John Locke e o individualismo Liberal

Leonel Itaussu Almeida Mello

("Os Clássicos da Política", org. Francisco C. Weffort, Ed. Ática, 1989, pág. 80-89)

 

As Revoluções Inglesas

"Em defesa da Liberdade, do Parlamento e da Religião Protestante", com este lema gravado em seu estandarte Guilherme de Orange desembarcou em solo britânico para depor o rei Jaime II e encerrar em 1688 um longo e tumultuado período da história inglesa.

O século XVII foi marcado pelo antagonismo entre a Coroa e o Parlamento, controlados, respectivamente, pela dinastia Stuart, defensora do absolutismo, e a burguesia ascendente, partidária do liberalismo. Esse conflito assumiu também conotações religiosas e se mesclou com as lutas sectárias entre católicos, anglicanos, presbiterianos e puritanos. Finalmente, a crise político-religiosa foi agravada pela rivalidade econômica entre os beneficiários dos privilégios e monopólios mercantilistas concedidos pelo Estado e os setores que advogavam a liberdade de comércio e de produção.

Em 1640, o confronto entre o rei Carlos I e o Parlamento envolveu o país numa sangrenta guerra civil que só terminou em 1649 com a vitória das forças parlamentares. A Revolução Puritana, como foram denominados esses eventos, culminou com a execução de Carlos I e a implantação da república na Inglaterra.

Foi após os horrores da guerra civil, da consumação do regicídio e da instauração da férrea ditadura de Cromwell, que Thomas Hobbes, refugiado na França, publicou em 1651 o Leviatã. 0 livro era uma apologia do Estado todo-poderoso que, monopolizando a força concentrada da comunidade, torna-se fiador da vida, da paz e da segurança dos súditos.

O Protetorado de Cromwell, apoiado no exército e na burguesia puritana, transformou a Inglaterra numa grande potência naval e comercial. Em 1660 a morte do Lorde Protetor envolveu o país numa crise política cuja solução, para evitar uma nova guerra civil, foi a restauração da monarquia e o retorno dos Stuart ao trono inglês.

Durante a Restauração (1660-88) reativou-se o conflito entre a Coroa e o Parlamento, que se opunha à política pró-católica e pró-francesa dos Stuart. Em 1680, no reinado de Carlos 11, o Parlamento cindiu-se em dois partidos, os Tories e os Whigs, representando, respectivamente, os conservadores e os liberais.

A crise da Restauração chegou ao auge no reinado de Jaime 11, soberano católico e absolutista. Os abusos reais levaram à união dos Tories e Whigs que, aliando-se a Guilherme de Orange, chefe de Estado da Holanda e genro de Jaime 11, organizaram uma conspiração contra o monarca "papista".

Em 1688, Guilherme de Orange aportou no país à frente de um exército e, após a deposição de Jaime 11, recebeu a coroa do Parlamento. A Revolução Gloriosa assinalou o triunfo do liberalismo político sobre o absolutismo e, com a aprovação do Bill of Rights em 1689, assegurou a supremacia legal do Parlamento sobre a realeza e instituiu na Inglaterra uma monarquia limitada.

John Locke (1632-1704) que, com o opositor dos Stuart, se encontrava refugiado na Holanda, retornou à Inglaterra após o triunfo da Revolução Gloriosa. Em 1689-90 publica suas principais obras: Cartas sobre a tolerância, Ensaio sobre o entendimento humano e os Dois tratados sobre o governo civil.

O Segundo tratado é uma justificação ex post facto da Revolução Gloriosa, onde Locke fundamenta a legitimidade da deposição de Jaime 11 por Guilherme de Orange e pelo Parlamento com base na doutrina do direito de resistência. Segundo o autor, seu ensaio estava destinado a confirmar a entronização de nosso Grande Restaurador, o atual Rei Guilherme; a justificar seu título em razão do consentimento do povo, pelo que, sendo o único dos governos legais, ele o possui de modo mais completo e claro do que qualquer outro príncipe da cristandade".

