Memórias
do Olimpo


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Curso de Medicina Humana

Capítulo 28

Décio

Ana Lúcia mandou-me quatro cartas extremamente bonitas. Fiquei muito sensibilizado. Ouvi no rádio uma antiga canção, e transcrevi dois versos na primeira página de minha agenda, o que foi observado e comentado, dentro da sala de discussões da Enfermaria Geral, por minhas amigas e colegas Andrea Nakata e Elaine:

"It's only time that heals the pain
and makes the sun come out again"

De repente, Ana Lúcia telefonou-me, dizendo que queria suas cartas de volta. Ela também as pediu no refeitório. Fui até seu apartamento, com as cartas. Não pretendia devolvê-las de forma alguma. Coloquei-as na mesa de sua sala, e escolhi uma ao acaso, para relermos juntos. Mal começamos e fiquei profundamente tocado por seu conteúdo. Voltamos a namorar. Dormi em seu apartamento e na manhã seguinte fui para a faculdade, esquecendo-me de levar as cartas. Depois, no mesmo dia ou no dia seguinte, ela contou-me que as queimou. Fiquei profundamente aborrecido. Éramos namorados de novo, então por que fazer aquilo?

No início de 1991, eu cursava as disciplinas de Medicina Interna, Medicina Legal, Cirurgia Geral e Radiologia, com a 26ª turma. Já havia sido aprovado em Cirurgia, tinha ido muito bem na primeira prova de Medicina Interna (a melhor nota dentre todos os alunos!) e estava muito interessado em Medicina Legal.

Ana Lúcia entrou em férias e mandou seu caprichoso caderno de notas sobre Radiologia, de Tatuí, pelo correio, para eu estudar. Abri o envelope dentro do Departamento de Radiologia, frente ao "megatoscópio", junto de Ana Paula Palu Baltiéri, com quem estudei naquele dia, observando as radiografias didáticas. Ao lado estavam Augusto e Marco Aurélio.  Hoje, Ana Paula, Augusto e Marco Aurélio são, respectivamente, dermatologista, pediatra e oftalmologista.

Ao iniciar meus dias na Medicina Interna (Enfermaria Geral de Adultos), fiquei muito impressionado com a negligência com que eram tratados os pacientes. Um exemplo: poucos leitos tinham campainha para chamar a enfermeira, a atendente ou a auxiliar. Tive um trabalho hercúleo para conseguir uma campainha para um de meus pacientes, que tinha risco para acidente vascular cerebral. Recebi muitas informações, até dos próprios professores, em especial do professor Salsadoro, sobre coisas absurdas que aconteciam no hospital. Não havia administração. Os funcionários faziam o que queriam e quando queriam. Lençóis, cobertores, talheres, toda sorte de equipamentos do hospital desapareciam ou eram vistos em bancas de camelots, na cidade. Tudo quebrava e nada era consertado. Etc.

No curso de Medicina Legal, certa tarde, estava assistindo à aula de um professor baixinho, de voz grave e profunda, muito culto e espirituoso. Entrara na sala andando lentamente e vestia-se modestamente. Começara a aula repetindo um conceito de Aristóteles e, em seguida, passou a discorrer sobre o assunto mais sério da face da Terra, Psiquiatria Forense, boa parte do tempo através de piadas e anedotas muito bem elaboradas e realmente muito engraçadas e didáticas.  A classe toda ria de tempos em tempos, prestando uma atenção fenomenal ao Velho Sábio.

De repente, tive um palpite!   Peguei, afoito, o programa do curso e procurei o nome do professor. Era ele: Décio Silveira Pinto de Moura. Senti um arrepio na espinha. Havia alguns anos, eu lera seu artigo genial, publicado no jornal do Centro Acadêmico da faculdade. Naquele artigo, ele propusera que os alunos de Medicina, ao serem aprovados no vestibular, fossem contratados como funcionários da Escola-Hospital. Isso garantiria aos alunos uma pequena renda, um modo de subsistência, além de uma experiência fantástica. A idéia era que cada aluno passasse, ao longo do curso de Medicina, em todos os departamentos e laboratórios, fazendo todo tipo de serviço, além de como aluno, também como funcionário, em "rodízio" constante. Também teríamos, assim, mão-de-obra de alto nível, e os alunos tornar-se-iam médicos muito mais responsáveis e instruídos.   O mesmo artigo, ele contar-me-ia, foi impresso num jornal de Paulínia.

