Locke: o pensador do liberalismo

Nilda Teves Ferreira

(Do livro: Cidadania - uma questão para a educação,

Ed. Nova Fronteira, 1993, pág. 68-96)

Assim como Hobbes, Locke é um pensador do século XVII, influenciado pelo racionalismo cartesiano, as conquistas das ciências e as mudanças estruturais na Europa. Viveu num período agitado por novas idéias, rico em tendências contraditórias e solo das raízes do liberalismo. Do século XVII procedem as idéias básicas que deságuam nas revoluções Americana, de 1776, e Francesa, de 1789. É um tempo de dúvidas, criações, conflitos e reorganização social. Locke, sem dúvida, está na origem dessa reorganização. Como filósofo, é um dos precursores do empirismo moderno, na medida em que procura conciliar as contribuições do racionalismo de Descartes e do empirismo de Bacon. Seu Ensaio sobre o entendimento humano (1983) é, na ,verdade, uma teoria do conhecimento. Sustenta que a fonte originaria de nossas idéias é a experiência, e que sensação e reflexão são os dois grandes instrumentos do nossas idéias é a experiência, e que sensação e reflexão são os dois grandes instrumentos do nosso intelecto.

Segundo Cranston (1961), o interesse central da proposta filosófica e reformadora de Locke é

afastar-se da imaginação, do vago glamor das coisas medievais, de impensados apegos à tradição, ao entusiasmo, ao misticismo. Afastar-se de toda "iluminação" privada, visionária, e aproximar-se dos fatos publicamente verificáveis, mensuráveis, demonstráveis.

Nosso autor se move no espaço da dúvida metódica, embora não se filie radicalmente ao cartesianismo. Para ele, não existem idéias inatas mediante as faculdades naturais (sensações e reflexões), o homem pode adquirir todos os conhecimentos; não precisa de nenhum princípio a priori. Não há indícios de que as crianças, ao nascerem, já tenham idéias. A metáfora da tabula rasa expressa o repúdio aos preconceitos e aos argumentos infundados sobre a autoridade. Na Carta sobre a tolerância religiosa, Locke deixa claro seu combate ao poder semipolítico da Igreja, vinculando-se aos ideais de laicização do governo civil:

Considero necessário distinguir entre as funções do governo civil e da religião; as coisas deste mundo são afeitas ao governo civil, e os interesses civis nada têm a ver com o mundo futuro. (Locke, 1983, p. 5)

Assim corno Hobbes e, posteriormente, Rousseau, Locke é "jusnaturalista". (1) Suas idéias políticas têm como pressuposto os direitos naturais do homem. Embora não assuma explicitamente sua vinculação ao pensamento hobbesiano, aceita uma série de idéias do teórico do Leviatã: a passagem do Estado de Natureza para o Esado Civil mediante um pacto; a liberdade e a igualdade dos indivíduos no Estado de Natureza; o argumento da renúncia.

Também para Locke, o indivíduo renuncia aos seus poderes originais em prol do bem comum: todos concordam em obedecer às leis e sabem a quem devem obedecer. A diferença fundamental, extremamente importante, é que para Locke tudo isso tem limites: os direitos naturais, a renúncia, a obediência. Melhor dizendo: Locke põe limites no que, na teoria de Hobbes, parece ser ilimitado.

 

Pressupostos do Estado de Natureza

Na perspectiva lockeana, há paz no Estado de Natureza. Os homens vivem em retidão, até mesmo em certa inocência.

Aquele que nos fez, dotou a todos de faculdades iguais. Deus deu o mundo a Adão e a seus pósteros em comum. Nesse estado os homens são livres de qualquer constrangimento para realizar suas faculdades, seu engenho e sua arte. (Locke, 1983, p. 45) Não há possibilidade de se supor que haja subordinação entre os homens. (Locke, 1983, p. 36)

Cada um dispõe de si próprio e está no mundo independentemente dos demais. Todos são livres, assim como a terra e os animais. No entanto, a própria natureza impele os homens a se associar, a constituir família, a trabalhar para sustentar a si e àsua prole. A igualdade e a reciprocidade são a marca desse estágio: ninguém possui mais que os outros. Pautado nessa idéia de igualdade natural, Locke (1983, p. 37) vai dizer que

cada um é obrigado não apenas a conservar a si mesmo e ao ambiente onde subsiste, mas também, na medida do possível, todas as vezes que sua própria conservação não estiver em jogo, a zelar pela preservação do restante da humanidade.

O direito à vida e à propriedade são imprescritíveis e inalienáveis. Só quando não estão em risco é que cabe o dever de pensar nos outros. O individualismo é bastante forte em sua teoria, na medida em que o indivíduo deve, por lei natural, pensar primeiro em si e só depois na humanidade. Grande ilusão: queira ou não, o indivíduo faz parte da humanidade. O que a coloca em risco o atinge diretamente.

Mesmo admitindo as ambigüidades do pensamento de Locke, vale ressaltar que ele pensou o Estado de Natureza como uma sociedade igualitária e, de certa forma, tranqüila. Nesse estado, os homens se autogovernam, orientados pela razão natural que prescreve as leis fundamentais para a vida humana naquelas condições. Essas leis negam a ação predatória contra a natureza e afirmam os direitos naturais de todos os homens. A natureza é dada ao homem para que ele extraia o seu sustento, e não para submetê-la aos seus caprichos. Ninguém tem o direito de assenhorear-se da terra e de seus frutos, que a todos pertencem. Cada indivíduo tem a sua parcela nessa natureza e deve respeitá-la. No caso de se exceder, de apropriar-se de mais do que precisa, não pode deixar o alimento apodrecer; o desperdício é contrário à lei natural, representa trabalho inútil, esforço jogado fora.

Por que haveria o homem de trabalhar e depois desperdiçar o resultado de seu trabalho? Se assim fizer, se cometer esse "deslize", deve doar, permitindo que os outros desfrutem desse excedente. Há, pois, no Estado de Natureza, uma moral natural que impõe limites à consciência humana e diz para o indivíduo que ele não deve prejudicar seus semelhantes em tudo aquilo que é eminentemente humano: a vida, a liberdade, as posses. Essa concepção de sociedade igualitária, cujo pressuposto é a universalidade dos direitos naturais, coincide com as idéias de Hobbes sobre o Estado de Natureza. Como, então, negar o Estado de Guerra? Para Locke, a saída está em reconhecer que esses direitos, embora naturais, são limitados, o que permite imaginar uma possível convivência social pacífica. Deixemos que o filósofo fale, num trecho de singular beleza, que revela a dimensão eminentemente cristã do seu pensamento:

O Estado de Natureza, embora seja um estado de liberdade, não o é de licenciosidade; apesar de naquele estado ter o homem liberdade incontrolável de dispor de sua própria pessoa e posses, não tem a de destruir-se a si mesmo ou a qualquer criatura que esteja em sua posse, senão quando uso mais nobre do que a simples conservação o exija. 0 Estado de Natureza tem uma lei de natureza para governá-lo, que a todos obriga; e a razão, que é essa lei, ensina a todos os homens que tão só a consultem, sendo todos iguais e independentes, que nenhum deles deve prejudicar a outrem na vida, na saúde, na liberdade ou nas posses. (Locke, 1983, p. 36)

Portanto, os direitos naturais do homem são limitados à sua própria pessoa. Ele não pode infringir esse limite, nenhum homem pode sobrepujar outro. Nesse aspecto, Locke assimila a idéia romana do jus naturale como um conjunto de princípios universais e eternos de justiça, válidos para todos. A natureza é dada a todos, indistintamente, mas é fantasia pensar que ela sempre oferece abundância. Em geral, o que se vê é penúria e escassez. "Ganharás o teu pão com o suor do teu rosto" não significa apenas uma condenação; revela a própria situação do homem no mundo onde a mãe Natureza limita suas doações e exige esforços para renovar seus recursos.