Locke nasceu em 1632 no seio de uma família burguesa da cidade de Bristol. Seu pai, um comerciante puritano, combateu na guerra civil nas fileiras do exército do Parlamento. Em 1652 Locke foi estudar em Oxford, formando-se em medicina e tornando-se posteriormente professor daquela Universidade. Em 1666 foi requisitado como médico e conselheiro de lorde Shaftesbury, destacado político liberal, líder dos Whigs e opositor do rei Carlos II no Parlamento. Shaftesbury foi o mentor político de Locke, exercendo grande influência em sua formação liberal. Em 1681, acusado de conspirar contra Carlos II, Shaftesbury foi obrigado a exilar-se na Holanda, onde faleceu dois anos depois. 0 envolvimento na conspiração de seu patrono obrigou Locke também a refugiar-se na Holanda em 1683, de onde só retornou após a queda de Jaime II.

Além de defensor da liberdade e da tolerância religiosas, Locke é considerado o fundador do empirismo, doutrina segundo a qual todo o conhecimento deriva da experiência. Como filósofo, Locke é conhecido pela teoria da tábula rasa do conhecimento, desenvolvida no Ensaio sobre o entendimento humano, onde afirma:

Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel branco, desprovida de todos os caracteres, sem quaisquer idéias; como ela será suprida? De onde lhe provêm este vasto estoque, que a ativa e que a ilimitada fantasia do homem pintou nela com uma variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra, da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. (Livro II, cap. 1, sec. 2)

A teoria da tábula rasa é, portanto, uma crítica à doutrina das idéias inatas, formulada por Platão e retomada por Descartes, segundo a qual determinadas idéias, princípios e noções são inerentes ao conhecimento humano e existem independentemente da experiência.

Como foi dito, os Dois tratados, es critos provavelmente em 1679-80, quando da conspiração de Shaftesbury contra Carlos 11, só foram publicados na Inglaterra em 1690, após o triunfo da Revolução Gloriosa.

O Primeiro tratado é uma refutação do Patriarca, obra em que Robert Filmer defende o direito divino dos reis com base no princípio da autoridade paterna que Adão, supostamente o primeiro pai e o primeiro rei, legará à sua descendência. De acordo com essa doutrina, os monarcas modernos eram descendentes da linhagem de Adão e herdeiros legítimos da autoridade paterna dessa personagem bíblica, a quem Deus outorgara o poder real.

O Segundo tratado é, como indica seu título, um ensaio sobre a origem, extensão e objetivo do governo civil. Nele, Locke sustenta a tese de que nem a tradição nem a força, mas apenas o consentimento expresso dos governados é a única fonte do poder político legítimo. Locke tornou-se célebre principalmente como autor do Segundo tratado, que, no plano teórico, constitui um importante marco da história do pensamento político, e, a nível histórico concreto, exerceu enorme influência sobre as revoluções liberais da época moderna.

A exposição que se segue é uma síntese da teoria política desenvolvida no Segundo tratado, considerado por Norberto Bobbio como a primeira e a mais completa formulação do Estado liberal.

O estado de natureza

Juntamente com Hobbes e Rousseau, Locke é um dos principais representantes do jusnaturalismo ou teoria dos direitos naturais. O modelo jusnaturalista de Locke é, em suas linhas gerais, semelhante ao de Hobbes: ambos partem do estado de natureza que, pela mediação do contrato social, realiza a passagem para o estado civil. Existe, contudo, grande diferença na forma como Locke, diversamente de Hobbes, concebe especificamente cada um dos termos do trinômio estado natural/contrato social/estado civil.

Em oposição à tradicional doutrina aristotélica, segundo a qual a sociedade precede ao indivíduo, Locke afirma ser a existência do indivíduo anterior ao surgimento da sociedade e do Estado. Na sua concepção individualista, os homens viviam originalmente num estágio pré-social e pré-político, caracterizado pela mais perfeita liberdade e igualdade, denominado estado de natureza.

O estado de natureza era, segundo Locke, uma situação real e historicamente determinada pela qual passara, ainda que em épocas diversas, a maior parte da humanidade e na qual se encontravam ainda alguns povos, como as tribos norte-americanas. Esse estado de natureza diferia do estado de guerra hobbesiano, baseado na insegurança e na violência, por ser um estado de relativa paz, concórdia e harmonia.

Nesse estado pacífico os homens já eram dotados de razão e desfrutavam da propriedade que, numa primeira acepção genérica utilizada por Locke, designava simultaneamente a vida, a liberdade e os bens como direitos naturais do ser humano.

