Ficha Técnica

Data: 2001
Organização:
Nuno Torres e
João P. Ribeiro
Edição:
Íman.
Praceta Cristo Rei, 10, 1 dto 2800 Almada
Grafismo: Neroli Design
343 paginas
ISBN: 972-8665-11-3
Participantes:

Alexandre Quintanilha
Antonio Filipe
Antonio Dores
Artur Valentim
Carlos Fugas
Carlos Poiares
Domingos Neto
Francisco Esteves
João Paulo Ribeiro
Jorge Negreiros
Jorge Silva Ribeiro
Manuel Sanches
Mario David
Nuno Felix da Costa
Nuno Torres
Rene Tapia Ormazabal
Índice
Prefácio. Alexandre  Quintanilha
Introdução
A  "Pedra" e o "Charco"ou por detrás do Narco-Íris. Nuno Torres e João Paulo  Ribeiro
Uma  Velha História Chinesa
Algumas  considerações sobre a "droga" como objecto-total
Sobre  o Tratamento da toxicodependência, ou não
O  Surgimento de uma Nova Abordagem: a Redução de Riscos
Apresentação  do Livro
1ª  Parte.
Dinâmicas  Orientadoras do Macro-social
1. Droga  de Prisão. António Pedro  Dores
Introdução
Droga  de Política Proibicionista
O Que  é a Prisão?
A  Droga nas Prisões
Conclusões e Recomendações do Congresso SOMA
Justiça e Prisões
Carrascos de Cara Branqueada
Seminário Prisões: Economia, Justiça e Sociedade
2. As políticas  de luta contra a droga (1980-2001). António Filipe
Introdução
Anos  80: a Pré-História do Combate à Droga
Anos  90: Da Maioria Absoluta Paralisante...
...ás  Vantagens da Maioria Relativa
2001:  Presente e Futuro da Luta contra a Droga
3. O  Quantitativo e o Qualitativo no Fenómeno da Droga e as Políticas do Estado. René Tapia  Ormazábal
A  Politica Europeia
Corrupção e Violência
Reflexos no Orçamento
Custo  do Consumo de Drogas
Organizar as Estatísticas
Ordem  ou Saúde Pública
Para  Tomar uma Decisão há que ter Informação
4. Droga, Lei  & Saber. Abordagem Psicocriminal Carlos  Poiares
5. O  Dilema das Abordagens à Droga: Racionalidade ou Irracionalidade?
   Eficácia:  Critério para Determinar a Abordagem mais Adequada
. Jorge da Silva  Ribeiro
Introdução: a Lógica desta  Reflexão
A "Droga" como Catalisador de  Diversos Problemas
Um Instrumento para a  Definição Compreensiva do Problema
A Perspectiva das Nações  Unidas Relativamente ao Problema "Droga"
À Procura de Soluções para o  Problema
Duas Abordagens Fundamentais.  Proibicionismo e não-Proibicionismo
Os Objectivos Globais de Cada  Abordagem
As Vantagens e as Desvantagens  de cada Abordagem
Dados e  resultados
Opiniões de Duas  Personalidades de Renome Mundial sobre a Legalização e  Despenalização das Drogas
Racionalidade das Decisões  Adoptadas Face aos Resultados
Conclusão  Final
6. Droga, Liminaridade  Social e Utilização de Ersatzs. Artur Valentim
A Ordem Social da  Droga
A Liminaridade  Narcótica
A  Metadona na Política de Cuidados da Toxicodependência
A  Metadona: um Ersatz Desafiador
2ª Parte.
Intervenção  na Toxicodependência
7. Investigação em  Toxicodependências e Redução de Riscos em Portugal. Nuno Felix da Costa
Porquê Investigar?
As  Drogas e a Toxicodependência enquanto Objecto de  Investigação
Investigação em Prevenção Primária
Investigação em Prevenção Secundária
Investigação em Prevenção Terciária
Investigação em Redução de Riscos
Quem  Produz Investigação?
Quem  Utiliza o Resultado da Investigação?
8. Neurofarmacologia das  Adições. Mario David
Introdução
Os  Opiáceos e o Cérebro
Os  Efeitos Neurofarmacológicos (Heroína)
A  Desintoxicação
As  Terapêuticas para a Manutenção
Na  Prevenção da Recaída
Neurofarmacologia da Cocaína