O direito fundamental da preservação dos homens depende de cada um. Cabe ao indivíduo a produção material de sua existência, mas ele precisa se associar a outros homens se quiser reter o resultado dessa produção. Ainda nesse aspecto, as idéias lockeanas não se afastam de Hobbes, para quem o indivíduo só é dono do que consegue manter em seu poder. No entanto, para Locke, a grande ameaça que ronda cada um não é o perigo da morte violenta, mas a miséria, a fome, presente todo o tempo, espreitando cada um, real ou virtualmente, do nascimento à morte. Não há como liquidá-la em definitivo. A cada momento ela se renova e se mostra. Alimentar-se não é, pois, procurar um bem, mas fugir de um terrível mal. É a escassez de alimentos que leva o homem a mudar seu procedimento, a se afastar da lei natural, a deixar de ser dadivoso, tornando-se ao mesmo tempo capaz de se organizar para não ficar miserável e faminto. Esse ser previdente, que aspira à felicidade, passa então a gravitar em torno da idéia de acumulação, que estimula a desonestidade, a transgressão, a delinqüência.

Pelo medo da fome, o homem deixa de doar o que lhe sobra. Para transformar os bens perecíveis em não perecíveis surgem as trocas, que propiciam a posse (Manent, 1990). A fome está, portanto, na origem de tudo, da produção à troca, da propriedade à posse, da acumulação à disputa. Em última instância, a sociabilidade do homem e a idéia de propriedade provêm da necessidade de se manter livre da fome. E só em sociedade o homem é efetivamente livre, pois só nela pode preservar a si mesmo e à sua propriedade. Daí a necessidade de instituir o Estado.

Como se vê, o perfil do homem natural de Locke é bastante diferente do homo homini lupus. Vejamos agora como nosso autor trata a questão da propriedade, pressuposto fundamental do princípio de mercado.

Da propriedade à posse

Na teoria de Locke, os conceitos de indivíduo, trabalho e propriedade são indissociáveis. 0 direito natural à propriedade justifica-se pelo trabalho individual, como se vê neste trecho.

O trabalho do seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele. Seja o que for que ele retire do estado que a natureza lhe forneceu e no qual deixou, fica-lhe misturado ao trabalho, juntando-se-lhe algo que lhe pertence e, por isso mesmo, tornando-o propriamente dele. (Locke, 1983, p. 45)

O trabalho do indivíduo constitui a essência da propriedade. Trata-se de uma concepção moderna, que reaparece depois no pensamento de Marx, com a diferença de que o autor de 0 capital vê na propriedade a condensação não só do trabalho individual, mas do trabalho social (Marx, 1974). Na concepção de Locke, os direitos dos indivíduos são limitados à sua própria pessoa. O indivíduo é proprietário daquilo que consegue com o suor do seu rosto, com a arte das suas mãos, com a força do seu trabalho. Como o direito natural antecede ao Estado, não resulta de nenhuma convenção.

Desde que esse trabalho é propriedade exclusiva do trabalhador, nenhum outro homem pode ter direito ao que se junta pelo menos quando houver bastante e igualmente de boa qualidade em comum para terceiros. (Locke, 1983, p. 45)

Ele chama a atenção, pois, para o fato de que o direito de propriedade está ligado à existência de bens de boa qualidade para todos os homens. Reforça essa idéia ao dizer (1983, p. 45):

O fruto ou a caça que alimenta o índio selvagem, que não conhece divisas e ainda possui em comum, deve ser dele e de tal maneira dele, isto é, parte dele, que qualquer outro não possa mais alegar qualquer direito àqueles alimentos, antes que lhe tragam qualquer benefício para sustentar-lhe a vida.

Se alguma vez existiu uma sociedade de iguais, como se deu a passagem para a sociedade de desiguais? Como se explica a existência de ricos e pobres? Onde se funda essa desigualdade? Locke responde (1983, p. 49):

Ouso afirmar corajosamente o seguinte: a mesma regra de propriedade, isto é, que todo homem deve ter tanto quanto possa utilizar, valeria ainda no mundo sem prejudicar ninguém, desde que existe terra bastante para o dobro dos habitantes, se a invenção do dinheiro e o tácito acordo dos homens, atribuindo um valor à terra, não tivessem introduzido - por consentimento - maiores posses e direitos a elas.

A desigualdade social se fez, portanto, a partir de uma convenção humana:

Antes que o desejo de se ter mais do que se precisa tivesse alterado o valor intrínseco de tudo quanto somente depende da própria utilidade para a vida do homem, ou tivessem concordado em que um pedacinho de metal ' amarelo que se conservas se sem desgaste ou decomposição eqüivaleria a um grande pedaço de carne ou a um monte inteiro de trigo, embora os homens tivessem o direito de se apropriar, pelo trabalho, cada um para si, de tudo quanto na natureza pudessem fazer uso, não poderia isto ser demasiado, nem em prejuízo de terceiro. (Locke, 1983, p. 49)

Sem a criação do dinheiro, ou melhor, sem o processo de troca mediado pela moeda, é absurda a produção do excedente. Na medida em que ninguém consegue consumir tudo o que é capaz de produzir, torna-se imperativo doar para não ver apodrecer o resultado do trabalho. A riqueza de alguns, a acumulação, a desigualdade social procedem, pois, da criação do dinheiro. Desde então, o homem se desvirtuou da lei da natureza, segundo a qual ninguém deveria ter mais do que outro; que cada um deveria ter, mediante o próprio trabalho, apenas o quanto pudesse utilizar. Enfim, a convenção que resultou no dinheiro tornou possível um salto, de proprietário do próprio trabalho para proprietário do trabalho alheio. Nesse momento se dá a passagem do direito natural à propriedade sem limite. 0 dinheiro permite trocar bens perecíveis por não perecíveis e, com isso, passar da propriedade à posse. Abandona-se a idéia de doação. Basta, agora, trocar o excedente por dinheiro. A quantidade de trabalho incorporada na mercadoria não se perde, apenas muda de mãos.

Pierre Manent (1990) afirma que o direito do proprietário se desvinculou legitimamente do direito do trabalhador no momento em que a propriedade, introduzida no mundo do trabalho, pôde ser representada pelo dinheiro. Para ele, Locke legitima essa separação, fundando-a na idéia de liberdade individual. Quem compra uma mercadoria não a produz; passa a possuir, através do dinheiro, o trabalho alheio. No entanto, ninguém obriga ninguém a vender o que é seu. A liquidez imediata da moeda permite que o comprador nada deva ao vendedor, já que o preço pago pela mercadoria corresponde às horas de trabalho nela investidas. O trabalhador apenas troca aquilo que não quer mais por aquilo que quer agora: dinheiro. É livre para isso, nada constrange a fazê-lo. Exploram-se apenas as condições legais, trocam-se equivalentes: horas de trabalho por dinheiro. Sob este aspecto, proprietários de meios de produção e trabalhadores também se igualam na condição de sujeitos de suas vontades subjetivas, sendo livres para praticar os mesmos atos. Assim, poder e dever se equiparam na equação liberal lockeana. O princípio de mercado funda aí suas bases: para que as trocas sejam legítimas é preciso haver liberdade individual.