Depois daquilo, eu ouvira algumas vezes professores de vários departamentos referirem-se ao professor Décio com grande respeito, principalmente minha muito querida professora Lídia Straus, do Departamento de Psiquiatria. Todos o têm como uma pessoa muito especial, e eu apenas começara a sentir isso.

Ao final da aula, fui cumprimentá-lo e apresentar-me:

-- O senhor não imagina a honra que sinto em conhecê-lo pessoalmente!

Conversamos sobre vários assuntos. Ele, sempre muito gentil, deixou comigo seu endereço e telefone, e perguntou se eu seria parente do tenor Cândido, já falecido, o que é fato. Décio disse também ser "meio parente" dele, e que isso nos fazia parentes distantes.

Enquanto conversávamos, presenciei alguns diálogos rápidos seus com funcionários e outras pessoas que o procuravam naquele dia, por um motivo ou outro. Fiquei absolutamente pasmo. Usando palavras com uma habilidade sem par, aquele Homem tocava profundamente as pessoas, umas vezes tão sutilmente que, eu apostava, eles só iriam perceber dali a algum tempo. Conversando, aquele Homem ensinava, educava e revolucionava as pessoas em seus íntimos. Muito calmamente. Muito tranqüilamente.

Alguns meses depois eu o veria fazer algo semelhante por alguém que o incitou a rezar (orar) para Deus.  Disse que resolvera fazer, em sua vida, cada uma de suas ações como se fosse uma oração.   Resolvia assim, um problema de crença e de proselitismo religioso, educava e transformava seus interlocutores, sempre com valores muito positivos.  Pessoalmente, acredito que Mestre Décio seja ateu, ou pelo menos agnóstico.  Inspirado nele, declarei que "se cantar é orar duas vezes, agir é orar dez vezes" para minha tia.

Reunindo, hoje, toda a informação que tenho sobre a vida e a pessoa do abnegado médico, psiquiatra, jornalista e maestro Décio Silveira Pinto de Moura, vejo-o um verdadeiro rei Midas que, em vez de transformar objetos em ouro com o toque de suas mãos, induz as pessoas a transformarem-se em "ouro", diminuindo seus sofrimentos, elevando suas consciências e conhecimentos e provocando insights de todos os tipos. Era algo semelhante àquele dom o que eu  mais buscava em minha vida, o que procurava desenvolver em mim havia muitos anos.

Desejei intensamente aprender tudo o que pudesse com ele, conviver com o Mestre, ser seu discípulo imediato. Infelizmente, nasci tarde demais.  Ele estava cansado e doente,  nos seus setenta anos de idade, exercendo apenas suas funções "na zeladoria de sua descendência", como ele mesmo disse. Eu não poderia incomodá-lo pedindo que fosse meu tutor, meu orientador, desviando-o da atenção aos jovens filhos adolescentes, Júlio e Augusto.  Mas ele teve a iniciativa de propor-me três aulas fundamentais, privilégio que, obviamente, aceitei e atendi com imensa honra.

Professor Décio havia sido, até então recentemente, diretor clínico do Hospital Psiquiátrico Municipal "Cândido Ferreira", no Distrito de Souzas, em Campinas, cargo exercido por 23 anos, prescindindo intencionalmente de seu salário.  Como já era professor universitário, de uma universidade pública (estadual), achava imoral receber outro salário, da prefeitura.  Só pedia um carro com chauffeur da prefeitura, apenas para levá-lo até e trazê-lo do hospital, pois não tinha automóvel próprio.

