académico muito comum, se
lermos a Krisis fica-se com a impressão de que a crítica ao capitalismo
contemporâneo começou no dia em eles se puseram a pensar. Aparte certas
referências ao «situacionismo» e às correntes do esquerdismo italiano e algumas
fórmulas que lembram o Direito à preguiça do Paul Lafargue (nunca citado),
varre-se tudo sem distinção, e deita-se tudo confundido, o pior e o melhor, nos
caixotes do lixo da história.
Sendo assim, ninguém se espantará de ver depois o movimento operário
reduzido ao sindicalismo, simples elemento «acelerador da sociedade do
trabalho». Facto significativo, procurar-se-á em vão, neste Manifesto, a mais
mínima alusão às rupturas revolucionária do século XX ou uma só referência às
correntes revolucionárias do marxismo e do anarquismo.
Uma ideia central constitui o arcaboiço das análises de Krisis: o
capitalismo é um sistema cujo propósito é «a sociedade do trabalho»; «A
história da modernidade é a história da instauração do trabalho.» (p. 45) «O
trabalho é um fim em si mesmo na medida em que serve de vector à valorização do
capital dinheiro, ao aumento infinito do dinheiro pelo dinheiro. O trabalho é a
forma de actividade deste fim em si absurdo…» (p. 33) Jamais este
vector-trabalho é definido como relação social, histórica; nem é caracterizado
especificamente como trabalho alienado, assalariado.[4] Ora,
é por o trabalhador ser desapossado da sua própria actividade que se lhe retira
o controle da sua própria vida. É a actividade humana tornada mercadoria, que
funda as separações. Na produção teórica de Krisis, a noção de lucro está
ausente, o conceito de exploração conta pouco já que «a máquina capitalista não
tem outra finalidade senão ela mesma» (p.18). A valorização burguesa do
trabalho é posta no centro do funcionamento do sistema cujo fim seria então
fazer trabalhar os indivíduos! Este discurso - que inverte a moral religiosa
vendo no trabalho a vocação natural do homem - abunda em fórmulas moralizantes:
«princípio cínico», «sistema delirante», «lei do sacrifício humano», «cruzada
em nome do ídolo trabalho», ou ainda «mais vale ter um trabalho qualquer, seja
ele qual for, que não ter trabalho nenhum, tornou-se a profissão de fé exigida
a todos» (p. 14). Ora se o proletário se põe preocupadamente a procurar
trabalho, não será porque não tem outra escolha, sendo a venda da sua força de
trabalho o seu único meio de sobrevivência?
O que é que, segundo Krisis, caracteriza a crise da «sociedade do
trabalho»? Vejamos alguns elementos de resposta: «Com a terceira revolução
industrial da micro-informática, a sociedade do trabalho atinge o seu limite
histórico absoluto» (p. 60) Mais precisamente, «pela primeira vez, suprime-se
trabalho que não pode ser reabsorvido pela extensão dos mercados» (p.62). Segue-se
que, numa sociedade que «nunca foi como agora uma sociedade do trabalho [...],
o trabalho tornou-se supérfluo [...] É no preciso momento em que o trabalho
morre que ele se revela uma força totalitária» (p.14)[5]
Krisis parece esquecer que esta necessidade de aumentar constantemente a
produtividade do trabalho, de substituir trabalho vivo por máquinas, é
intrínseco ao processo de produção de capital. Em períodos de crise, nem toda a
força de trabalho encontra colocação no mercado, e a aparência do trabalho como
supérfluo não é senão a consequência disso. Tirar daqui uma interpretação de
tipo «catastrófico» representa uma mistificação, é reatar com a aproximação
milenarista, e apresentar as contradições actuais do capitalismo como
inultrapassáveis. Ao longo de toda a sua história, o capitalismo pôde
restabelecer, ao preço da barbárie, novas condições de produção de lucro, criar
novos mercados, perpetuando-se deste modo. O capitalismo anda mal mas não vai
afundar-se por si mesmo, sendo necessário para isso a intervenção de forças
sociais decididas a inscrever nos factos um projecto emancipador. É aí que se
encontra o único limite «absoluto» do sistema.