A equivalência de "mercadorias" distintas põe à mostra a especificidade do trabalho: criar valor. Nas sociedades igualitárias, todos são nivelados pela propriedade fundamental de seu corpo e do resultado de seu trabalho. Ao estabelecer a sociedade de mercado, se institui a diferença entre propriedade e valor; agora, o que o homem cria é valor, e não mais propriedade. A riqueza do indivíduo é vista como reflexo do seu talento, do seu próprio esforço, engenho e arte, e não como resultado da expropriação da propriedade alheia. A acumulação primitiva aparece como conseqüência dos desempenhos individuais. Com isso, Locke pensa justificar as diferenças sociais. Os ricos são ricos ou por que herdaram (o que não deixa de ser legítimo), ou porque são talentosos, trabalhadores, esforçados e previdentes. Os pobres, os desvalidos da sorte devem se esforçar para também conseguir riqueza pessoal. Na visão de Locke, todo homem pode e deve trabalhar. Daí, não tem sentido o Estado previdente, que inibiria a criatividade e o esforço de cada um. Alimentar a imprevidência dos homens é abrir as portas ao vício e à preguiça.

Partindo da concepção do indivíduo como um ser natural, Locke apela à idéia do direito natural à liberdade, justificando assim um direito fundado em transações entre homens livres. Mas, desde que nasce, o indivíduo é um ser no mundo, socialmente posicionado. As condições sociais que cercam aquele que nasce na favela da periferia de uma grande cidade diferem das que envolvem o que nasce em uma mansão no interior da mesma cidade. Essas condições favorecem ou não o desenvolvimento pleno das suas capacidades e induzem uma ou outra forma de integração no mundo das "trocas livres". A visão idealista do homem, que o reduz a um indivíduo natural, não leva em conta as relações entre diferentes tipos de proprietários. No contrato, aquele que detém o capital quer "trocá-lo" pela força de trabalho do outro, de tal forma que possa ampliar esse capital. Visa, pois, a retirar do outro algo que originariamente lhe pertence: sua força física. Na medida em que o proprietário dos meios de produção não se coloca nessa relação como sujeito moral, não tem deveres em relação ao outro; não o considera também um ser moral, um homem livre, que tem o direito de exigir justa remuneração por seu trabalho. 0 embate é inevitável e ocorre exatamente em torno da questão do valor do trabalho. No idealismo lockeana, todas essas questões desaparecem, na pressuposição de uma sociedade sem luta de classes, igualitária e justa.

Locke não vê que, sob as leis do mercado, a igualdade dos indivíduos desaparece na porta da fábrica; daí em diante a relação entre eles é outra, não mais regulada pelas trocas livres. A condição social daquele que vende sua força de trabalho é bem diferente da condição daquele que a compra, mostrando como é limitada a equivalência das trocas. Além do mais, o salário não remunera todas as horas de trabalho incorporadas na mercadoria produzida. Parte dessas horas "desaparece" aumentando assim a distância social entre quem compra e quem vende força de trabalho. O valor da força de trabalho é determinado a partir da sua demanda social; quanto maior for a oferta, menor é o salário, e isso se aplica inclusive aos trabalhadores especializados. Ademais, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia aumenta o grau de vulnerabilidade do trabalhador, que se vê constantemente ameaçado de desemprego. Uma vaga para vinte concorrentes igualmente habilitados remete a aviltamentos salariais imprevisíveis. Há, portanto, uma relação assimétrica de poder e de liberdade entre o capitalista e o trabalhador. A relação de indivíduos isolados, estabelecendo trocas livremente, é uma falácia. É pura abstração.

Este é o fundamento da crítica de Marx ao liberalismo. A equação conceitual do mercado, onde parceiros de um contrato têm iguais poderes de decisão, tende a dissolver as diferenças fundamentais entre força de trabalho e outra mercadoria qualquer, assim como oculta a assimetria real existente entre os parceiros. A liberdade e o poder de cada um emergem das condições de oferta e de procura. Clauss Offe (1984), em seu brilhante texto sobre os Problemas estruturais do Estado capitalista, explícita o porquê do "equívoco" de se considerar a força de trabalho como mercadoria. Em primeiro lugar, força de trabalho não é algo que possa separar-se de seu proprietário; em segundo, ela não se torna efetiva apenas no mercado, ou seja, na expectativa de um negócio, mas existe de forma inerente ao sujeito, independentemente daquilo que ele faz. Finalmente, a força de trabalho só tem valor de uso quando associada aos meios de produção. Quando o proprietário é alienado desses meios, essa força se torna meramente virtual, ficando impedida de se efetivar. Pensar a autonomia do mercado, como faz o discurso liberal, é tentar ocultar essas questões.

Na relação de troca entre capital e trabalho estão presentes diferentes formas de trabalho: o trabalho morto, acumulado, materializado na forma de capital, e o trabalho vivo, expresso pelo trabalhador. Ainda aqui é flagrante a desigualdade dos "parceiros": o capital representa a unidade objetiva de vários trabalhos nele acumulados, enquanto o trabalhador representa apenas a si mesmo, a sua força de trabalho, colocada à venda em competição, inclusive, com outros trabalhadores. "O capital", diz Offe (1984, p. 65), "está sempre unificado, enquanto o trabalho vivo está sempre atomizado pela competição." Enquanto o capital se soma, se funde, os trabalhadores podem, quando muito, associar-se para reivindicar coletivamente salários iguais para trabalhos iguais. A necessidade da participação direta dos trabalhadores nas questões coletivas depende do seu grau de organização. 0 capitalista, por sua vez, pode dissociar-se legal e fisicamente do capital que controla. A própria forma de gerenciamento é um exemplo dessa participação à distância do capital. Como a força de trabalho é indissociável do trabalhador, este tem que estar presente nessas relações de forma direta. Para o capitalista, a forma representativa satisfaz.

O capital sai na frente para decidir se deve pagar ou não o que é reivindicado pelo trabalhador. Do ponto de vista do empregado, esta questão não passa ao largo, mas o afeta diretamente. Sua vida, suas necessidades são tão vivas quanto seu trabalho. Não vender sua força de trabalho pode significar fome, desespero, miséria e até mesmo a morte. Conseguir um emprego implica "segurança", saúde, moradia, alimentação. Perder o emprego não é a mesma coisa que deixar de vender uma mercadoria para vendê-la em momento mais apropriado, quando o preço for mais convidativo. A simples ameaça de ficar desempregado descontrola toda a vida do trabalhador. Pode-se constatar este fato verificando-se a dificuldade de organização dos trabalhadores e de movimentos grevistas quando a sociedade passa por momentos recessivos.

A sociedade se constitui através da organização da produção social. Nela, diz Marx (1974, p. 19), não se estabelecem relações entre indivíduos, mas "entre operários e capitalistas, entre o rendeiro e o proprietário fundiário. Eliminai essas relações e tereis abolido a sociedade." Além do mais, existe uma questão que põe em xeque o principio da liberdade, tal como expresso por Locke: a liberdade de ser assalariado ou não, de vender sua força de trabalho ou encontrar outras formas de sobreviver, inclusive roubando. Isso não seria também a expressão de liberdade individual e afirmação de que cada um deve preservar sua vida? Coagir os indivíduos ao trabalho assalariado, mediante legislação, implica restringir a liberdade de escolha. Parece justo dizer que, se o Estado não pode interferir nas leis do mercado, não pode também coagir os indivíduos ao trabalho, mediante legislação. Atuais até hoje, tais questões são deixadas inexplicadas por Locke. (2)

A idéia de propriedade individual livre de constrangimentos sociais é fundamental à teoria do Estado liberal. Este é considerado a forma ideal de organização da sociedade, na medida em que respeita a autonomia da esfera privada. Pode-se ver, assim, que nosso autor admite a distinção entre sociedade civil e Estado. Embora isto não esteja explícito em sua teoria, aparece na defesa que ele faz da autonomia da esfera privada, incluindo nela as trocas livres. Essa autonomia é a base da cidadania civil, que por si mesma não põe em risco os ideais da sociedade burguesa.