Desde que trabalhara como diretor de um pavilhão no Complexo Psiquiátrico do Juqueri, cidade de Franco da Rocha, examinava cuidadosamente as alterações morfológicas cerebrais, relacionando-as a doenças psiquiátricas, chegando a dissecar e estudar mais de um mil cérebros de pacientes falecidos.  Importava, com seus limitados recursos financeiros próprios, constantemente, livros caros sobre Psiquiatria e Neurologia, sempre dois exemplares: um para si e outro para doar à biblioteca do "Cândido Ferreira", que há muitos anos está trancada e tem acesso proibido.  Ninguém sabe sequer onde está a chave, e a imensa maioria dos funcionários e médicos do hospital, nos últimos sete ou oito anos, literalmente, não sabe onde fica a sala da biblioteca!

Faltavam verbas ao Juqueri, até para comprar os remédios mais básicos.  Que fez o doutor Décio?  Investigou com todo o rigor científico, com afinco e muita seriedade, tudo que havia em livros e no conhecimento popular sobre ervas e plantas que pudessem, cultivadas no próprio Complexo, trazer benefícios aos pacientes.

Desprendido e pouco vaidoso, muito diferente de alguns de seus alunos e colegas, Décio publicou, junto com Isac G. Karniol, alguns artigos na Acta Psychiatrica Scandinava, que por muitas décadas foi a mais conceituada revista científica sobre Psiquiatria do mundo, mas sequer tinha cópias de seus próprios artigos, nem sabia os números em que publicou.

Falava da organização da Medicina e da organização da assistência à saúde com seus habituais brilhantismo e propriedade.  Quando jovem, estudou na Faculdade de Saúde Pública da USP.   Algumas de suas idéias arquitetônicas originais sobre como deveria ser um hospital foram aproveitadas no projeto do Hospital de Clínicas da Nikampo.

Como maestro, fundou o Instituto de Artes da Nikampo e foi seu primeiro professor, tendo participado da banca que aprovou em concurso e contratou o maestro Benito Juarez.  Deu início e foi o primeiro maestro do primeiro Coral da Nikampo, do qual, sem sabê-lo, eu fazia parte de 1991 a 1993, como voz tenor.

Juntamente com seu irmão, o também médico psiquiatra, literato, poeta, filósofo e ser humano extraordinário Roberto Silveira Pinto de Moura, fundou o Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Nikampo.

Ensinou-me que a primeira pessoa a observar e publicar a inibição do crescimento de colônias bacterianas pelo fungo Penicillium na história não foi o inglês Alexander Fleming, mas sim, cem anos antes, um botânico português vivendo no Brasil chamado Caminhoá, o que é relatado num livro do também botânico e campinense Correa de Mello. O Instituto Agronômico de Campinas deve ter esse livro em sua biblioteca.  Fleming pode continuar sendo chamado "pai da penicilina", mas seu avô foi o luso-brasileiro Caminhoá.

Décio renunciou à Diretoria Clínica do "Cândido Ferreira" quando Jacó Bittar e o PT (Partido dos Trabalhadores) tomaram a prefeitura de Campinas e quiseram impor uma série de preceitos comunistas no hospital, de forma desrespeitosa e totalitária.

Uma semana após a renúncia de Décio, os sempre alienados jornais de Campinas publicaram matérias de primeira página, mostrando a recuperação "assombrosa" de pacientes em tempo recorde, pelos métodos "revolucionário-marxistas" da nova administração petista-socialista, vulgarmente auto-denominada "popular".  Na verdade, mostraram fotos de ex-pacientes que, havia anos, viviam no hospital como agregados e até como funcionários e prestadores de serviço, visto há muito terem perdido todo o vínculo e contato com suas famílias, abandonados que foram ali.  O Ministério da Verdade orwelliano estava funcionando.

Nos últimos anos, Décio trabalhava como professor aposentado e recontratado na universidade, a convite de Badan Palhares, examinando pacientes e fazendo laudos psiquiátricos periciais no Departamento de Medicina Legal.  A universidade precisava dele.

Entretanto, o Professor nunca se dispos a prestar concurso, não querendo submeter-se à farsa das bancas examinadoras.   Por isso, como pouco graduado, recebeu sempre um salário modesto e manteve sua família com padrões austeros, para não dizer humildes.  Melhorou um pouco depois que Badan Palhares articulou na universidade, obviamente sem que Décio soubesse ou pedisse, sua titulação, mais do que merecida, como Professor-Livre Docente por Notório Saber.

