Noruega
A terra do sol da meia-noite


Uma bela paisagem à beira de um riacho, logo nos primeiros quilômetros de Noruega, me obriga a uma parada para fotos. Afinal, depois de cruzar a Suécia de sul a norte com chuva ininterrupta e temperaturas entre 10 e 12 graus, o céu azul me parece extremamente fotogênico. Moto parada no acostamento, tiro o capacete, a jaqueta e as luvas encharcadas. Assim que desempacoto a câmera noto os primeiros mosquitos. "Dá tempo de tirar uma foto antes que eles ataquem", penso. Que erro. Em poucos segundos estou rodeado por uma massa cinza-escura de chupadores de sangue, ávidos pelo fluido vermelho, importado do Brasil, que por acaso corre em minhas veias. Vorazes, picam através da camiseta. Visto a jaqueta e o capacete, de viseira fechada. Ouço um tamborilar no capacete - centenas dos malditos bichos se lançando contra o casco. Com a câmera ainda no pescoço e luvas semiabertas, monto na Suzi e volto pra estrada, a salvo dos monstros. A foto ficou uma droga, é claro.

A Noruega é o país em formato de salsicha no oeste da escandinávia, vizinho da Suécia (a salsicha da direita) e da Finlândia no norte. Parte da Noruega fica ao norte do círculo polar ártico, ou seja, durante algumas semanas do inverno o sol nem chega a nascer e faz muito frio. Em contrapartida, no verão há dias em que o sol não se põe - e continua fazendo frio. Com exceção dos mosquitos, a natureza norueguesa é belíssima. As montanhas costeiras, com altitude entre 1000 e 1500 metros, têm picos nevados mesmo durante o verão. A vista dessas montanhas ao lado de fiordes é realmente estranha, já que me acostumei a ver neve em lugares altos e não ao nível do mar. As estradas costeiras, encrustradas nas montanhas, são geralmente bem conservadas, cheias de curvas, pontes, balsas e túneis. Cenário ideal para andar de moto, com estradas pequenas e pouco movimentadas. Além disto, as áreas de descanso à beira da estrada têm churrasqueira, banheiros limpos, "louça" sanitária de aço inox, água quente e papel higiênico. E nem precisa pedir a chave pro frentista! Túneis são um capítulo à parte. Muitos deles, escavados em rocha, são úmidos, sem revestimento nem iluminação. Buracos escuros mesmo, e por não terem áreas de parada antes da entrada, não tem como tirar os óculos de sol. O problema é que ovelhas e alces têm atração especial por esses túneis. São o lugar ideal para assustar motociclistas que entram desavisadamente na armadilha e não enxergam uma vírgula do que se passa no interior escuro. Alces também adoram passear no meio da pista, que nem galinhas correndo na frente dos carros. Os noruegueses, educados e ecologicamente corretos, não buzinam e fazem fila atrás dos quadrúpedes. Mas basta um acelerão pra perto da faixa vermelha que os bichos voltam pra floresta. Rapidinho.

Meu primeiro destino na Noruega é o Nordkapp, o ponto mais ao norte que se alcança por estrada na Europa. Nordkapp é na realidade uma arapuca turísica, na qual eu caio juntamente com outros milhares de turistas ávidos por "souvenirs". Mas vale a visita, pelo fato de ver o sol da meia-noite do pedaço de asfalto mais setentrional da Europa. Meu último relógio, comprado na Venezuela, quebrou já na França. Sigo só o meu biorritmo, parando para comer quando a fome bate e para dormir de noite. O detalhe é que no norte, durante o verão, é sol 24 horas por dia. Não escurece. Vou dormir e acordo com barulhos, não sei se dormi meia hora ou dois dias inteiros. Perco completamente a noção de tempo, o que dá uma sensação fantástica de estar "de férias". Sem compromissos, sem precisar chegar em um determinado dia, que dirá a uma determinada hora. Só fica chato não saber se cumprimento as pessoas com "bom dia" ou "boa noite".

Na volta para Alta, que por sinal fica ao nível do mar, vejo uma moto me seguindo por quase 20 km. De repente, sem motivo maior, me passa em alta velocidade, acenando. Tipo estranho, penso comigo. A figura revestida em couro, montada numa chopper, desaparece à minha frente depois de algumas curvas, e logo reaparece no espelho. Me passa novamente e faz sinais do tipo "me segue". Depois de sumir em alguma esquina na cidade, me alcança de novo, nova ultrapassagem, novos sinais. Finalmente resolve parar e me explica que o moto-clube local está organizando uma festa e que deveríamos dar uma olhada. Achei melhor não discordar.

