O RAPAZINHO DA LOMBADA
Conto de D. Mariana Xavier
da Silva
A autora viveu alguns anos
na Madeira, na década de 70 do séc. XIX. Publicou nos jornais locais.
Em 1884, editou em Lisboa um
volume contendo alguns desses textos, bem como outros inéditos, versando temas
madeirenses.
Do livro Na Madeira
Offerendas, Lisboa 1884
I
A Lombada dos Esmeraldos (já o disse uma vez e
repeti-lo-ei , agora e sempre) é a pérola do concelho da Ponta do Sol. É
propriedade, bem como o vasto terreno que tem aquele nome, do Conde de
Carvalhal, opulento fidalgo madeirense.
A Lombada dos Esmeraldos foi “tão célebre por nome
como por fama pelo muito açúcar que nela se recolhe; houve um ano em que ali se
recolheram vinte mil arrobas dele. O capitão [1]
tomou a Lombada para os seus filhos mas agora nenhum deles a possui, pois a dividiram
e venderam".[2]
Não longe da igreja, que se eleva sobre um vasto
adro com uma escadaria de pedra alta e espaçosa, ergue-se o palácio, velho
solar dos morgados do Santo Espírito. Este teve, outrora, mais de oitenta
escravos (mulatos, negros, negras, entre outros) e ainda hoje permanece
majestoso, a querer lutar com as ruínas que o ameaçam de perto.
Não ha casal que não tenha um jardinzinho, onde, quase
sem cultivo, desabrocham e se ostentam ao sol da Madeira as rosas encarnadas.
Num dos sítios mais pitorescos alveja a capela do
Espírito Santo, fundada em 1808 por João Esmeraldo; este é um templo elegante
no exterior e decorado com belíssimas imagens e ricas obras de talha. Muitas
das freguesias da Madeira desejariam ter esta capela como sua igreja paroquial.
No ano de 187... fui passar o Verão para a Lombada.
Fiquei numa choupaninha que havia pouco deixara de ser habitada por um
sacerdote ainda hoje querido pelos habitantes daqueles casais, e por quem ainda
choram. E não julguem que o digo metaforicamente ou para arredondar o período:
presenciei em muitas ocasiões os camponeses - a que na Madeira dão o feio nome
de vilões e viloas - vi, repito, chegarem as lágrimas aos olhos de muito
lavrador e de muita lavradora, quando se lhes falava do senhor padre cura, o
reverendo Luís Quiroga. Eram lágrimas de íntima saudade, de indelével gratidão,
pelo digno ministro do senhor.
II
Passava todos os dias à minha porta, à hora em que
as avezinhas entoam os seus primeiros hinos - quando o sol nasce e a natureza
revive - um rapazinho dos seus quinze anos, que usava parar ao pé de casa para
lavar a cara na água da levada, de Entre-caminhos, que corre límpida, junto do
jardinzinho contíguo à habitação.
Numa das manhãs formosas de Agosto que ali passei
aconteceu estar à porta uma das viloas minha vizinha, na ocasião em que o
rapaz fazia a sua tarefa matinal.
Quando ele voltou as costas, tomando pelo caminho do
Jangão, a vizinha disse em voz alta, sem se dirigir a mim, mas provavelmente
com muita vontade de o fazer:
- Coitado d' aquilo! Já não tem mãe nem pai! [3]
- Há muitos assim -
respondi, fechando as Rosas Pollidas, livro de D.ª
Guiomar Torresão, publicado recentemente.
Reparei que a mulher desejava conversar comigo e
quis ouvi-la. Dei-lhe a confiança, como é uso dizer nos campos, em casos
idênticos.
- Ah, sim minha senhora - acudiu a viloa prontamente
- mas aquele! Coitado d'aquilo! Foi infeliz já quase à nascença. A minha
senhora é de lá de fora, da ilha de Lisboa, disse-me o meu velho [4],
não conhece isto aqui. Eu lhe conto a história d'aquele rapazinho... a do pai e
da mãe. .. que a do triste é ir ajuntar alguma gavelinha de comer para a rês e
arrumar malhões do ti Cláudio Rabola, em casa de quem está. O pequeno às vezes
tem fome e não se contenta só com uma garfadinha de coives, com um pé de
inhame, uma batata ou uma semilha extreme.[5]
Abeirei-me do muro e sentei-me num dos bancos de
pedra que deitam para o caminho. A minha interlocutora disse duas vezes o usual
"com licença da senhora", que é fastidiosamente repetido em quase
todas as frases da gente dos campos, e sentou-se no chão, tendo, previamente,
reparado se haveria por ali algum ‘mato’ que lhe estragasse a saia de lã. A
saia, de riscas azuis, amarelas e encarnadas, era fiada e tecida com ervas do
campo e com tanta mestria que não fica atrás dos trabalhos de tinturaria de Mr.
