Atribuído
a Jan Provoost
Óleo
sobre madeira
Final
do primeiro quartel do século XVI 216 x 120 cm
Proveniente
da Igreja da Madalena do Mar
MASF
29
Esta
pintura que causa admiração pela beleza, grandiosidade e composição pertence à
Igreja da Madalena do Mar. Foi mandada
fazer por Isabel Lopes, uma das primeiras senhoras da Madalena (foi a segunda),
conforme está documentado no seu testamento, datado de 1524, para ser colocada
no altar-mor da Igreja.
Isabel
Lopes, que foi aia de D.ª Maria de Noronha, mulher de Simão Gonçalves da
Câmara, segundo Donatário do Funchal, era casada com João Rodrigues de Freitas,
natural do Algarve e viúvo de Senhorinha Anes, que, por sua vez, era viúva de
Henrique Alemão, o primeiro senhor da Madalena, presumível Ladislau III da
Polónia.
“Segundo
os termos do testamento de Isabel Lopes, se esta falecesse sem ter deixado
colocado, no altar da igreja, um retábulo do orago, o administrador do templo
seria obrigado, no prazo de dois anos após o falecimento da testadora, a
colocá-lo no lugar, tirando para tal o montante necessário dos bens legados.
Nesta conformidade, a maioria dos autores pensa que o quadro terá dado entrada
na igreja por volta de 1526.”
A
qualidade do quadro tem sido reconhecida e admirada:
“Dadas
as suas invulgares dimensões, a monumentalidade da figura e a riqueza da
cenografia o quadro chamou a atenção da historiografia desde que saiu da igreja,
em 1940, para ser restaurado em Lisboa, por Fernando Mardel. Findo o restauro,
foi exposto, em 1955, no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, e nesse
mesmo ano passou a integrar as colecções do Museu de Arte Sacra do Funchal. Em
1991, foi escolhido, com seis outras obras do Museu, para a exposição Feitorias,
realizada no Museu de Belas Artes de Antuérpia, por ocasião do Festival
Europalia Portugal, tendo tido honras de reprodução no cartaz e na capa do
catálogo. A exposição foi repetida, em 1992, no Museu de Arte Antiga, em
Lisboa.”
A
identificação do autor tem originado discussões e polémicas:
“Por
ocasião da exposição de 1955, em Lisboa, a obra foi atribuída, com reservas, a
Herri met de Bles (pintor paisagista activo, em Antuérpia, de 1535 a cerca de
1555), por estar representada, no fundo, à direita, pousada numa margem do
terreno, uma coruja, motivo habitualmente identificador do pintor, conhecido na
Itália, onde as suas paisagens eram muito apreciadas, pelo nome de Mestre da
Civetta. Nos catálogos da referida exposição do Festival Europalia, quer na
versão de Antuérpia, quer na versão de Lisboa, a obra aparece já dada a Jan
Provoost, embora sem argumentação conclusiva.”
Ao
que tudo indica, a autoria Herri met de Bles é improvável uma vez que à data da
produção deste quadro o pintor seria um jovem adolescente. Por outro lado, a
composição foge às características das produções pictóricas de Herri met de
Bles.
Uma
estrutura composicional semelhante à deste quadro é a representação de Nossa
Senhora das Neves do Breviário Mayer van den Bergh:
“Nele,
além da figura monumental de Nossa Senhora com o Menino, no primeiro plano, sob
um dossel circular, que será, provavelmente, a fonte de inspiração do motivo
análogo no quadro da Madalena do Mar, vemos um fundo quase inteiramente
preenchido, em planos verticais, por diversas cenas sequenciais da lenda de
Nossa Senhora das Neves, num esquema que bem poderá ter sugerido a organização
do fundo na pintura do Funchal. Ora, o Breviário Mayer van den Bergh foi
realizado, (...) cerca de 1510, por uma parceria de pelo menos quatro artistas
de Bruges - o Mestre do Livro de Horas de Maximiliano, Gérard Horembout, Simão
Bening e Jan Provoost. (...) Mesmo que não tenha desenhado ou pintado o folio
relativo a Nossa Senhora das Neves (Brigitte Dekeyzer atribuiu-o a
Horembout), Provoost e a sua oficina estavam inteiramente familiarizados com as
soluções iconográficas e formais utilizadas na realização do Breviário,
o que lhes permitiu partir do esquema composicional desse folio para o painel
encomendado para a Madalena do Mar, com as convenientes adaptações à escala e
às dimensões avantajadas requeridas, assim como ao específico tema devocional
que estaria nos objectivos da encomenda.”
“Iconograficamente
falando, o pintor combinou, sabiamente, no painel, as duas principais
modalidades de representação da santa: a mirófora, isto é, a
transportadora do vaso dos perfumes, pois a Magna Peccatrix (grande
pecadora), ao arrepender-se perante a visão do Salvador, ungiu com óleos
perfumados os Seus pés, tendo-se igualmente dirigido, após a Sua morte, ao
sepulcro, com o mesmo propósito, o que fez escolher como seu atributo esse
recipiente dos unguentos; e a penitente, que passou trinta anos
purificadores no deserto, em oração, meditando sobre a morte que lhe daria
acesso à Redenção. O artista deu claramente o destaque à primeira, sublinhando
o carácter cortesão de Madalena, alusão directa ao universo das vaidades
mundanas em que se encontra o próprio espectador e contra o qual reage a
protagonista, no segundo registo, ao encontrar-se já despojada dessas vaidades.