As  Terapias Farmacológicas para a Cocaína
Situações Especiais de Tratamento
A  Neurofarmacologia das Anfetaminas e das Metanfetaminas
Aspectos Clínicos
Intervenções Terapêuticas
9. Casal Ventoso, a  Desértica do Plano.    Carlos Fugas
Introdução
Estigma
Ouvir
A  "Reconversão" e o "Plano Integrado" ou Uma História de Passagens ao  Acto
A  Metadona (no) e o Casal Ventoso
10. Programas de Doze  Passos.   Francisco Henriques
1ª  Parte: O Grupo de AA/NA...Onde tudo Começa
Conceito de Auto-Ajuda
As  Reuniões, os 12 Passos e a Sobriedade
Os 12  Passos
Do  Desespero à Paz Interior
O Que  AA/NA pode proporcionar
2ª  Parte: Tratamento da Adição e Grupos de Auto-Ajuda
Os grupos de auto ajuda como  instrumentos de recuperação
Modelo Minnesota
Alguns Dados  Estatísticos
Como  Contactar os Grupos de Auto-Ajuda em Portugal
11. A  Prevenção do Consumo de Drogas: Teoria, Investigação e Prática.   Jorge  Negreiros
Introdução
Prevenir para Quê?
Prevenir para Quem?
Factores de Risco e Factores de Protecção
Estratégias Universais, Selectivas e Indicadas
Prevenir Como?
Porque Razão a Teoria é Importante?
Princípios da Prevenção do Abuso de Drogas
Conclusões
12. Tratamento Combinado e  por Etapas de Dependentes Químicos. Domingos Neto e Nuno Torres
Introdução
O  Conceito de Alexitimia e a Matriz genética
Introdução de Conceitos novos no Tratamento
O  Tratamento Combinado e por Etapas de Dependentes Químicos
Eficácia do T.C.E. em Toxicodependentes no  Ambulatório
Eficácia do T.C.E. em Doentes Alcoólicos
O  T.C.E. em Programas de Empresas
Aprender com os Doentes
Eficácia de um Modelo de Internamento  Psicoterapêutico
Limites e Perspectivas de Futuro
13. Adictos:  O Processo de Mudança na Comunidade Terapêutica.    Manuel Peres Sanches 
Que  Mudança? Deixar Drogas, Deixar Hábitos e Cultura Tóxica
Preencher o Vazio: Retorno às Necessidades  Fundamentais
Contexto favorável da Comunidade Terapêutica
Pressão Social, Factor de Mudança
Lugar  Central Ocupado pela Terapia Emocional
Inteligência Emocional ou Emoção Inteligente?
"Bonding Therapy"  O que é?
Influência de Synanon e de Casriel
O  que se Trabalha e o que se Obtém na Terapia Emocional?
Aceitar as Emoções: Para Uma nova Cultura das  Emoções
Que  Estilos de Vinculação Temos?
Encaminhar-se para um Estilo de Vinculação Seguro
     É principalmente a  partir dos anos 80, como vários autores desta antologia apontam, que o fenómeno  da toxicodependência começa a ocupar uma posição cada vez mais importante no  debate publico em Portugal. Não só porque o consumo das drogas ilícitas dispara  de forma exponencial, mas porque é também a partir dessa data que varias doenças  infecto-contagiosas (SIDA, tuberculose multiresistente e hepatites) começam a  surgir associadas a uma percentagem significativa desses consumidores.
O  comportamento delinquente dos traficantes e de alguns consumidores ajudou a  aumentar a visibilidade do fenómeno e a dar-lhe uma importância política que  outras questões, porventura menos mediatizadas, ainda não atingiram.
Seria  impossível no espaço limitado deste livro tentar cobrir, de forma aprofundada,  todas as questões importantes que se levantam em relação a este fenómeno.
Os  doze capítulos que se seguem dão-nos, de uma forma mais ou menos condensada, a  visão de alguns dos profissionais que em Portugal se tem dedicado a estudar  vários aspectos do fenómeno da toxicodependência.

