MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE

(1765-1805)



Grato silêncio, trêmulo arvoredo,
Sombra propícia aos crimes e aos amores,
Hoje serei feliz! Longe, temores,
Longe, fantasmas, ilusões do medo.

 Sabei, amigos Zéfiros, que cedo
Entre os braços de Nise, entre estas flores,
Furtivas glórias, tácitos favores
Hei-de enfim possuir. Porém, segredo!

 Nas asas frouxos ais, brandos queixumes
Não leveis, não façais isto patente,
Que nem quero que o saiba o Pai dos numes.

 Cale-se o caso a Jove onipotente;
Porque, se ele o souber, terá ciúmes,
Vibrará contra mim seu raio ardente.

 


Se é doce no recente, ameno Estio
Ver toucar-se a manhã de etéreas flores,
E, lambendo as areias e os verdores,
Mole e queixoso deslizar-se o rio;

 Se é doce no inocente desafio
Ouvirem-se os voláteis amadores,
Seus versos modulando e seus ardores
Dentre os aromas de pomar sombrio;

 Se é doce mares, céus ver anilados
Pela quadra gentil, de Amor querida,
Que esperta os corações, floreia os prados,

 Mais doce é ver-te de meus ais vencida,
Dar-me em teus brandos olhos desmaiados
Morte, morte de amor, melhor que a vida.

 


Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;

 Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;

 Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,

 Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.

 


Entre as tartáreas forjas, sempre acesas,
Jaz aos pés do tremendo, estígio nume,
O carrancudo, o rábido Ciúme,
Ensangüentadas as corruptas presas.

 Traçando o plano de cruéis empresas,
Fervendo em ondas de sulfúreo lume,
Vibra das fauces o letal cardume
De hórridos males, de hórridas tristezas.

 Pelas terríveis Fúrias instigado,
Lá sai do Inferno, e para mim se avança
O negro monstro, de áspides toucado.

 Olhos em brasa de revés me lança,
Ó dor! Ó raiva! Ó morte!... Ei-lo a meu lado,
Ferrando as garras na vipéria trança.

 


Quantas vezes, Amor, me tens ferido!
Quantas vezes, Razão, me tens curado!
Quão fácil de um estado a outro estado
O mortal sem querer é conduzido!

 Tal que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até regia a mão do Fado,
Onde o Sol, bem de todos, lhe é vedado,
Depois com ferros vis se vê cingido.

 Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo da Existência à morte!

 Travam-se gosto e dor; sossego e lida...
É lei da Natureza, é lei da Sorte
Que seja o Mal e o Bem matiz da vida.

 


Aqui, onde, arquejando, estou curvado
À lei, pesada lei, que me agrilhoa,
De lúgubres idéias se povoa
Meu triste pensamento horrorizado.

 Aqui não brama o Noto anuviado,
O Zéfiro macio aqui não voa,
Nem zune inseto alígero, nem soa
Ave de canto, alegre ou agoirado.

 Expeliu-me de si a humanidade,
Tu, astro benfeitor da redondeza,
Não despendes comigo a claridade.

 Só me cercam fantasmas de tristeza.
Que silêncio! Que horror! Que escuridade!
Parece muda ou morta a natureza.

 


Se o Grande, que nos orbes diamantinos
Tem curvos a Seus pés dos reis os fados,
Novamente me der ver animados
De modesta ventura os meus destinos;

 Se acordarem na lira os sons divinos,
Que dormem (já da glória não lembrados),
Ao coro etéreo, cândidos e alados,
Honrar com ele um Deus ireis, meus hinos.

 Mas, da humana carreira inda no meio,
Se a débil flor vital sentir murchada
Por lei que envolta na existência veio,

 Co’a mente pelos Céus toda espraiada,
Direi, de eternidade ufano e cheio:
“Adeus, ó mundo! Ó natureza! Ó nada!”

 


Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

 Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!

 Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

 “Outro Aretino fui... A santidade
Manchei... Oh!, se me creste, gente impia,
Rasga os meus versos, crê na Eternidade!”


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