O Estado liberal: guardião da propriedade

Para Locke, na Sociedade Natural existe paz, boa vontade e reciprocidade entre os homens. Todos são livres e iguais em competência, e cada um é senhor de si.

Por que, então, os homens abririam mão de parte dessa liberdade para se tornar desiguais? Por que fariam um contrato que implicasse o fim desse paraíso? Responde Locke, por reconhecerem que aquela paz pode ser ameaçada por invasores ou por degenerados. Os indivíduos se associam e fazem o pacto social mais por precaução do que por defesa. Essa resposta parece contraditória, na medida em que se admite que os homens são pacíficos e generosos. Locke procura sair dessa contradição articulando três fatores que apontam para as inconveniências do Estado Natural: a igualdade, a liberdade e o poder executivo de cada um. Acresce a isso dois aspectos subjetivos da natureza humana: o vício e o amor-próprio.

Os homens poderiam viver em conformidade com a Natureza, em harmonia, constituindo uma perfeita comunidade,

se não fosse a corrupção e o vício de alguns degenerados que transgridem essa lei. Não fosse isso, não haveria nenhuma necessidade de se instituir outra forma de vida, senão aquela pura e tranqüila. (Locke, 1983, p. 83)

O Estado aparece não porque todos os homens sejam egoístas, mas porque alguns se afastam do bem comum. Não tem origem em um estado de guerra de todos contra todos, mas na existência de indivíduos que ameaçam a paz e a tranqüilidade da sociedade. "Um indivíduo desse tipo declara abandonar os princípios da natureza humana, tornando-se criatura prejudicial a outrem" (Locke, 1983, p. 37).

Por causa da violação das leis naturais, de divergências quanto às regras precisas da razão, cada indivíduo tem o direito de castigar aquele que assim procede, punindo os malfeitores.

Locke (1983, p. 37) é categórico: "no Estado de Natureza todo mundo tem o poder executivo da lei da natureza".

Se existem apenas alguns transgressores e se qualquer um pode corrigi-los, justifica-se a criação do Estado? Locke responde que sim, apelando para o argumento do amor-próprio. Mostra que a justiça feita pelos indivíduos é sempre precária. Não há como impedir que se cometam injustiças no exercício do direito de castigar o infrator.

Quem pode julgar sem a influência do amor-próprio, isentando-se dos seus próprios interesses ou dos interesses de seus parentes ou amigos? Esse sentimento torna qualquer julgamento parcial e impele o homem para a vingança. São riscos humanos a que todos ficam expostos, a menos que se faça uma lei conhecida por todos, existindo alguém que a faça cumprir. (3)

Sem esses dois fatores, fica difícil pensar em paz social.

A ausência de um juiz comum competente coloca a humanidade inteira em Estado de Natureza, ou seja, em estado de guerra. (Locke, 1974, p. 82)

Assim, o homem toma consciência de que, para poder gozar das vantagens resultantes do seu trabalho, da sua engenhosidade e do seu talento, precisa entregar a um único juiz o poder executivo que tinha individualmente.

A designação de um juiz comum está, portanto, na origem da sociedade política, que resulta da associação dos indivíduos, de modo a formar um só corpo, com um sistema jurídico e judiciário comum, ao qual podem recorrer e que tem competência para dirimir as disputas individuais. Assim, o pacto social é um acordo que envolve os indivíduos em geral. Um grupo de indivíduos passa a ter o direito legítimo de governar. A sociedade política se institui a partir desse acordo pelo qual os indivíduos aceitam limitar sua liberdade, seu poder de fazer justiça com as próprias mãos, em troca da preservação da sua propriedade. Ao magistrado civil compete determinar leis uniformes, pois só assim se pode preservar e assegurar, para o povo em geral e para cada um em particular, a posse justa das coisas necessárias à vida. O poder governamental é, pois, de natureza judicial. A luta entre os homens é vista como disputa entre proprietários, circunscrita ao espaço legal. A expressão "capacidade jurídica" remete à idéia de que todos os agentes são sujeitos igualmente capazes de praticar atos de livre vontade. Os litígios entre esses

agentes podem perfeitamente ser resolvidos em um tribunal, sobrepondo-se, assim, à luta política.

Sob esse enfoque, a ação política dos indivíduos perde o sentido, na medida em que cabe aos juizes, mediante mecanismos legais, corrigir injustiças e erros, reequilibrando a sociedade. Para a paz social, é fundamental que exista uma autoridade competente para julgar e fazer valer o direito de cada um. Sem dúvida, Locke admite também "a necessidade" como "parteira" da história, já que, para ele, os homens só passariam do Estado de Natureza para o Estado Civil se precisassem de um governo imparcial que fizesse valer seus direitos. Aprendem, por diferentes circunstâncias, que ninguém obedece isoladamente à lei natural, que proíbe causar prejuízos à vida, à liberdade ou às posses do outro. Este é o principal motivo pelo qual os indivíduos outorgam seu poder executivo a um grupo à parte, para que se possa fazer justiça, empregando-se a força quando necessário, mas sempre com imparcialidade.

É necessário, pois, que os magistrados recebam toda força que provém de seus súditos, para que possam punir aqueles que infringem os direitos dos outros. (Locke, 1974, p. 5)

A partir do momento em que o Estado existe, o direito à posse está garantido. Deve-se então estimular o aumento do excedente de produção necessário ao bem-estar da sociedade. Devem ser combatidos o esmorecimento, a preguiça e o vício daqueles que não querem trabalhar. Isto significa ajudar o outro a produzir, a desenvolver seus talentos e aptidões, contribuindo para que também se torne um grande proprietário. Se o homem se faz mediante seu trabalho, se sua criação tem por fim sua subjetividade, então nada mais perverso do que inibir essa criação, esse desenvolvimento. Acontece que, nas sociedades desiguais, onde há proprietários e não-proprietários, o fator de desigualdade é justamente a posse de alguns, inclusive dos meios de produção, o que implica penúria e degradação. Diante disso, torna-se imensamente perverso não dar assistência ao trabalhador em seus momentos de desespero. Melhor dizendo: o assistencialismo seria imoral se todos os indivíduos tivessem condições de trabalhar e pudessem permanecer de posse do resultado de seu trabalho.

A idéia de trocas livres contribui para ocultar o modo de produção dominante, pois ignora a existência de trabalhos, diferentes, Não se pode afirmar que são a mesma coisa as trocas feitas em sociedades igualitárias, como ocorre em algumas tribos africanas, e aquelas feitas em sociedades altamente hierarquizadas, nas quais cada troca implica modos diferentes de acumulação e empobrecimento. Quando o homem se aliena como força produtiva, as trocas não são mais livres. Clastres (1978, p. 138) diz o seguinte:

Quando a regra igualitária deixa de reconstituir o código civil da sociedade, quando a atividade de produção visa a satisfazer as necessidades dos outros, quando a regra da troca é substituída pelo terror da dívida, é chegado o momento em que se identifica o trabalho alienado.