A «ruptura com as categorias do trabalho», é associada pela Krisis a um
«projecto de resolidarização». Este, deve concretizar-se em «novas formas de
organizações sociais (associações livres, conselhos) (que) controlem as
condições da reprodução à escala de toda a sociedade» (p. 95). Depois de ter
assimilado proletariado-sujeito histórico, greve e integração sindical ao
movimento operário reformista, Krisis tem por ambição de colocar as balizas «duma
nova teoria da transformação social». Desta emerge a proposta duma
auto-organização em torno duma «luta por um fundo de tempo social autónomo».
Sobre este tema a leitura do Manifesto ganha se for complementada por outros
textos do grupo.[6]
E é então que um espesso nevoeiro cai sobre a cidade!
O sector dito da «economia social», (ONG e associações) é definido como
«forma embrionária duma reprodução emancipadora e não mercantil»., que é
preciso «radicalizar e unificar numa perspectiva de superação do sistema
produtor de mercadorias». Um outro eixo de lutas lhe é associado: «a paralisia
do sistema nervoso da reprodução capitalista», através de greves de camionistas
e barragens de ecologistas contra o transporte de produtos radioactivos. Enfim.
squats, creches autónomas,
associações de consumidores, cooperativas, ocupações de terras nos países
pobres, são susceptíveis de organizar uma «reprodução autónoma» e conter em
germe a exigência duma produção não-capitalista. Os nichos alternativos no seio
da sociedade e as zonas autónomas temporárias, recusadas em teoria no
Manifesto, são repescadas na prática. Será toda a insubordinação subversiva?
Como poderão estes embriões superar o sistema? Poderá haver superação sem
ruptura? Eis tantas questões que Krisis não se coloca. Aqui, como noutros
lugares, o abandono das categorias de classe faz-se em proveito duma espécie de
«frente alternativa», próxima do activismo cidadanista.
Espírito corporativo oblige,
Krisis não esquece que «é preciso criar um novo espaço intelectual livre onde
se possa pensar o impensável. [...] Somente uma crítica do trabalho, claramente
formulada e acompanhada do debate teórico necessário pode criar um novo espaço
público alternativo, condição indispensável para a constituição dum movimento
social prático contra o trabalho» (p. 92). Eis-nos de regresso ao velho esquema
sobre o papel dos intelectuais na elaboração da consciência. Se «pensar o
impensável» é isto, as respostas de Krisis são tão decepcionantes e
pretensiosas como os projectos neo-reformistas que eles criticam. As invectivas
de «biscateiros reformistas» e «teóricos analfabetos», que os autores da Krisis
dirigem aos defensores do salário social arriscam-se a voltar-se contra eles
mesmos. A apresentação elogiosa dos editores franceses - classificando o
Manifesto em terceiro lugar na hit parade
da radicalidade, depois do Manifesto do partido comunista e da Miséria no
meio estudantil - é pouco certeira. A montanha pariu um rato.
Charles Reeve
[1] expressão que se aplica a situações em que se criou uma grande expectativa à volta de uma coisa ou um acontecimento e no final essas expectativas não se confirmam.
[2] Manifeste contre le travail, Paris,
éditions Léo Scherr, 2002
(Existe tradução portuguesa mas a numeração no texto refere-se à edição francesa. [NdT])
[3] Em França, alguns textos balizam a
discussão: Claude Guillon, L’ Économie de la Misére, La Digitale, 1999; Ch.
Reeve, «La vraie mission de l’État», Oiseau-tempête, nº 7, outono 2000 ; Nicole
Thé, «Revenu garanti: quelques interrogations malvenues», Les Temps Maudits, nº
11, outubro 2001; Laurent Guilloteau, «Il faut mater le précariat !»,
Multitudes, nº 8, março-abril 2002 ; uma obra de síntese, Laurent Geffroy,
Garantir le revenue, Recherches 2002, La Découverte.
[4] Aqui, como em outros lugares, a confusão mantida entre as noções de trabalho, de actividade humana e de trabalho assalariado, produtor de mercadorias para outrem (o capitalista), conforta aqueles para quem a actividade humana não poderia senão reproduzir o trabalho alienado de agora.
[5] O manifesto retoma aqui, à sua maneira, a ideia do «fim do trabalho», espalhada desde há alguns anos em certos meios ditos «radicais», e nos quais alguns levam as suas conclusões até ao ponto de afirmar o desaparecimento das classes, e portanto da luta de classes
[6] R. Kurz, « Antiökonomie und antipolitik ». Revista Krisis, nº 19, 1997. As citações sem referência são deste texto.