No último ano e meio, um estranho e subversivo processo terminou por colocar um foneticista, ex-professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), como chefe do Departamento de Medicina Legal.   Ele podia ser perito em fonética, fazendo laudos de identificação de vozes e sobre possíveis montagens em fitas magnéticas lá no IEL ou até num escritório particular, mas daí vir para o Departamento de Medicina Legal, ainda mais como professor, não vejo justificativa.  Pois esse foneticista, sem noção do que fazia, destratou e quis humilhar Mestre Décio, por meses a fio!  Não estou defendendo que só haja professores médicos na Faculdade, mas falando de uma situação  específica.

Muito preocupado com os gravíssimos problemas administrativos de minha Escola-Hospital, os quais interferiam em muito na formação médica dos alunos e na assistência aos pacientes, comecei a organizar um grupo de trabalho, reunindo pessoas interessadas em melhorar aquilo. Tive conversas com vários professores "luminares", uns mostrando-se mais, outros menos interessados.  Alguns dos professores que procurei foram Ronan José Vieira (este, inadvertidamente), Jayme Antunes Maciel Júnior e Nubor Orlando Facure. Outro foi o próprio Décio, que me sugeriu organizar um simpósio sobre Ética Médica, recomendando-me procurar a professora Maria Cristina von Zuben de Arruda Camargo, de seu Departamento, o que fiz logo nos dias seguintes, combinando com ela organizar a Segunda Jornada de Ética Médica da Faculdade para dali a alguns meses. Eu não imaginava quem ela era, seu diagnóstico.

Gastei muito do meu tempo e energia com isso, no final do semestre. Tanto que não estudei para as provas finais de Medicina Legal e Medicina Interna.


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Alguns trabalhos de Décio Silveira Pinto de Moura, encontrados no MedLine eletrônico (só incluídas publicações a partir de 1966):

[Incidence and characteristics of involuntary movements appearing spontaneously in the elderly]
Karniol IG, Moura DS
Arq Neuropsiquiatr 1981 Jun 39:2 133-42
Abstract
Involuntary repetitive movements in which several muscle groups are involved are described in connection with several mental and physical syndromes. In this study those occurring in the elderly, when age seems solely to be influencing, are focalized. We found that 36.36% of the residents in an old people home had those symptoms. They were mostly buccolinguomasticatory, less intense but similar to those found in tardive dyskinetic patients. There was a tendency of increasing their incidence with age and sometimes they appeared together with other extrapyramidal manifestations such as parkinsonism. The possibility and importance of lack of balance between dopaminergic and cholinergic systems to explain those symptoms are discussed.
MeSH
Aged; Aging; Antipsychotic Agents; Basal Ganglia Diseases; Dopamine; English Abstract; Female; Human; Male;Middle Age; Movement Disorders; Parasympathomimetics;

 

[Incidence of tardive dyskinesia and its characteristics in a psychiatric hospital in our milieu]
Moura DS, Karniol IG
AMB Rev Assoc Med Bras 1980 Jun 26:6 197-200
MeSH
Age Factors; Antipsychotic Agents; Comparative Study; Dyskinesia, Drug-Induced; English Abstract; Female; Human; Male; Parasympatholytics; Sex Factors; Time Factors;

 

[A double-blind study of the effect of L-dopa in psychotic patients with tardive dyskinesia]
Karniol IG, Giampietro AC, Moura DS, Vilela WA, Oliveira MA, Zuardi AW
Acta Psiquiatr Psicol Am Lat 1983 Dec 29:4 261-6
Abstract
Appropriate manipulation of dopaminergic systems, that probably contribute to tardive dyskinesia, may bring about a reduction in its intensity. In this study various, increasing doses of L-dopa, which is converted to dopamine in the CNS, was administered over the relatively long period of time of one month, in double-blind conditions, to psychiatric patients with stabilized psychotic symptoms, with tardive dyskinesia. With the one gram daily dose group, there was a reduction of the intensity of the involuntary movements, when compared to that of the patients who received placebo.
MeSH
Clinical Trials; Double-Blind Method; Dyskinesia, Drug-Induced; English Abstract; Female; Human; Levodopa; Male; Placebos; Psychotic Disorders;

 


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