A teoria da propriedade

Locke utiliza também a noção de propriedade numa segunda acepção que, em sentido estrito, significa especificamente a posse de bens móveis ou imóveis. A teoria da propriedade de Locke, que é muito inovadora para sua época, também difere bastante da de Hobbes.

Para Hobbes, a propriedade inexiste no estado de natureza e foi instituída pelo Estado-Leviatã após a formação da sociedade civil. Assim como a criou, o Estado pode também suprimir a propriedade dos súditos. Para Locke, ao contrário, a propriedade já existe no estado de natureza e, sendo uma instituição anterior à sociedade, é um direito natural do indivíduo que não pode ser violado pelo Estado.

O homem era naturalmente livre e proprietário de sua pessoa e de seu trabalho. Como a terra fora dada por Deus em comum a todos os homens, ao incorporar seu trabalho à matéria bruta que se encontrava em estado natural o homem tornava-a sua propriedade privada, estabelecendo sobre ela um direito próprio do qual estavam excluídos todos os outros homens. O trabalho era, pois, na concepção de Locke, o fundamento originário da propriedade.

Se a propriedade era instituída pelo trabalho, este, por sua vez, impunha limitações à propriedade. Inicialmente, quando "todo o mundo era como a América", o limite da propriedade era fixado pela capacidade de trabalho do ser humano. Depois, o aparecimento do dinheiro alterou essa situação, possibilitando a troca de coisas úteis, mas perecíveis, por algo duradouro (ouro e prata), convencionalmente aceito pelos homens. Com o dinheiro surgiu o comércio e também uma nova forma de aquisição da propriedade, que, além do trabalho, poderia ser adquirida pela compra. O uso da moeda levou, finalmente, à concentração da riqueza e à distribuição desigual dos bens entre os homens. Esse foi, para Locke, o processo que determinou a passagem da propriedade limitada, baseada no trabalho, à propriedade ilimitada, fundada na acumulação possibilitada pelo advento do dinheiro.

A concepção de Locke, segundo a qual "é na realidade o trabalho que provoca a diferença de valor em tudo quanto existe", pode ser considerada, em certa medida, como precursora da teoria do valor-trabalho, desenvolvida por Smith e Ricardo, economistas do liberalismo clássico.

O Contrato Social

O estado de natureza, relativamente pacífico, não está isento de inconvenientes, como a violação da propriedade (vida, liberdade e bens) que, na falta de lei estabelecida, de juiz imparcial e de força coercitiva para impor a execução das sentenças, coloca os indivíduos singulares em estado de guerra uns contra os outros.

É a necessidade de superar esses inconvenientes que, segundo Locke, leva os homens a se unirem e estabelecerem livremente entre si o contrato social, que realiza a passagem do estado de natureza para a sociedade política ou civil. Esta é formada por um corpo político único, dotado de legislação, de judicatura e da força concentrada da comunidade. Seu objetivo precípuo é a preservação da propriedade e a proteção da comunidade tanto dos perigos internos quanto das invasões estrangeiras.

O contrato social de Locke em nada se assemelha ao contrato hobbesiano. Em Hobbes, os homens firmam entre si um pacto de submissão pelo qual, visando a preservação de suas vidas, transferem a um terceiro (homem ou assembléia) a força coercitiva da comunidade, trocando voluntariamente sua liberdade pela segurança do Estado-Leviatã.

Em Locke, o contrato social é um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para preservar e consolidar ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza. No estado civil os direitos naturais inalienáveis do ser humano à vida à liberdade e aos bens estão melhor protegidos sob o amparo da lei, do árbitro e da força comum de um corpo político unitário.

A Sociedade Política ou civil

Assim, a Passagem do estado de natureza Para a sociedade Política ou civil (Locke não distingue entre ambas) se opera quando, através do contrato social, os indivíduos singulares dão seu consentimento unânime para a entrada no estado civil.

Estabelecido o estado civil, o passo seguinte é a escolha pela comunidade de uma determinada forma de governo. Na escolha do governo, a unanimidade do contrato originário cede lugar ao princípio da maioria, segundo o qual prevalece a decisão majoritária e, simultaneamente, são respeitados os direitos da minoria.

De acordo com a teoria aristotélica das formas de governo, a comunidade pode ser governada por um, por poucos ou por muitos, conforme escolha a monarquia, a oligarquia ou a democracia. A escolha pode recair ainda sobre o governo misto, corno o existente na Inglaterra após a Revolução Gloriosa, onde a Coroa representava o princípio monárquico, a Câmara dos Lordes o oligárquico e a Câmara dos Comuns o democrático.