A visão moralista, como em última instância é a de Locke, prevê a sociedade sem distinção de classes, porém constituída por trabalhadores e preguiçosos. Cada indivíduo, como sujeito de vontade subjetiva, só não trabalha se não quiser e só não enriquece por incompetência. Nessa perspectiva, a divisão da sociedade, diz Bendix (1964), confere aos pobres determinados atributos - preguiça, indolência, degeneração, imprevidência -, com sérias implicações psicossociais. Não se deve ter complacência com eles, para não alimentar seus vícios. Naturaliza-se, assim, a condição social dos indivíduos, e isso vem associado a um processo de estigmatizarão. (4)

O êxito econômico é visto como reflexo de virtude; o fracasso, como signo de infâmia. O que Locke e seus seguidores não enfatizam é que a divisão social do trabalho e o processo de acumulação da riqueza estão na base dessas desigualdades.

0 princípio do mercado

Este princípio, que tem em Locke seu legítimo defensor, é entendido como a garantia estatal de um mercado livre, no qual os indivíduos possam fazer trocas igualitárias, sem constrangimentos. Nessas condições, as trocas aparecem como manifestação da vontade de dois sujeitos.

O pressuposto desse princípio é a existência de um poder judiciário independente. Não é necessário apenas um sistema de leis universais; articulado a ele deve existir o processo de aplicação dessas leis, o que depende do caráter impositivo do poder de Estado. A concorrência entre os indivíduos é legítima, na medida em que apela somente para as aptidões pessoais, possibilitando a constituição de uma ordem social justa. A conciliação entre as leis do mercado e as leis da justiça se dá a partir da aplicação neutra, impessoal, de normas gerais e universais. Este é o fundamento da ordem social, e somente assim cada indivíduo tem garantidos os seus direitos. Na esfera privada, cuja autonomia Locke defende, se funda o mercado.

Transferido para o Estado, o poder dos indivíduos não se torna uno, ao contrário do que pensa Hobbes. Ao contrário, ele se desdobra em três: o legislativo, cuja função é regular as forças do Estado; o executivo, que assegura a execução das leis no interior da sociedade; e, finalmente, o federativo, que, articulado ao executivo, se encarrega da paz e da guerra. Essa divisão implica o enfraquecimento do poder político do soberano face aos indivíduos, fazendo desaparecer a figura do governo absoluto, tão ameaçador aos ideais da burguesia. No entanto, Locke não chega a defender uma completa separação desses poderes, como fará Montesquieu, e tampouco defende a harmonia entre eles: a supremacia, para Locke, cabe ao legislativo, cujas obrigações são, a seu ver:

Governar por meio de leis estabelecidas e promulgadas (tornadas públicas), que não poderão sofrer variações em casos particulares, instituindo-se assim a mesma regra para ricos ou pobres, favoritos da corte ou camponeses do arado. (Locke, 1974, p. 90)

Leis são a garantia de individuação, da formação de um povo como um conjunto de indivíduos autônomos. Essa visão atomista da sociedade prevalece nos ideais do Estado liberal: uma vez existindo unia ordem jurídica constituída por normas gerais emanadas do Parlamento e aplicadas por juizes independentes, fica assegurada a isonomia, a igualdade de todos perante a lei. Sendo gerais e abstratos, de aplicação universal, os direitos são conferidos a todos os cidadãos, independentemente da sua situação de classe ou de qualquer outro critério de diferenciação social. Daí a exigência liberal do império da lei, a qual deve ter como único fim o bem do povo. E o que é o bem do povo, senão o conjunto dos direitos individuais de livre trânsito, opinião, expressão, escolha do cônjuge, habeas corpus, inviolabilidade do lar e, principalmente, o direito à propriedade? "Corno existem aqueles que não têm qualquer propriedade, os escravos, eles não podem fazer parte da sociedade civil" (Locke, 1983, p. 66).

Com essas palavras, nosso autor aponta para o que é a sociedade civil: uma sociedade de pares, de proprietários. Com isso, admite que podem existir os excluídos da cidadania, desde que não sejam proprietários. A universalização da cidadania é, portanto, uma universalização parcial, na medida em que admite a existência de pessoas fora desse sistema. Locke é bem claro em igualar escravos, mulheres, crianças e doentes mentais no rol dos excluídos, com o argumento de que só podem gozar dos mesmos direitos e deveres aqueles que têm condições de garantir seu próprio sustento e o de seus dependentes.

Nesse discurso está embutida a crença de que na sociedade liberal não há qualquer forma de restrição ao trabalhador. Com exceção dos escravos, só estão fadados à dependência os que não têm condições físicas ou psicológicas. Faltam aos excluídos condições naturais para que possam efetivamente gerir suas vidas. Na condição de dependentes de outros, não são portadores nem de direitos, nem de deveres: alguém precisa responder por seus atos. Pode-se dizer, então, que já no discurso liberal lockiano a autonomia, um valor inerente à cidadania civil, aparece sustentada na condição econômica do indivíduo. O pensador Alexis de Tocqueville (1969), em sua brilhante análise sobre a Democracia na América, chama a atenção para o fato de que a universalização da cidadania é uma questão de segurança interna das nações. Os excluídos dos direitos e deveres - os negros, por exemplo - serão sempre uma ameaça à paz e à tranqüilidade social. (5)

Para Locke, as desigualdades sociais, as diferenças entre as condições de vida de ricos e pobres, as relações concretas da sociedade, tudo depende de um poder judiciário competente, capaz de fazer justiça com lisura. A cidadania aparece como uma metamorfose na qual o indivíduo concreto se torna um ser abstrato, impessoal e, por isso mesmo, igual a todos os outros. Pode recorrer às autoridades sem ter de contar com privilégios ou outro qualquer sistema de identificação. De nada adianta ser rico ou pobre, velho ou moço, patrão ou empregado: todos são iguais diante da lei. Esse é o ideal liberal, que passa tanto por Hobbes como por Locke, e no qual não há correspondência entre a igualdade formal e as condições concretas em que os indivíduos vivem.

De forma muito feliz, Marx (1953) faz uma crítica a essa concepção de cidadania, dizendo que toda igualdade entre os indivíduos acaba na porta da fábrica. É ali que empregados e patrão se vêem enquanto tais, se relacionam, e cada um sabe quem manda e quem deve obedecer. É concreta a assimetria entre eles, derivadas das relações entre capital e trabalho.

No que diz respeito ao poder do Estado, o legislativo, apesar de todas as suas faculdades, não goza na concepção lockeana de total autonomia. Não lhe é dado o direito de outorgar a outrem o poder de elaborar leis, nem de direcioná-las para qualquer outro lugar que não o indicado pelo povo. Argumentando a esse respeito, Locke nos remete à idéia de duas instâncias, a pública e a privada. 0 poder público, originado pelo consentimento do povo, diz respeito somente às coisas públicas, ao bem comum. Nesse domínio não é possível a transmissão do direito de governar: cabe ao povo, sempre que necessário, escolher o sucessor do governante. Na esfera privada, fundada na igualdade e na propriedade dos indivíduos, é natural o direito de herança, com a propriedade podendo passar de pai para filho.

No âmbito da vida pessoal, os indivíduos guardam sua autonomia de ir e vir, estabelecer contratos, expressar e defender idéias, trocar mercadorias como bem entenderem. O mercado pertence, pois, à esfera privada, na qual os indivíduos não precisam de autorização para negociar, e não à estatal, que não foi criada para isso.

