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ATUALIDADES

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A CÚPULA FINAL

Por Edward Said

A mídia tem estado explosiva com    rumores, especulações e algumas notícias sobre a cúpula de Camp David, seus avancos, resultados e significado. O que quer que aconteça como consequência imediata das negociações, uma coisa parece bastante clara: que apesar de qualquer providência que seja tomada com relação ao território, fronteiras, condição de Jerusalém, refugiados, água e soberania, a questão subjacente é se os palestinos concordarão ou não em acabar com o conflito com Israel e declarar nulo e sem efeito o passado, porque daqui para frente o que importa é o presente e o futuro. Acho que esta declaração é o grande prêmio que Iasser Arafat - lembremo-nos de que mesmo com seu exército de auxiliares em Camp David, só ele tem a palavra final - tem em seu poder para conceder a Israel e é precisamente isto que Israel deseja mais do que tudo. Portanto, mesmo que Jerusalém e o direito de retorno dos refugiados sejam de menor importância em comparação com alguma espécie de declaração feita de boa vontade por palestinos, prevendo um fim para todas as suas reivindicações contra Israel, além da desistência de qualquer luta posterior contra o estado que efetivamente os despojou de tudo, de seu patrimônio histórico, terra, casas, propriedade, bem-estar e tudo o mais, coletiva e individualmente.

O que vem me preocupando em relação à tática de Arafat (ou será estratégia?) de ameaçar declarar a criação de um estado, é o perigo de que este estado, na verdade, possa rapidamente ser reconhecido como o equivalente à concessão aos palestinos do cumprimento do direito à autodeterminação, talvez apenas no papel, mas concessão, apesar de tudo. Nenhum país como Israel é capaz de tolerar a existência de um outro país, e  muito menos de assistir ao seu nascimento, em cuja estrutura pudesse existir um passado incompleto e não cumprido. Assim, em troca da aceitação do estado da Palestina, Israel tem muita razão em exigir também que o novo estado renuncie a qualquer reivindicação do passado, pois por definição este novo estado será visto como o atendimento de todas as exigências.

Em outras palavras, a existência de um estado palestino desmilitarizado e necessariamente truncado, estará sendo projetado, constituído, fundado e construído  a partir de uma negação do passado, independentemente das desvantagens territoriais, econômicas ou política.. Na visão de Israel, o passado em questão é um passado inteira e exclusivamente palestino (e não um passado palestino-israelense), embora no caso de Israel, ninguém preveja um fim para as reivindicações dos judeus contra seus perseguidores do passado. Arrancado deste contexto de luta e expropriação, seu longo rastro de sofrimento, exílio, deslocamentos e perdas substanciais, este passado palestino real será declarado nulo e sem efeito em troca da conquista de um estado.

Não se trata apenas de uma questão formal, mas de alguma coisa que é projetada para fincar raízes na identidade palestina. Oslo já provocou danos, sem contar a história palestina que é ensinada aos jovens pelos livros da Autoridade Palestina. Na nova ordem das coisas, os palestinos são representados como um povo que vive agora em Nablus, Ramallah e Jericó; como chegaram lá, como alguns deles chegaram lá em decorrência dos acontecimentos de 1948 e 1967, e como Tiberíades e Safad certa vez já foram preponderantemente árabe, todos esses pequenos inconvenientes de informação foram simplesmente retirados dos livros. Em um livro de história do 6° grau, Arafat é citado apenas como o presidente da Autoridade Palestina. Sua história na OLP, para não falar na época de Aman, Beirute e Túnis, foi simplesmente apagada. Em outro livro, a Palestina é apresentada às crianças palestinas como um retângulo vazio: pede-se a elas que preencham os espaços, desde que a paz seja concluída, apenas com os nomes dos lugares que serão considerados como palestinos, de acordo com Camp David.

Existe uma grande diferença entre não gostar ou estar aborrecido com o passado, por um lado, e por outro, recusar-se a reconhecê-lo como passado, mesmo que seja o passado que algumas pessoas acreditam. A razão para que tantos representantes palestinos tenham ficado  ansiosos ao se referirem à Resolução n° 194, da ONU (Direito de Retorno) ou mesmo a 242 ( território devolvido) é irrelevante. Ainda que possa ser irrelevante, essas resoluções representam a destilação da história palestina que parece ser reconhecida pela comunidade internacional. Como tal, então, elas são válidas, independente do capricho de qualquer das partes. O perigo de Camp David é que ele anulará, explícita e implicitamente, esta qualidade. A história deve ser reescrita não de acordo com os melhores esforços que os historiadores tenham feito para tentar determinar o que ocorreu, e sim de acordo com o que as potências maiores (EUA e Israel) permitem como sendo história.

O mesmo apagamento do passado, e suas reivindicações sobre o futuro, certamente será aplicado à ocupação israelense que começou em 1967. Agora temos um registro completo dos prejuízos ocorridos na economia, e, estou certo, um registro completo da destruição deliberada que aconteceu na agricultura, nas questões municipais e na propriedade privada. Mortes, ferimentos e coisas afins também foram registrados. Certamente que não estou questionando a tomada de um ressentimento permanente contra os perpetradores, mas estou lembrando que três décadas de ocupação não devem simplesmente ser transformadas em partículas de pó numa superfície resplandescente. O Iraque ainda está pagando ao Kuait por uns poucos meses de ocupação em 1990 e 1991, e é assim que tem que ser. Por que então Israel    milagrosamente se exime de pagar por todo o malfeito passado? Como esperar que os libaneses do sul possam perdoar e esquecer os 22 anos de ocupação de seu território, sem falar nos horrores da prisão de Khiam, com sua tortura, terríveis confinamentos solitários e condições desumanas, tudo isso supervisionado e mantido pelos peritos israelenses e seus mercenários libaneses?

Essas questões,penso, exigem muita deliberação, reflexão e avaliação cuidadosa. Talvez no devido tempo, até uma Comissão de Reconciliação e Verdade, no estilo sul-africano, possa ser convocada. Mas não acredito que um assunto tão denso e grave, como a história palestina da injustiça em mãos israelenses e até toda a questão da própria responsabilidade de Israel, possa ser estabelecido na forma de uma negociação feita relativamente rápida, no estilo bazar. Há verdade e dignidade e justiça a serem consideradas de forma justa sem o que nenhum acordo poderá ser concluído por inteiro, não importa que expediente político seja usado.

Como um mínimo de garantia de que algumas considerações possam trazer a paz do tipo que Camp David deseja, torna-se fundamental a realização de um plebiscito ou de um referendo palestino, porque democraticamente justo. Pelo menos, neste processo esfarrapado e insatisfatório de Oslo, o sr. Arafat e seus aliados têm uma chance de salvar uma pequena parte do que nos foi deixado como povo - não tão pequena por causa dos anos de desgoverno, desonestidade e indignidade. Será que afinal, de alguma forma eles se redimirão, ainda que parcialmente?

Publicado no Al Ahram, em 26/07/00

http://www.ahram.org

(*) Edward Said é um filósofo e escritor palestino, residente nos Estados Unidos, professor de literatura da Universidade de Colúmbia, e uma das vozes que mais questionam o processo de paz no Oriente Médio. Segundo ele, o acordo que está em vias de ser firmado só beneficia Israel, uma vez que não prevê o direito de retorno aos palestinos, a devolução total dos territórios ocupados e o Estado palestino não terá Jerusalém como sua capital.

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