P. Cambournae, anunciados pomposamente nos jornais e almanaques.
- A senhora vigia daí, aquela vista além, à banda de
riba da igreja, onde está o piquinho cheio de pereiros?
- Vejo, sim.
- Há lá uma casinha de colmo.
- Todas as casas que vejo estão cobertas de colmo.
- E verdade, é ordem do senhorio; aqui, na Lombada,
não há licença do sr. morgado para
fazer casas de telha. Abafadas de telha só a igreja e o palácio velho ali além,
e a casa lá em riba, do sr. morgado do Jangão, o sr. Agostinho.[6]
- Isso então porque é?
- Eu sei, senhora! São coisas de outro tempo; nem o
sr. Conde nem o sr. morgado foram dessa ideia; aquilo já foi impribido
pelos fidalgos antigos, e até hoje ainda não houve licença em toda a Lombada
para ninguém. A casa que eu digo está abafada de novo e tem duas nespreiras
grandes na portada.
- Vejo, vejo.
Ali morou em solteira a mãe daquele rapaz, a Maricas
do tio Teixeira. Era bonita que nem uma imagem; era um gosto vê-la. E oiro que
aquilo tinha! Era contas, cordão, cadeados[7],
tudo bom. Muitos rapazes a queriam, mas ela só gostava de um, e o pai de
nenhum. Lá a sua era que a rapariga havia de casar com um lavrador bem rico e
que tivesse mais do que ela. A mulher dizia-lhe às vezes:
- ‘E se a Maricas não gostar, meu velho?’
- ‘Quer goste, quer não goste, ainda tenho um arco
de castanheiro para lhe desancar as cadeiras.’
III
- Um dia, pela Festa[8]
- continuou a minha vizinha com aquela volubilidade no falar que bem denuncia
‘a pura raça de algarvios’ de que descende, na sua maior parte, a plebe madeirense
(se bem que estes da Lombada sejam tidos pelos das outras freguesias como
descendentes, em geral, dos mouros e escravos com que João Esmeraldo e seus
herdeiros povoaram a vasta sesmaria comprada aos Câmaras). Tanto assim que
ainda hoje é injúria chamar-lhes os cativos da Lombada.
- Um dia, pela festa, continuou a viloa - que é o
tempo mais alegre que a gente temos, e quando brincamos mais, estava o namorado
da Maricas ali além, à porta a tocar num rajão[9]
e a trovar; quando o pai veio lá de dentro da cozinha e começou a brigar com
ele; disse-lhe que não queria que ele botasse trovas à filha, que queria mais
patacas e menos cantigas, e que tirasse o sentido da rapariga, que não estava
ali para nenhum trabalhador somenos, senão para um lavrador que tivesse arranjos.
Dito de cá, dito de lá, quase que investiam: o que valeu é que passou o sr.
juiz das levadas e os acomodou. Feio homem, Deus lhe perdoe! A rapariga, essa,
chorava que era uma coisa...! No outro dia o pai disse-lhe:
- ‘Vigia, Maricas! Se o Pedro dos Zimbreiros torna a
aparecer aqui na portada, ferro-lhe um tiro, e em ti dou-te um malhão. Vigia lá
o que fazes! Homem para ti já tenho, não faz míngua aquele reles.’
- A senhora me desculpe. Passado um mês, a Maricas arrecebia-se
com o Francisco do Rosário, que emprestava dinheiro a prémio e tinha mais de um
alqueire de patacas, como eles diziam.
IV
Nunca mais riu a Maria da Calçada, sempre triste,
que fazia pena! O marido dizia-lhe para o acompanhar às romarias. Lá nada! Ela
virava-lhe as costas e ... busio.
Um dia, era já sol nado, a Maricas não aparecia para
o almoço; procuraram-na e ninguém a encontrou. O marido tinha ido debulhar uns
trigos e o pai não lhe deu cuidado. Ela costumava ir aos talos do inhame para a
rês logo de manhã, e ficava por lá horas esquecidas a vigiar para o mar.
Eles diziam que era olhado. Já a tinham benzido, mas
fora o mesmo que nada; se cá estivesse ainda o Sr. padre cura dizia que as
mulheres que benziam eram somenas. Quando a gente perdia alguma coisa e falava
em ir ter com a tia Justina Pestana, que deita cartas lá na Ponta do Sol (a
casa de quem vão até algumas fidalgas da vila) ele brigava connosco a mais não
poder, a senhora o que diz?