Subjacente à idéia da autonomia da esfera privada, portanto, está a defesa do Estado neutro, que oculta a contradição entre interesses coletivos e interesses privados. A propriedade é vista como uma questão não política. O Estado aparece como regulador da sociedade na defesa dos interesses coletivos, dissociando-se dos interesses individuais. É o que diz Habermas (1984, p. 99) em seu estudo sobre, as modificações estruturais da esfera pública no Estado burguês: "A autonomia da esfera privada se apresenta livre da esfera de dominação e, acima de tudo, do poder do Estado." Essa autonomia serve de suporte para o Estado liberal, e dela procede a cidadania civil.

Estando a serviço da sociedade, o Estado liberal deve velar para impedir conflitos e regular as relações formais entre os indivíduos, sem entrar na vida particular de cada um, de modo que eles possam se desenvolver livremente. Ao Estado não cabe legislar nem em defesa dos trabalhadores nem dos empresários; pois isso seria incompatível com sua função básica de regulador do sistema social. Não lhe cabe retirar configurar qualquer outro sistema (Kuhnl, 970).

Os argumentos de Locke sobre a instituição de um poder político neutro se fundam na clássica distinção dos espaços sociais: o espaço privado na casa (oikos) e o espaço público na sociedade (polis). Em cada um deles há uma forma de autoridade. Na casa, na família, o pai pode cobrar obediência dos filhos, da mulher e dos criados, partindo sempre do princípio da dependência. Ele sabe o que é melhor para todos e exige que suas ordens sejam acatadas.

Enquanto os filhos dependerem dele, enquanto não tiverem condições de garantir a própria subsistência, a relação ordem/obediência é legítima. A relação entre os membros da família é assimétrica, cabendo ao pai a autoridade, na medida em que dele provêm a segurança, o sustento e a acumulação de riqueza para todos. Ou seja, se na sociedade doméstica o pai exerce autoridade sobre os filhos, isto se deve às necessidades naturais. Quando cessam essas necessidades, os filhos estão liberados de obediência. Somente aqueles que não atingem certo grau de maturidade permanecem sob a tutela de alguém. No entanto, a família não desaparece quando os filhos se tomam independentes. Eles voltam à convivência paterna por livre e espontânea vontade, já que se acostumaram a obedecer desde a infância; por hábito, continuam com essas práticas por muitos anos, e vez por outra recorrem aos pais. Esse tipo de autoridade, que não termina nem quando cessam os seus fundamentos, só pode existir na família, nunca no Estado. A relação de obediência entre pai de família e escravo se funda nos direitos de natureza, no domínio absoluto e no poder arbitrário dos senhores.

O discurso de Locke sobre a autoridade paterna serve para demarcar o que o Estado político não pode ser: patriarcal.

Aquelas práticas não podem ser extensivas à sociedade política, mesmo reconhecendo-se que persistem nas monarquias absolutas, nas quais "os monarcas nada mais são do que a extensão dos pais de família" (Locke, 1983, p. 63). Esse tipo de governo impede que os governados cresçam: como filhos, considera-os sempre. imaturos, incapazes de exercer sua própria liberdade e autonomia. Pior ainda, os governados não só aceitam esse estado de coisas, como se habituam e ficam sempre esperando ordens pela vida afora.

No Estado político, ao contrário, a autoridade daquele que governa só é legítima se obtiver o consentimento dos governados, diferindo assim da autoridade do pai e do déspota, cujos poderes não resultam de um pacto. "Que pacto pode fazer

um homem que não é senhor de sua vida?" (Locke, 1983, p. 103).

Eis a questão! Para ser senhor de sua vida, o indivíduo carece de condições objetivas para viver, e não apenas de condições formais. "Quem for senhor de si e da própria vida tem igualmente direito aos meios de preservá-la" (Locke, 1983, p. 106). Mas ele esqueceu de dizer: quem tem acesso aos meios de preservar sua vida é senhor de si. Sem tocar nessa questão, fica difícil admitir que o poder político visa à preservação de todos.

Para Locke (1983, p. 102),

o poder político é o poder que cada um cede à sociedade e, dessa maneira, aos governantes. 0 objetivo e os limites desse poder são a preservação de todos na sociedade.

Nosso autor admite que esse consentimento é dado por todos, livremente, como se a sociedade fosse formada por indivíduos, e não classes. É o problema dos ideólogos da democracia dos séculos XVII e XVIII: constituir a sociedade e a política a partir do indivíduo, considerado como mônada independente. 0 poder civil criado pelo consentimento dos indivíduos (pacto) se diferencia tanto do poder paternal como do patronal. Sob o governo, os indivíduos querem apenas garantir a liberdade necessária para que possam se autogovernar.

Locke enfatiza a necessidade de leis que coíbam privilégios pessoais e garantam a propriedade como um direito natural. Este direito é o limite do poder do Estado. Ou seja, tudo aquilo que é próprio dos indivíduos não desaparece com a instituição do Estado.

As minorias, os delinqüentes ou degenerados, devem submeter-se à vontade da maioria, quando necessário pela força. O governo existe através do consentimento da maioria do povo, por urna ação de outorga do poder. Há uma grande diferença entre essa concepção de governo por consentimento -que pressupõe credibilidade, expectativas e limites - e a idéia de governo como resultado da renúncia absoluta aos direitos dos indivíduos. Na concepção de Locke, os indivíduos renunciam, basicamente, ao seu direito de poder executivo, mas exigem que tudo mais seja respeitado. Para que as ordens sejam cumpridas, quem exerce o poder não deve fugir às expectativas, para não perder a credibilidade.

O consentimento, ao contrário da renúncia, não confere poderes ilimitados a alguém. Exige-se sempre uma concordância entre o que foi estabelecido e o que, efetivamente, é feito. O Estado não tem autoridade para governar como deseja: caso a ação do político vá além dos limites, o povo tem direito a fazer oposição. Nesse caso, aliás, justifica-se até o uso da força. Isso fica claro quando Locke (1983, p. 95) diz:

Em todos os estados e condições, o verdadeiro remédio contra a força sem autoridade é opor-lhe a força. O emprego da força sem autoridade coloca sempre quem dela faz uso num estado de guerra, como agressor, e sujeita-o a ser tratado da mesma forma.

No acordo feito entre governados e governante, este não pode legislar para exceções, nem se intrometer na vida particular dos indivíduos, que são livres uns em relação aos outros. A liberdade que existia no Estado de Natureza não desaparece ao se instituir o poder civil. A diferença é que, no Estado de Natureza, as limitações individuais eram trazidas pela razão; agora são instituídas pela lei. O Estado é visto, pois, como a instância capaz de exercer o monopólio da violência legítima (Weber, 1971, p. 98). Mas não deixa de ser um mero usuário do poder executivo, pois, para exercê-lo, precisa seguir determinadas regras, apoiando-se na comunidade. Havendo um contrato entre governo e comunidade, esta tem o direito de se rebelar, caso aquele traia a sua confiança. (6)

Forma legítima de participação política, o direito à rebelião existe para corrigir a transgressão dos limites do contrato por parte do governo, de forma a garantir os direitos naturais dos indivíduos. O povo não se rebela por pura anarquia, como afirmam os conservadores, mas só quando a exploração e a miséria chegam a um nível insuportável. E isso, diz Locke (1983), independe da forma de governo. Além do mais (p. 122),

as revoluções acontecem não por pequenos deslizes do governante; pelo contrário, o povo parece suportar bastante os erros do governante e, até mesmo, malefícios e inconvenientes das leis.