Desde questões  fundamentais como a caracterização da "ordem social da droga" ou o enorme  déficit de investigação nestes domínios, ate aos aspectos mais práticos da  intervenção, o leque de tópicos é grande. Imagino que um dos objectivos dos  editores tenha sido o de tornar mais clara a noção de que este fenómeno  necessita de uma abordagem multidisciplicar se quisermos avançar na sua  compreensão.

António Filipe dá-nos
uma ideia condensada do que, do ponto de  vista legislativo, tem acontecido em Portugal, desde os anos 80, o que ele  denomina como "a pré-história do combate a droga", ate aos nossos dias. Termina,  considerando que "no plano político, legislativo e pratico, e evidente que algo  evoluiu" mas que muito ainda esta por fazer no combate ao trafico e ao  branqueamento de capitais.

Artur Valentim reconhece que a nossa política  recente, não tendo ainda perdido "a sua matriz proibicionista", conseguiu
romper  "com o imobilismo repressivo em que assentou desde sempre" parecendo disposta a  entrar numa estratégia de "experimentação social", tentando dessa forma gerir de  forma realista uma política de "minimizacao de danos máximos".

Utilizando  analogias com a teoria das revoluções cientificas e da alteração de paradigmas,  Carlos Poiares explica como vários paradigmas tem vindo a ser sucessivamente  ultrapassados a medida que deixam de ser úteis para aqueles que têm de lidar com  este fenómeno. Dessa evolução surge o conceito de que
a "política das drogas  devera incidir preferencialmente nos domínios social e sanitário, em detrimento  da componente juridico-penal". Seja qual
for o paradigma, as políticas dai  resultantes reflectem-se necessariamente no orçamento dos Estados.

O "custo  social da droga" ainda está longe de ser conhecido de forma detalhada.  Infelizmente, esta falta de conhecimento tem como consequência perversa o facto  de que
decisões sobre prioridades continuam a ser baseadas em grande parte na  intuição daqueles que decidem, e não na definição de objectivos que possam ser  claramente avaliados qualitativa e
quantitativamente
. Este problema afecta  de forma muito clara e preocupante as políticas nacionais e internacionais, como  explica Rene Tapia Ormazabal.

A neurofarmacologia das adições é apresentada por  Mario David. Neste capitulo
são-nos dadas informações sobre os efeitos imediatos  e a longo prazo das drogas ilícitas mais utilizadas e dos métodos utilizados na  intervenção terapêutica. São abordadas questões gerais e especificas  relacionadas com a heroina, a cocaína, as anfetaminas e as metanfetaminas. 

Três capítulos tratam da enorme falta que todos aqueles que trabalham nestes  domínios sentem em relação à área da investigação. No que diz respeito à  prevenção, Jorge Negreiros defende que
a "proclamada ineficácia da prevenção",  esteja relacionada com o facto de a maioria dos programas não integrar os mais  recentes resultados da investigação".

Nuno Felix da Costa alerta para o facto de  que "(
n)as actuais políticas de redução de riscos não parece sensato que as  medidas previstas não sejam testadas a um nível experimental antes de serem  legisladas" e que "mesmo receitas testadas no estrangeiro podem não ter uma  aplicação linear no pais".

No que diz respeito às prisões, António Pedro Dores  propõe
a criação de um "observatório das prisões, capaz de enquadrar trabalhos  de pesquisa" que possam fornecer dados importantes para a definição de  estratégias pragmáticas para esses estabelecimentos. Todos defendem a  necessidade de um muito maior esforço no que diz respeito à investigação nestes  domínios. Os exemplos que nos dão são ilustrativos das carências encontradas. 

Outros três capítulos debruçam-se sobre algumas das formas especificas de  tratamento actualmente utilizadas. Manuel Peres Sanches descreve o
funcionamento  das comunidades terapêuticas baseadas na teoria emocional de Casriel (Bonding  Therapy), enquanto que

Francisco Henriques descreve
os "programas de 12 passos"  utilizados pelos Alcoólicos Anónimos / Narcóticos Anónimos (AA/NA), incluindo  informação sobre as diferentes formas de contactar esses grupos.

Domingos Neto e  Nuno Torres identificam
três tipos de abuso no fenómeno da toxicodependência: "o  abuso de substancias, o abuso dos outros, e o abuso de si próprio" e da  necessidade de "trabalhar sinergicamente estes desequilíbrios, sem obrigar a uma  multiplicação de recursos excessiva". Estes autores são particularmente claros  ao apontarem a necessidade do que apelam de "testes da realidade" que possam  servir para avaliar os resultados obtidos pelos vários tipos de terapia.

No  caso especifico do Casal Ventoso, Carlos Fugas
critica severamente os programas  que tem sido implementados, e que na sua opinião ignoram claramente a realidade  vivida pelos toxicodependentes envolvidos.

Ha  dias li um artigo no New York Times Magazine sobre OxyContin®. Receitada como um  analgésico, está a transformar-se rapidamente num dos novos narcóticos mais  procurados nas zonas rurais dos Estados Unidos. Curiosamente, ainda não atraiu a  atenção da
"Guerra a Droga" Americana, guerra essa que tem custado milhares de  milhões mas que continua a não ter grande sucesso. Quem sabe se, numa próxima  edição deste livro, este analgésico não venha a ocupar vários  parágrafos.