- Acho que o sr. padre Luís fazia muito bem Luís em
aconselhá-las a que não dessem crédito a tais embustices; mas vamos lá à
história.
- A senhora que faça o favor de esperar um nadinha,
enquanto vou pôr o inhame na tampa a esfriar e cozer uma coisiquita de atum
para mandar o almoço e o jantar ao meu velho, que anda nos caminhos. A ceia, se
Nosso Senhor quiser, vai ser um nadinha de milho com coive que é de que ele
gosta melhor.
V
Aproveitando a ausência da mulher, saí até ao Pico
da Amendoeira (de onde se avista um
lindíssimo panorama) e quedei-me a olhar para o mar, que lá ao longe estendia as
vastas águas, iluminadas por um sol formosíssimo de Agosto.
Passados instantes regressei, e a narradora vinha
também chegando à porta com uma cesta na mão.
- Pronto - disse ela, pousando a cesta no chão - o
Sabido não tarda, para ir levar o comer ao meu velho. A senhora há-de conhecer
o Sabido; ele anda lá em baixo na escola. Aquilo sempre é sabido! As artes que
ele tem... Ah feio pequeno!
- Então não acaba a sua história?
- A minha senhora que espere, faça favor, devagar se
vai ao longe, como diz o outro.
Momentos depois chegava o Sabido à porta do casal,
assobiando um tango que a filarmónica de Câmara de Lobos tocara no ano
antecedente na festa do Livramento, em que fora tesoureiro o João da Relva da
Lombada.
Se a gente dali lesse este folhetim, decerto que não
deixariam de sorrir ao ver o nome do rapaz que eles crismaram de Sabido em
letra redonda.
- Pega e caminha - disse a viloa – vigia, não te
detenhas a retoiçar com os outros rapazes.
- Qual retoiçar, senhora! Amecê está zombando? Eu
queria mesmo levar pancume do ti António!...
E aí vai o Sabido.
Atirou uma pedra a um cachorro que lhe passou ao
alcance e correu pela estrada fora, arremedando em alta voz o modo de falar do
Tonto: "Eu fui à Ponta Delgada beijei o pé ao Senhor Jesus... " desapareceu.
- Vai-te arreque[10],
Sabido, ainda não vi coisa assim.
E sentou-se a rir, a minha vizinha. ..
- A senhora está ouvindo? A Maricas não apareceu
naquele dia nem no outro. Eles disseram que na véspera ela apanhara do marido, que
bebia o seu groguesinho e dava panquisso e
na mulher que era uma coisa...
Ao cabo de quatro dias correu na freguesia a notícia
que Maricas embarcara para Demerara. O pai não queria acreditar, a mãe teve uma
freima e quase morria e até prometeu ir ao Senhor Jesus de Ponta Delgada, se
filha aparecesse ..
Mas qual ! A Maricas não mais voltou. A mãe o que
fazia era atentar o marido, dizendo-lhe que ele era o culpado, por casar a
filha tão novinha com um homem de quem ela não gostava. O pai raivava e saía de
casa.
VI
- Um dia, tinham passado dez anos (o marido de
Maricas morrera dois anos depois de ela desaparecer, com uma bebedeira de
aguardente), veio uma carta para o ti Manuel da Calçada. Naquele tempo não
havia ainda isto que chamam vapores, nem esta história do fio, que há poucos
dias fizeram e que o Sr. Nuno da Ponta do Sol disse que era uma coisa muito
boa, porque fala para toda a parte. Aquele Sr. Nuno é ministrador há muitos
anos e é bom cá para a gente do povo. E a mãe? Aquilo é uma santinha, como diz
o outro, e ele é amicíssimo dela, quando a tem em casa, não parece o mesmo.
- É verdade, é, mas diga-me o resto da história, que
desejo ir almoçar.
- Eu digo; a senhora que oiça. Veio a carta, e o ti
Manuel tremia que fazia dó, foi procurar um sobrinho que andava aprendendo com
o sr. Profirinho lá da vila e deu-lha a ler. Aquilo era chorar, que foi uma
coisa! Chorava o pai, a mãe, os moços, os vizinhos, tudo o que ouvia ler a
carta chorava. Era de Maricas; estava em Demerara, casada com Pedro. Não podendo
suportar o marido, e desinquietada por uma amiga, fugiu para Demerara; ali
andou primeiro a servir em casa de um e de outro até que, quando soube da morte
do marido, fez tenção de voltar cá para a ilha. Adoeceu e, lembrando-se da
amizade que o Pedro lhe tinha, escreveu-lhe para Barbiça[11],
onde ele estava, dizendo-lhe que ficara viúva e só, naquela terra.