A credibilidade do governo acaba quando ele faz mau uso do poder que lhe foi confiado pela sociedade.

O objetivo do governo é o bem dos homens. E o que é melhor para eles? Ficar o povo exposto sempre à vontade ilimitada da tirania, ou os governantes terem algumas vezes de sofrer oposição quando exorbitem no uso do poder e o empreguem para a destruição e não para a preservação das propriedades do povo? (Locke, 1983, p. 124)

A oposição legítima é uma reação ao governo que tenta ir além da sua própria competência. Nesse sentido, a ação política do povo é o último recurso, já que tem de romper com o poder de Estado que ela mesma instituíra. Em si mesma, essa ação é vista como negativa, na medida em que só aparece como corretivo e não como força instituinte ou mantenedora de conquistas.

Como já dissemos, graças aos direitos individuais pode-se limitar o poder do Estado e fundar a liberdade do mercado. A defesa do governo por consentimento é a base do Estado liberal, como se vê em Locke (1983, p. 93):

Embora em uma comunidade constituída só possa existir um poder supremo, que é o legislativo, cabe ao povo o poder supremo para afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verificar que age contrariamente ao encargo que lhe foi confiado.

Portanto, a sociedade não se expõe a esse risco por causa do contrato, mas sim das ações do governo que deriva desse contrato.

Não havendo possibilidade de rebelião, a sociedade se sujeita à tirania, e os direitos naturais dos indivíduos são aviltados.

Sempre que o legislativo transgredir esta regra fundamental da sociedade e, por ambição, temor, loucura ou corrupção, procurar apoderar-se ou entregar em mãos de terceiros o poder absoluto sobre a vida, a liberdade e a propriedade do povo, perde por esta infração o poder que o povo lhe entregou para fins completamente diferentes. (Locke, 1983, p. 121)

Nesse, e só nesse caso, cabe ao povo se opor ao governo. No entanto, o direito do povo de fiscalizar e resistir às ações do governo não garante a democracia, na medida em que esse povo

não detém formas próprias e eficazes de fiscalização ou de organização política. Uma, crítica à visão de Locke é que, para ele, a participação política é espasmódica e espontânea.

Os indivíduos se associaram um dia para formular um contrato; depois disso, eles se dissociam e vão viver de acordo com seus próprios interesses. Só voltam a se reunir quando precisam depor o governo. Tudo se passa como mágica: os indivíduos se associam e se dissociam espontaneamente. Locke não enfatiza a participação política constante, mesmo quando advoga o direito de voto.

Para ele, essa participação só tem sentido em momentos de crise, quando os direitos naturais estão sob ameaça. Fora disso, o Parlamento é suficiente para gerir as questões do espaço público, permitindo que os cidadãos tenham liberdade para cuidar de suas próprias vidas.

O Parlamento é visto como o locus da representatividade do povo; suas controvérsias nada mais são do que conflitos de opiniões que podem ser resolvidos mediante argumentação racional dos deputados, expressa publicamente. As questões em pauta são sempre de interesse geral, e não pode haver exclusividade para a opinião de ninguém. Intenta-se, pois, encontrar um acordo que pareça o mais razoável, ou o mais útil, para o povo. Uma vez feito esse acordo, o governo fica livre para fazer valer o que é de interesse de todos (Kühnl, 1979). Mesmo admitindo um governo democrático, Locke não consegue superar a concepção estática da sociedade , tese que não foge às idéias de Hobbes. Também para este, uma vez instituída a soberania do Estado, os indivíduos podem cuidar de seus próprios interesses.

Outra questão que deve ser levantada é a crença na conciliação entre direitos naturais e liberdade em relação ao Estado. Ao ter de garantir os direitos naturais, o Estado esbarra na esfera privada. Para cumprir sua função mínima, ele precisa se equipar, criando mecanismos alguma forma coercitivos. Torna-se necessário criar impostos, muitas vezes malvistos pelo povo

Não se pode negar a importância do pensamento de Locke para o ideário político do mundo ocidental. A ele se recorre quando se pretende justificar o direito à rebelião e à defesa do governo pelo consenso da maioria. No entanto, nosso autor não consegue ultrapassar o idealismo, na medida em que não trata das contradições reais da sociedade inglesa da época. Os conflitos de classes eram vistos como lutas por interesses individuais. A rigor, o Estado liberal nunca existiu, e só como utopia pode ser pensado.

Das muitas críticas a que estão sujeitas as idéias de Locke destaca-se a de Laski (1973), para quem o liberalismo trata de maneira ideal as práticas sociais que prevalecem no modo de produção capitalista. Desaparecem as contradições reais, e os conflitos são considerados passíveis de ser eliminados pelo progresso ou pela luta jurídica. Para Polany (1980), o liberalismo nunca pôde dar conta das novas formas de convivência social, na medida em que obscureceu as contradições geradas pelo próprio processo de desenvolvimento da economia de mercado. O capitalismo, ao vingar na Europa, dissolveu formas de convivência social pautadas numa ética coletivista, liquidando valores como a solidariedade, o companheirismo, a defesa da honra, a lealdade. Em seu lugar se desenvolveu uma ética individualista em que predomina a idéia de competição, na qual o outro começa como adversário e acaba como inimigo.

A crítica de Marx (1976) à concepção liberal de Estado se prende ao fato de que as lutas que se travam no interior deste -seja em relação às formas de governo, seja em torno dos direitos políticos - ocultam interesses antagônicos das diferentes classes sociais.

O capitalismo na época de Locke representava um avanço, na medida em que defendia a autonomização dos indivíduos, mas implicava também uma fragilização das condições do trabalhador, pois não considerava a organização política como recurso na defesa de seus direitos. Em nível subjetivo, a reificação originária das relações quantitativas do trabalho fez desaparecer a identificação criador-criação, tão própria dos artesãos, e com ela a visão de totalidade nas relações homem-mundo.

Bendix (1964) afirma que as economias de mercado desenvolvem valores altamente contraditórios nas relações de trabalho, ao inculcar nos trabalhadores hábitos e motivações convenientes à produtividade. Ao se estimular a auto-suficiência dos indivíduos, corre-se o risco de atrofiar a cooperação entre eles, reduzindo a política à luta por privilégios de categorias profissionais, o que é a negação dos ideais do liberalismo. Bobbio (1988), por sua vez, afirma que, na concepção liberal, o governo existe apenas para garantir o espaço da liberdade individual, tanto na esfera econômica como na espiritual. Ele deve, pois, limitar suas atividades, visando apenas à necessidade de sobrevivência da comunidade, o bem comum.

Como já dissemos, estão presentes no pensamento de Locke os pressupostos do Estado liberal, tanto do ponto de vista econômico como político, já que ele admite que o governo não deve interferir na esfera privada da sociedade - consequentemente, na esfera do mercado. Esta idéia evoluirá até o princípio do mercado auto-regulável, independente da esfera política.

Mas, para garantir esse princípio, o governo não pode abdicar do monopólio da violência legítima. Nesse aspecto, o Estado liberal não se afasta do Estado totalitário, apenas se diferencia deste na instrumentalização dessa violência. Para garantir que cada pessoa possa expressar suas idéias religiosas ou circular livremente com seus bens, o Estado precisa manter aparelhos coercitivos. Aparece a fala de Hobbes quando Locke diz que, sem impedimentos, os homens vivem sempre sob ameaça.