No caminho pro "PolarTreff", o sugestivo nome do encontro, ele pára (mais uma vez) e me explica que precisa comprar um presente de aniversário pro irmão. Entra no supermercado e sai com 12 latas de cerveja. Abre as bolsas da moto, desempacota tudo no chão do estacionamento e coloca as cervejas bem no fundo. 10 minutos mais tarde consegue acomodar tudo de volta, mas esquece uma aba de couro. Tento avisar, e ele salta assustado, com olhos arregalados: "Vazando óleo? Onde?" Esclarecido o mal-entendido, ele agradece e se desculpa: "É que acabei de comprar a moto, seria muito ruim se comecasse a vazar óleo agora." Quando estamos quase a caminho do PolarTreff, ele se lembra que na verdade parou pra comprar um presente. Volta pra dentro da loja, e dessa vez demora bem mais para sair com um CD e um elástico para prender bagagem. "Cara, esse CD é muito bacana, tem 50 músicas e nem precisa de DJ! Imagina, é só botar pra tocar e as músicas vão mudando sozinhas! Nem precisa de DJ!". Resolvo concordar para não ser rude, sem perceber que seguiriam as explicações sobre o elástico. "Olha, tem esse ganchos de plástico na ponta para prender em qualquer parte da moto! E são elásticos, por isso dá pra prender bastante coisa! Você precisa comprar um também!" Tento explicar que já tenho elásticos de sobra, enquanto ele desempacota toda a parafernália de novo para guardar o CD e o elástico. Nem um nem outro cabem nas pequenas malas de couro, que já estão abarrotadas de cerveja. Até pensei em sugerir para ele usar o elástico e prender alguma coisa grande por fora, quando ele entra de novo na loja e pede para embrulhar o CD em papel de presente. Afinal de contas, é o presente pro aniversário do irmão.

Por sorte(?), os tios do recém amigo moram no caminho pra festa, e "precisamos" dar uma parada. Super simpáticos, oferecem café, pão e queijo de cabra adoçado. Explicam, orgulhosos, que os noruegueses inventaram o cortador de queijo e o clips de papel, além de revestirem os telhados das casas com terra e grama. Pelo fato de ser complicado usar cortador de grama elétrico, eles põe as cabras para pastar no alto das casas. Do leite, fazem o queijo marrom e adoçado. Pessoalzinho estranho.

De repente é hora de seguir, ou não sobraria tempo para procurar os outros amigos - em mais 3 ou 4 paradas. Finalmente chegamos no PolarTreff, e logo sou apresentado ao irmão aniversariante. Dou-lhe os parabéns, e ele faz cara de espanto. Foi há 4 meses, ele diz. Fico na dúvida se vou encontrar apenas um ser normal. Os noruegueses, descendentes de vikings, não são justamente meigos - e um encontro de motos ao norte do círculo polar ártico certamente não reúne os tipos mais delicados e limpinhos. Ao entrar no terreno do clube chego a pensar em dar meia-volta, mas a bandeira brasileira na moto logo atrai alguns interessados. Depois de poucos minutos percebo que tive a impressão errada. São amigáveis, conversam animadamente e me dão cerveja.

Estão todos alcoolizados, se divertindo, sem brigas. Incrível. Harleys convivendo em paz com as R1 sendo testadas na bancada, um grupo de ingleses com suas BSA e Norton da década de 60 de papo com os alemães de BMW. Nada de panelas. O verão no norte da Noruega é tão curto que todos aproveitam os dias de sol ao máximo, e a baixa densidade demográfica contribui para uma alta sociabilidade. Com exceção de alguns camponeses, todos falam inglês e adoram conversar com brasileiros. Só um eremita tem dificuldade de fazer amigos.

Meu roteiro, escolhido menos ao acaso e mais pelas condições meteorológicas, me leva pelo arquipélago de Lofoten. Å (leia-se O) é a tradicional vila de pescadores no sul da ilha, e com o mais tradicional ainda peixe seco ao sol. De noite procuro duas árvores para esticar a minha rede, de preferência em uma das áreas de descanso com água quente e banheiro. Deixei a barraca em casa para economizar espaço com a rede de náilon, super fina e leve. Dois casais de alemães idosos em "motorhomes" também escolheram o mesmo lugar, e se admiram com meu engenho indígena de pernoite. "Você vai dormir nisso aí?" Mais tarde vêm inspecionar meu jantar. "A gente só tava curioso para ver o que um brasileiro que dorme em rede come de noite." Macarrão Miojo. Voltam correndo pras suas casas sobre rodas e me trazem camarão e cerveja gelada. Depois de trocar algumas dicas sobre estradas e atrações, eles se despedem e vão dormir.