Esta  colecção de contribuições vem preencher um espaço quase vazio na literatura em  língua portuguesa dirigida para um publico que não é especializado na matéria.  Imagino que muito do que aqui é dito será controverso. Ainda bem! Espero que  ajude no debate que estas questões merecem. Desculpar-me-ão aqueles que me  consideram com um aprendiz nestes domínios, ao afirmar que numa área em que  existem tantas opiniões e tão pouco conhecimento, o debate publico será sempre  útil, mas que esse debate nunca poderá substituir o enorme déficit de  investigação que todos sentem nesta área.

Num domínio que causa tanta  frustração, e em que frequentemente são feitas tantas generalizações inúteis,  somos levados a concluir que
uma atitude mais pragmática será indubitavelmente a  única a fornecer os dados experimentais que nos possam ajudar a formular  estratégias e políticas mais humanas e mais eficazes. O texto que se segue  certamente contribuirá para um tal projecto.


* Ex-Presidente da Comissão Nacional de Estratégia de Luta  Contra a Droga.

A Pedra e o Charco. Sobre o Conhecimento e Intervenção nas Drogas
INTRODUÇÃO
A "Pedra" e o "Charco" ou por Detrás do Narco-Íris.
Nuno Torres e João Paulo Ribeiro
Existe uma velha história chinesa segundo a qual um grupo de cegos encontra um objecto misterioso. Cada cego agarra uma parte do objecto e diz do que se trata. Um diz que é uma coluna, outro diz que é um cavalo, outro diz que é um barco, outro diz que é outra coisa, e por aí fora. Reza a lenda que afinal esse objecto era um elefante.
Esta história ilustra bem a falácia comum da racionalidade analítica em variadíssimos problemas sociais, e muito particularmente na "droga".  Tal como os cegos da história não conseguiram vislumbrar o elefante no seu todo, também não foram capazes de identificar correctamente as partes do objecto no seu contexto, criando imagens ilusórias de objectos totais. Deste modo, cada área de especialidade "agarra" uma parte distinta do "animal" e, sem comunicação entre si, acaba por não conseguir ter uma ideia do todo. Por isso é normal ouvir versões tão diferentes do "animal", e soluções tão diferentes para o controlar.  Pensa-se que ele, por mais complexo e difícil de enfrentar que seja, pode ser resumido a um reduccionismo que distorce a visão da realidade. O facto é que, enquanto visões de objecto parcial, as soluções acabam por se tornar inadvertidamente noutros problemas.(...)
(...)Até ao final do século anterior houve um pólo unificador ao nível das atitudes: a ênfase na redução da procura de drogas, concertada (ou mesmo conluiada) aos níveis legal, médico e psicossocial, alicerçada que estava no a priori proibicionista e na simbólica do interdito radical. Presentemente o tabuleiro mudou; a ênfase na redução de riscos[1] do consumo de drogas faz descalçar pilares de práticas e esquemas de pensamento que estão automatizados, apesar de questionáveis em termos de eficácia, e catalisa contradições e novos questionamentos teóricos, práticos e éticos, que se encontravam anestesiados pelo anterior paradigma. Por isso tivemos a ideia de fazer este livro; o objectivo chave é contribuir para a obtenção de uma imagem mais realista do "animal" em movimento, juntando no mesmo volume especialistas de um espectro amplo de áreas pertinentes, que vão da farmacologia à política, passando pela reabilitação, investigação, sociologia, direito e economia.
Algumas considerações sobre a "droga" como objecto-total
De facto, o fenómeno toxicodependente tal como o conhecemos nas sociedades ocidentais e em Portugal, é um problema que pode e deve ser pensado como simultaneamente macro-social, de grupo e individual, cada um dos níveis requerendo soluções e tratamento específico, de forma integrada. Nele se encontram factores individuais, familiares, económicos, políticos e civilizacionais. Tecemos em seguida algumas considerações, que são hipóteses de trabalho para a exploração do enigma da droga enquanto objecto-total, algumas das quais são inspiradas e/ou exploradas nos capítulos seguintes do livro, enquanto outras relevam de linhas de trabalho e reflexão que temos desenvolvido e se encontram em fase de maturação. (...)