O Pedro largou tudo e veio ter com ela - que passado
tempo estava de saúde - e casaram-se.
Agora e que isto e mais triste, senhora! Mandou ela
pedir perdão ao pai - que já há muito lhe havia perdoado - e dizia-lhe que no
primeiro navio o vinha abraçar com o Pedro e um filhinho.
Todos os dias o velho e a velha iam além para aquela
vista vigiar para o mar, à espera do navio que lhes traria a filha. O sr. padre
Luís já uma vez contou à hora da missa - que ele sempre fazia falas ao povo
para bem, já se sabe - uma história assim de um velho e de uma velha, que
esperavam por um filho, não me alembra agora o nome, parece-me que era
Matias...
- Tobias, é que havia de ser. – respondi-lhe.
- É verdade, é; isto quem sabe ler... sempre é uma
prenda! Eu ainda comecei a aprender... depois casei; casaste, escravizaste-te,
como diz o outro.
VII
Teve vez. Um dia vieram dizer ao ti Manuel que
chegava a filha mais o genro, num navio dos que andam daqui para Demerara e de
lá para aqui. Olhe a minha senhora, que é muita a família cá da ilha que vai
para aquelas terras. Há anos em que vão mais de dois centos de pessoas: lá
tinha eu também dois irmãos e uma irmã.
- E que vão fazer para lá?
- Eu sei senhora! Alguns têm trazido umas patacas, e
então os outros imaginam que hão-de enriquecer lá. Mas quantos vão depois de
venderem o que por aqui tinham para a passage, vivem por lá pobres e
nunca mais... nem ao menos mandam escrever. É uma cegueira, Deus me perdoe. Eu
ir para Demerara? Lá nada! Aqui fui nada e criada, aqui hei-de acabar a vida a
Deus querer. O ti Manuel, quando lhes deram a nova que a Maricas estava na cidade,
não cabia em si de contente; a mãe quase que entontecia! Foram logo para a
cidade.
O Pedro juntara algum dinheiro e vinha comprar umas
benfeitorias, que terra do dízimo a Deus, é coisa que não se acha na Lombada,
nem gerne. Aqui não se compra o térreo nem por boas patacas..
- Mãe, ah mãe, tenho fome! - bradou um vilãozinho
vestido apenas com uma camisa que lhe chegava aos pés e um colete muito
comprido a que chamam vestia.
- Tu que esperes João! Anda aqui para o meu pé.
O rapaz veio e acocorou-se ao pé da mãe, olhando
desconfiado para mim.
Felizmente eu tinha naquela ocasião biscoitos na
algibeira e atirei-os ao pequeno, que se lançou a eles com alegria.
- Muito obrigada à senhora.
- Faz um criado, João.
- O João levou a mão à boca em acção de beijar a
palma, abaixando ao mesmo tempo a cabeça.
- Ajunta os doces, já tens com que quebrar o jejum -
disse a mãe , sorrindo da gracinha do pequeno. Depois continuou:
- Este cá é afilhado do sr. Feliciano Teixeira; a
minha senhora há-de conhecer. Aquilo é que é uma boa pessoa. Também digo à
senhora que não há muitos como ele, quando não faz um favor é quando mesmo não
pode ser. Eles dizem que tem uns filhos lá fora nos estudos, que sabem muito.
Cá na cidade está um que é o sr. cónego da Sé[12],
já aqui tem estado na Lombada, a senhora há-de conhecer, é um padre de muito
respeito. Conheci-o, era um gorgulhinho como este (e indicou o filho) muitas
vezes os vi pela mão da criada Josefina, que levava o outro ao colo - o menino
Joãozinho - dizem que já está quase doutor. Também poucos merecem que Deus os
ajude como o meu compadre o Sr Feliciano. Tu gostas do padrinho, João?
O rapaz riu-se, e disse que sim três vezes com a
cabeça.
- Ele quis que este meu crianço se chamasse João por
ser o nome do filho.
VIII
Vigie a minha senhora a alegria daqueles pobres, houvera
a senhora de ouvir a Zabelinha do Palame que esteve presente. Ai, filhos,
filhos! Só quem os não tem é que não os estima!
O pai, a mãe, Pedro, Maricas e um filhinho
arranjaram o seu governo e marcharam para aqui. Meteram-se num barco da Calheta
que os havia de deitar no Lugar de Baixo, e subiam pelo caminho do Luzirão para
o casal.
Os barqueiros vinham contentes de bebida, com
licença da senhora, porque o Pedro lhes deu poncha a fartar... mas vinham
demasiadamentecontentes.