No
entanto, a decifração do significado intrínseco do painel obriga-nos a ir mais
longe. O decorativismo renascentista do dossel, do vaso ostentado por Madalena,
excepcional peça de ourivesaria, e da generalidade dos adereços não pode ser
visto como uma mera adesão formal ao programa do classicismo. Parece-nos,
antes, uma clara manifestação de uma cultura humanística erudita que comanda as
interrelações entre os diversos elementos do conteúdo temático, conferindo-lhes
pleno sentido. Não será esta formosa Madalena, com o seu eloquente gesto
destapando uma píxide, uma citação directa do tema da caixa de Pandora? O mito
narrado por Hesíodo - Pandora, movida pela curiosidade, abrira uma caixa que
lhe fora dada por Zeus de onde escaparam os males que passaram a afectar o
Mundo, ficando apenas dentro do recipiente a Esperança fora conhecido durante
a Idade Média, prestando-se a comparações com a tentação de Eva e a Queda do
Homem, sendo posteriormente popularizado por Erasmo de Roterdão, no início do
século XVI. Nos Trabalhos e os Dias, o célebre poeta grego lamenta as
consequências do gesto de Pandora, dizendo que “desde então há entre os homens
inumeráveis desgraças, e a Terra e o Mar estão cheios de males”. Que melhor
descrição poderemos ter do fundo do quadro da Madalena do Mar, em que nem
sequer falta a ave - a coruja - pressagiadora das desgraças? Logo, a coruja ou civetta
não é uma espécie de assinatura mas um importante elemento na economia
simbólica da composição.
A
pintura procura, então, dizer-nos, no primeiro plano, que Maria Madalena -
verdadeiro espelho da tentação e das fragilidades humanas - condensa em si a
aparência sedutora e a trágica decisão tanto de Eva como de Pandora. Da atitude
de ambas resultaram a entrada da Morte no Mundo e a disseminação dos vícios e
dos males. Sublinhe-se o facto de o dossel que protege Madalena (e sobre o
qual se inscreve o seu nome) estar suspenso de uma árvore - alusão à Árvore do
Bem e do Mal, bem implantada no terreno - ao contrário do que acontece no folio
do Breviário Mayer van den Bergh que lhe serviu de inspiração, em que o
dossel que protege Maria está sustentado por anjos, acentuando a sua realidade
celestial. Somos, pois, filhos de Pandora e de Eva e pecadores como Maria
Madalena. Os males espalharam-se pela terra e pelo mar, como se diz no poema de
Hesíodo. Assim, um coelho e duas raposas, à esquerda, espreitando as cenas
campestres, aludem, respectivamente, à concupiscência e à manha. Por seu turno,
os dentes de leão do primeiro plano referem-se aos homens dominados
pelos sentidos e às ambições desmesuradas. O tópico da ambição está igualmente
presente nas cenas portuárias, à direita, porque, segundo uma tradição latina,
que ecoou em Brueghel, as viagens marítimas eram um caminho “não natural” (pois
o lugar natural do Homem era a terra) para alcançar a riqueza fácil. Mas, se a
Esperança ficou no interior do vaso, a Redenção é possível. No segundo registo,
Madalena aponta o caminho aos fiéis: a penitência e a oração. Ao lado, sobre a
árvore, bem visível, um caracol, símbolo lunar por excelência, alude à Morte e
à Ressurreição.”
O
esquema composicional, o conteúdo e a temática atrás analisados contribuem para
a atribuição do quadro a Provoost:
“Conciliavam-se,
assim; no “simbolismo disfarçado”, tradição cristã e classicismo renascentista,
o que nos faz pensar na sofisticada cultura de um humanismo devoto que
transparece não apenas na personalidade do pintor mas na sua clientela
madeirense e no respectivo ambiente espiritual. Nestas circunstâncias e perante
um tal programa iconográfico, a execução da obra terá de situar-se no contexto
dos contactos que Provoost terá estabelecido com Dürer e com os meios
humanistas de Antuérpia, a partir de 1520. Acresce que a representação da
flora, no primeiro plano, lembra as preocupações botanistas do grande pintor
alemão. Harmonizam-se, deste modo, os dados conhecidos sobre a presumível
encomenda da pintura e a provável cronologia da sua execução pela oficina de
Provoost.
Será,
então, conveniente lembrar que a oficina de Provoost satisfez, na última década
da sua actividade, diversas encomendas para a Madeira, nomeadamente os
conjuntos retabulares monumentais destinados à Misericórdia do Funchal e à
Matriz da Calheta. Entre eles parece situar-se esta Santa Maria Madalena,
datável, como já vimos, de cerca de 1524-26.”
Museu de Arte Sacra do
Funchal
- Arte Flamenga