Na concepção de Locke, porém, qualquer que seja a sua forma, "todo o governo não possui outra finalidade além da conservação da propriedade".

Definida a forma de governo, cabe igualmente à maioria escolher o poder legislativo, que Locke, conferindo-lhe urna superioridade sobre os demais poderes, denomina de poder supremo. Ao legislativo se subordinam tanto o poder executivo, confiado ao príncipe, como o poder federativo, encarregado das relações exteriores (guerra, paz, alianças e tratados). Existe uma clara separação entre o poder legislativo, de um lado, e os poderes executivo e federativo, de outro lado, os dois últimos podendo, inclusive, ser exercidos pelo mesmo magistrado,

Em suma, o livre consentimento dos indivíduos para o estabelecimento da sociedade, o livre consentimento da comunidade para a formação do governo, a proteção dos direitos de propriedade pelo governo, o controle do executivo pelo legislativo e o controle do governo pela sociedade, são, para Locke, os principais fundamentos do estado civil.

O direito de resistência

No que diz respeito às relações entre o governo e a sociedade, Locke afirma que, quando o executivo ou o legislativo violam a lei estabelecida e atentam contra a propriedade, o governo deixa de cumprir o fim a que fora destinado, tornando-se ilegal e degenerando em tirania. O que define a tirania é o exercício do poder para além do direito, visa não o interesse próprio e não o bem público ou comum.

Com efeito, a violação deliberada e sistemática da propriedade (vida, liberdade e bens) e o uso contínuo da força sem amparo legal colocam o governo em estado de guerra contra a sociedade e os governantes em rebelião contra os governados, conferindo ao povo o legítimo direito de resistência à opressão e à tirania.

O estado de guerra imposto ao povo pelo governo configura a dissolução do estado civil e o retorno ao estado de natureza, onde a inexistência de um árbitro comum faz de Deus o único juiz, expressão utilizada por Locke para indicar que, esgotadas todas as alternativas, o impasse só pode ser decidido pela força.

Segundo Locke, a doutrina da legitimidade da resistência ao exercício ilegal do poder reconhece ao povo, quando este não tem outro recurso ou a quem apelar para sua proteção, o direito de recorrer a força para a deposição do governo rebelde. O direito do povo à resistência é legítimo tanto para defender-se da opressão de um governo tirânico como para libertar-se do domínio de uma nação estrangeira.

A doutrina do direito de resistência não era recente e sua origem remontava às guerras de religião, quando os escritores políticos calvinistas, denominados monarcomaci, conclamavam o povo a resistir aos atos ilegais dos príncipes católicos. Resgatada e revalorizada por Locke no Segundo tratado, a doutrina do direito de resistência transformou-se no fermento das revoluções liberais que eclodiram depois na Europa e na América.

Conclusão

Os direitos naturais inalienáveis do indivíduo à vida, à liberdade e à propriedade constituem para Locke o cerne do estado civil e ele é considerado por isso o pai do individualismo liberal.

Norberto Bobbio, resumindo os aspectos mais relevantes do pensamento lockiano, afirma:

Através dos princípios de um direito natural preexistente ao Estado, de um Estado baseado no consenso, de subordinação do poder executivo ao poder legislativo, de um poder limitado, de direito de resistência, Locke expôs as diretrizes fundamentais do Estado liberal. (Direito e Estado no pensamento de Kant, UNB, 1984, p. 41.)

Locke forneceu a posteriori a justificação moral, política e ideológica para a Revolução Gloriosa e para a monarquia parlamentar inglesa.

Locke influenciou a revolução norte-americana, onde a declaração de independência foi redigida e a guerra de libertação foi travada em termos de direitos naturais e de direito de resistência para fundamentar a ruptura com o sistema colonial britânico.

Locke influenciou ainda os filósofos iluministas franceses, principalmente Voltaire e Montesquieu e, através deles, a Grande Revolução de 1789 e a declaração de direitos do homem e do cidadão.

E, finalmente, com a Grande Revolução as idéias "inglesas", que haviam atravessado o canal da Mancha e estabelecido uma cabeça de ponte no continente, transformaram-se nas idéias "francesas" e se difundiram por todo o Ocidente.