Ali na Ponte da Cruz, a senhora sabe aonde é -
naquela ponte onde, quando se passa, todos tiram o carrapuço ou o chapéu para
rezar; lá mesmo o barco deu numa baixa e abriu.
Quatro homens e duas mulheres foram-se logo.
Lá se foi o Pedro.
A Maricas, por via da saia que levava vestida,
aguentou-se na água um pouco aboiando e erguendo nos braços o filhinho que
sorria - coitado daquilo!
Afinal foi afundando e por último só se lhe viam os
braços de fora d'água a agarrando ainda a criança...
Um homem que estava nas suas sinas e que anadava
para ela, conseguiu desapegar-lhe as mãos do piqueno e salvá-lo, em
mentes o mar o não levava também. Diz ele que lhe parecia ouvir debaixo d’água
a voz da mãe, pedindo que lhe salvassem o filho.
O homem adanou para uma furna, porque ali há muitas,
e esperou que chegasse outro barco que o recolhesse. O pequeno, coitado
d'aquilo, o que fazia era gritar pela mãe e dizer que tinha frio, que queria
água.
Coitado do triste. O ti Manuel perdeu o siso, ficou
tonto de todo, a mulher também se afogara. O casal por aí ficou; as
benfeitorias passaram para outro dono; o rapazinho, dizem eles, tem esse
dinheiro na arca dos órfãos, mas do que lhe serve? O titor, o ti
Rabolla, há-de ter artes para lho tirar todo. Aí se tem criado. Deus sabe como.
Eu nunca passo por aquele sítio que não esfrie toda,
que nem rocha da ribeira, e rezo sempre um padre-nosso ao Senhor Jesus dos
Milagres por alma de tantos que ali têm morrido sem padre, nem sacramento.
Agora vigio, a senhora a modos que tem os olhos
chorosos...
- Então queria que me risse?
Lá nada, senhora, o caso não é para isso. Mas, minha
senhora, se tiver algum trapinho velho do seu senhor, dê àquele pobre que está
bem carecido. Sem mãe, nem pai! Deus Nosso Senhor dê melhor sorte a este pela divina
misericórdia e a Virgem do Monte, que é a mãe de nós todos.
E apertou a si o filho, traduzindo num fervoroso
beijo todo o seu amor maternal. Tão certo é que o coração de mãe é igual em
todas as mulheres.
Madeira - 1878
[1] João Gonçalves Zarco, capitão donatário da ilha da Madeira.
[2] In Gaspar Frutuoso
[3] Da linguagem falada pelos habitantes das freguesias rurais da Madeira e de alguns dos seus usos e costumes tentamos (...) dar uma ligeira ideia às leitoras do continente. São fruto de algumas notas tomadas durante a nossa longa residência naquela ilha.
[4] É assim que na ilha da Madeira a mulher trata o marido e vice-versa, quer na presença quer na ausência. Para evitar maior número de notas advertimos de novo que a linguagem é igual à que usam os habitantes do campo.
[5] Quando
na Madeira se emprega a palavra `batata' entende-se que é a batata doce, que
constitui um dos principais alimentos da ilha. À batata comum chama-se semilha,
e é ali menos vulgar e mais cara do que
no continente.
[6] Morgado do Jangão é o digno Par do Reino o sr. dr. Agostinho de Ornelas, que também na Lombada possui diversos terrenos, uma boa casa e uma capela com a invocação de Nossa Senhora da Piedade; além de este tem S. Ex.a mais morgadios em outros pontos da ilha. Os camponeses da Madeira, mesmo na ausência das pessoas, as tratam por senhor, à excepção das que consideram seus iguais ou inferiores.
[7] O que chamamos brincos das orelhas.
[8] O Natal.
[9] O rajão e o machete do Braga são uns instrumentos peculiares da gente dos campos da Madeira: raro é o vilão que não possui um deles ou ambos e que os não saiba tocar para acompanhar os improvisos e cantigas ao desafio, a que chamam trovas e as chácaras e histórias em verso, a que chamam arengas.
[10] Expressão popularíssima em todo o concelho da Ponta do Sol (...) é usada não só pelos camponeses mas também pela gente mais ilustrada.
[11] Berbice
[12] Referência ao Cónego Feliciano Teixeira, ilustre filho da Ponta do Sol, irmão dos drs. João Augusto Teixeira – que foi director da extinta Escola Médico-Cirúrgica do Funchal - e Nuno Silvestre Teixeira - professor da referida escola e estudioso-divulgador das qualidade terapêuticas das areias do Porto Santo.
(N. MR)