Finalizando, pode-se dizer que, assim como Hobbes está na origem do princípio do Estado, Locke está na origem do princípio do mercado, na medida em que considera que na sociedade se estabelecem relações de troca de propriedade, livres da interferência do Estado. Prenuncia-se, assim, a autonomia da esfera econômica, que vai se consolidar na Europa do século XIX. O fundamento desse princípio está nos direitos individuais - expressão da natureza divina - que, para Locke, antecedem a sociedade política. O que não fica claro no pensamento desse autor é como se conciliam, sem a interferência do Estado, a igualdade de todos e o direito de cada um. Esta é uma questão que Rousseau se propõe a responder.

NOTAS

  1. Por jusnaturalismo, o pensador Norberto Bobbio (1988) define a doutrina segundo a qual existem leis não arbitradas pelos homens; que não procedem, portanto, da instituição do Estado ou da formação de outro grupo social. Segundo essa doutrina, essas leis derivam dos direitos e deveres naturais e são reconhecíveis através da pesquisa racional. O autor admite que Hobbes, Locke e Rousseau são pensadores que se incluem nessa linha de pensamento.
  2. Marx, em seu brilhante estudo sobre o processo de acumulação primitiva do capitalismo, discute sobre a "legislação sanguinária contra os expropriados, a partir do século XV, leis que visavam fundamentalmente a rebaixar os salários" (Marx, 1972, cap. XXIV, p. 851). São vários os exemplos nos quais ele mostra as formas coercitivas usadas pelo governo inglês visando a forçar o trabalhador a aceitar aquilo que lhe era imposto. No Brasil, a lei da vadiagem não foi abolida até hoje. Um país que não garante constitucionalmente direito ao trabalho pune aqueles que forem encontrados perambulando pelas ruas, sem emprego. Do ponto de vista racional, isso é inadmissível. A rigor, a expressão vadio só poderia ser usada, e mesmo assim com sérias restrições, em relação àquele que, tendo onde trabalhar, com remuneração condizente a uma forma de vida digna, se recusasse a fazê-lo; o que não parece ser o caso das classes populares. Com um salário mínimo aviltante, em muitos casos é preferível encontrar outras formas de trabalho. Isso é muito bem dito por Ivan Illich (1979), que defende a idéia do direito ao desemprego criador, útil, que não pode ser confundido com vadiagem.
  3. A idéia de que os homens precisam viver sob imperativo legal, pois só assim é possível pensar em segurança, remete à idéia de que os homens são violentos por natureza. Rene Girard (1990) fez um belíssimo estudo sobre o mimetismo instintivo, responsável pelo desencadeamento de comportamentos de apropriação mimética, geradores de conflitos e rivalidades de tal ordem que a violência seria um componente natural das sociedades humanas a ser incessantemente exorcizado pelo sacrifício das vítimas. O Estado aparece como o instrumento capaz de terminar com esses sacrifícios, que por si mesmos não terminariam nunca.
  4. O conceito de estigma como a situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena é tratado por Goffmann (1982). Ele procura mostrar que o processo de estigmatização procede de parâmetros instituídos pela sociedade. O que numa sociedade pode levar ao afastamento, ao desvio de comportamento e, consequentemente, ao estigma, pode não ter esse efeito em outra. De certa forma, o conceito se relaciona ao que Durkheim chamou de anemia. No entanto, as conseqüências do estigma são muito graves na formação da identidade da pessoa. Para Goffman, o indivíduo estigmatizado tende a ter as mesmas crenças sobre a identidade que nós. Significa dizer que ele pode interiorizar os sentimentos e sensações de que ele é mesmo uma pessoa anormal, aquela que de alguma forma precisa ser afastada. É desnecessário lembrar as conseqüências, para uma criança, dos processos de estigmatização que se dão na escola.
  5. Tocqueville, como um grande liberal, compreendeu bem cedo a dificuldade de se conciliar a igualdade jurídica e a liberdade, e questionou se a igualdade não levaria à tirania. Isso apareceu recentemente nos conflitos entre brancos e negros na cidade de Los Angeles. 0 julgamento de policiais brancos que espancaram um cidadão negro foi suficiente para detonar uma forte agitação de massas exigindo justiça. Fica patente que as preocupações de Tocqueville tinham procedência, e que uma verdadeira democracia não pode conviver com excluídos.

(6) Segundo a Teoria da Resistência, de Santo Tomás de Aquino, o Estado não tem autoridade para governar como bem queira. Justifica-se, então, até mesmo o uso da força. Ao contrário da teoria do direito divino dos reis, defendida por Bossuet, segundo a qual o rei, como lugar-tenente de Deus na Terra, só ao Onipotente teria de dar contas, Santo Tomás de Aquino, na segunda etapa do século XIII, afirmava que o rei é vice gerens multitudinis, vigário, representante da coletividade ou do povo. O Doutor Angélico usava freqüentemente o termo ultitudo como equivalente do que hoje diríamos povo. 0 poder constituinte permanece o apanágio da coletividade, e o rei possui apenas o poder de regência. (A expressão vice gerens multitudinis se encontra na Summa Theologica, I-II, q. 90, a. 3, in corpore articuli.)

Daí porque Santo Tomás justifica o direito de resistência ao governo tirânico, e até mesmo sua deposição. Numa de suas primeiras obras - o Comentário às sentenças de Pedro Lombardo - o Aquinatense afirma que se pode matar o tirano, quando se trata de tini usurpador; o homem que, para libertar sua pátria, mata o tirati,,, é digno de louvor e recompensa (11 Sent. ais. 44, q. 2, ad 5).

Caietano e outros comentadores de Santo Tomás costumam distinguir a tirania do usurpador e a do príncipe legítimo. Neste último caso, o Santo Doutor recomenda maior cautela no exercício do direito de resistência e de deposição do tirano. Na Summa II-II, q. 42, a. 2, Santo Tomás pergunta "se a sedição é sempre um pecado mortal" e no ad 3 (resposta à terceira objeção), afirma: "O regime tirânico não é justo, sendo dirigido não ao bem comum, mas ao bem particular daquele que governa. Em conseqüência, a derrubada deste regime não é uma sedição: a menos que não se deponha o regime de tal maneira que a multidão de súditos tenha mais a sofrer com a desordem que se seguirá que do próprio regime. Em verdade, é o tirano mesmo que é sedicioso pois, encorajando as desordens entre seus súditos, ele pode exercer com mais segurança sua dominação."

No De Regno sive de Regimine Principum ad Regem Cypri, muito provavelmente de 1266 (oito anos antes de sua morte), o Anjo das Escolas defende a mesma tese do Capítulo VII (in Opuscula ominia necnon opera minora, r. I, Paris, Lethial, 1949, p. 236): "Não é a iniciativa privada de alguns particulares, mas a autoridade pública que deve proceder contra a crueldade dos tiranos (tyrannorum saeitiam).

Primeiramente, no caso em que alguma coletividade tenha o direito de se dar um rei, pode, sem injustiça, depor este rei que ela instituiu, ou reduzir seus poderes se ele abusa, como tirano, do poder real. Não se deve pensar que uma tal coletividade (multitudo) cometa uma infidelidade ao destituir o tirano, mesmo se antes ela se tenha submetido a ele para sempre (etiam si se ei im perpetuam ante subdiderat). Porque esse tirano bem merece, ao não se comportar fielmente no governo do povo como o exige o direito real, que seus súditos deixem de observar o seu pacto com ele (quod ei pactum a subditis non observatur). O povo tem o direito de opor-se quando o político ultrapassa seus limites."

(Essas considerações foram retiradas de pesquisas realizada pelo professor Newton Sucupira acerca do direito de resistência.)