Acordo com alguém balançando a rede. "Trouxemos café-da-manhã para você!" Ainda em meio ao sono, tento focalizar a cena. Os casais sorridentes me oferecem uma xícara de café quente e pão com geléia. "A gente sabe que você está dormindo, mas queríamos tirar uma foto sua antes de seguir viagem." Me ponho de pé ao lado da rede - pão e xícara na mão - e dou o melhor sorriso que consigo naquelas circunstâncias. Pelo menos eu não sou o único que tirou fotos ruins na escandinávia.

A próxima grande parada é em Trondheim, a terceira maior cidade norueguesa, com cerca de 120mil habitantes. Por ter diversas universidades, Trondheim é uma cidade extremamente jovem, culturalmente desenvolvida e com boas alternativas para a noite. Muitas construções de madeira, incluindo pontes, casas, calçadas e igrejas me fazem compreender o que aconteceu com as florestas na escandinávia. Acho que em norueguês e sueco o conceito "construir" está intimamente ligado a "moto-serra". Não há nada na escandinávia que já não tenha sido feito em madeira, e por isso mesmo florestas nativas são coisa rara. Reflorestamentos, em compensação...

Ponho-me a caminho do fiorde Geiranger, que certamente vale a visita. Pode-se contorná-lo por estradas, mas a grande atração é a balsa que passa por cachoeiras e fazendas incrustradas nas encostas do fiorde. Incrível como os camponeses conseguem cultivar plantas e criar gado em terreno tão íngrime, muitas vezes ligado ao fiorde somente através de cabos aéreos. Caminhos nem pensar, estradas muito menos. Mas o espaço plano e horizontal é tão escasso que se aproveita o íngrime mesmo. As cachoeiras no percurso também valem umas fotos.

Balsas realmente não faltam. São caras, mas dar a volta nos fiordes geralmente acrescenta 50, às vezes 200 km no percurso. Com o preço da gasolina a US$ 1,30 o meio naval acaba sendo o menos custoso. Motos geralmente "furam fila" e entram logo na primeira balsa, o que não me impede de conhecer dois casais idosos em "motorhomes". Dessa vez são italianos. Eles se interessam pela bandeira brasileira na moto, e perguntam se não sinto saudades do café de casa. O inglês deles é péssimo, e eles parecem apreciar o meu esforço em arranhar algumas palavras em italiano. Me convidam para um espresso, e o diálogo se baseia no fato de os jogadores de futebol brasileiros na Itália terem salários altos demais e de eu ter a pele um tanto clara para ser brasileiro. "Piccolo mondo", dizem, o sobrinho deles se casou com uma brasileira de São Paulo que também era branca. Começo a ter mais consideração pelos "motorhomes" lentos que antes só serviam para entupir as estradas estreitas. Agora os vejo como grandes fornecedores de cerveja e café.

Mais ao sul da Noruega as cidades e vilas são mais freqüentes, o turismo mais desenvolvido. O glaciar Jostedalsbreen é uma das grandes atrações, e realmente vale a visita para quem ainda não foi à Patagônia. Me ponho a caminho de Bergen, outra cidade turística em que construções de madeira (do que mais?) caracterizam o antigo porto no centro. Em uma das muitas esperas por balsas, ouço alguém gritar "piccolo mondo". A espera ficou mais curta ao sabor do verdadeiro espresso e discussão de salários milionários. Em Bergen, como descobri mais tarde, chove 400 dias por ano.

Por último visito Oslo, a maior cidade e capital norueguesa com 500mil habitantes. Ao chegar na cidade, instintivamente caio numa avenida ao longo de um parque no centro. Tempo bom, as pessoas sentadas nos cafés, patinando, ou apenas torrando ao sol. Deixo a procura pelo albergue para mais tarde e acho um lugar nas disputadas mesas na calçada. Cerveja cara em punho (US$ 5 a 8), meu olhar é capturado por uma loira. Na verdade a Noruega transborda de loiras, mas essa é especial, fardada, montada a cavalo e seguida de outra loira também fardada, conduzindo camburão. Depois de 5 minutos a avenida está tomada por caminhões de som tocando tecno no último volume e centenas de loiras felizes da vida saltitando ao ritmo da música. Cheguei justo no dia da Summer Parade.

Os noruegueses ainda precisam aprender muito para chegar aos pés do carnaval brasileiro, mas para compensar têm loiras qualidade exportação!

Olaf Schwalm


a moto: Suzuki GSX 1100 G, naked-touring, motor 4 em linha a ar, cardã.

Dicas e informações úteis para viajar na Noruega
Algumas fotos da Noruega