[1] Redução de riscos, tradução de harmreduction, também denominada por alguns autores como redução ou minimização de danos, é um termo introduzido na Holanda em 1981 numa publicação da Secretaria de Estado para a Protecção da Saúde e do Meio Ambiente. A origem no entanto, remonta a 1972 quando o Comité de Narcóticos concluiu que as premissas da política de drogas deveriam ser congruentes com os riscos decorrentes do uso de drogas (Marlatt, 1999, Redução de Danos. Estratégias Práticas para Lidar com Comportamentos de Risco. Porto Alegre: Artes Médicas).
Alguns excertos dos capitulos
   Resumo: Este livro apresenta uma visão global e multidisciplinar sobre o problema do consumo de drogas, incluindo o álcool e as novas drogas, em Portugal e no mundo, juntando pela primeira vez conceituados especialistas de  áreas que vão da farmacologia à política, passando pela reabilitação, investigação, sociologia, direito e economia.  
1. Droga de Prisão
António Pedro Dores
  A partir do final dos anos sessenta, em todo o mundo ocidental, as transformações dos modos de viver tornou-os mais dificilmente compagináveis com "costumes sociais" e "caracteres pessoais" estereotipados. Os dogmas legais e os preconceitos dos Juizes tornaram-se estreitos perante a variedade de possibilidades que as sociedades actuais oferecem à iniciativa dos seus cidadãos. As referências éticas, estéticas e políticas tornam-se mais difusas e confusas. O relativismo inunda a sociedade e a consciência dos Juizes[1]. A Justiça, de um só golpe, passa a exigir mais competências e tempo de ponderação dos Juizes e a ser alvo de recurso legítimo de maior número cidadãos[2]. Numa palavra: a Justiça é cada vez mais procurada no sistema judicial sem que este último estivesse (ou esteja) preparado para cumprir com a sua função na escala em que lhe é pedido nem com as soluções mais justas. Por isso se diz que a justiça está em crise e os próprios responsáveis do estado reconhecem que a justiça é injusta.
Um dos factores mais perturbadores da execução da Justiça é a "Droga". O estado decidiu atribuir ao sistema judicial a responsabilidade de dirigir o combate ao tráfico, que assim se tornou um dos seus principais "clientes" a nível dos juízos penais. Calcula-se que 70% dos presos em Portugal estejam nessa situação devido a crimes relacionados directa ou indirectamente com o tráfico. Um número semelhante é apontado pelo Provedor de Justiça, no seu relatório de 1999 sobre as prisões, como correspondendo a presos consumidores de drogas dentro das cadeias.(...)
(...) As prisões acolhem o odioso da incapacidade do sistema judicial e policial para evitarem o grande tráfico de droga, calculado como desenvolvendo interesses financeiros à razão de 10% da economia, face ao que a abolição de tal volume de negócios constituiria um forte factor de instabilidade económica global. As prisões acolhem algumas das vítimas da proliferação dos mercados das drogas, transformando-as em bodes expiatórios da boa consciência social, sem que o problema deixe de se tornar cada vez mais grave e corruptor, não só da juventude  que por ser socialmente mais frágil está mais representada na prisão  mas também dos poderes e dos poderosos.
O que é a prisão?
As prisões portuguesas são herdeiras directas do Tarrafal, que passaram incólumes para a Democracia, i.e. desde dos anos 30 que não se repensou o sistema prisional e desde os anos 60 que nele se deixou de investir, pela excelente razão de se registar nessa altura, até meados da década de setenta, uma queda sustentada do número de reclusos. Com o fim da ditadura, não há agora presos políticos. Há é muita juventude vítima do flagelo da política proibicionista levada a cabo a nível global, entregue aos cuidados do sistema prisional, despojo do antigo regime e despojado, ele próprio, de recursos materiais e, sobretudo, humanos qualificados e emocionalmente equilibrados. O sistema prisional é, hoje em dia, um armazém de despojos humanos da guerra contra a droga. (...)

[1] Na cultura e na ciência chama-se pós-modernismo a este fenómeno complexo. A sociologia clássica, com Durkheim, mostra como a consciência social se impõe aos indivíduos e também aos cidadãos que cada vez mais procuram dirimir na instituição judicial questões que não sabem resolver livremente entre si.
[2] Não só o alargamento da formação escolar faz com que os direitos sejam mais conhecidos dos cidadãos, como a turbulência socio-económica faz com que as práticas inovadoras sejam motivo da resistência de uns e de oportunismo de outros. À medida que a violência directa vai sendo expulsa do repertório de práticas socialmente aceitáveis, a desigualdade social é admitida como resultado normal da competição e o recurso à Justiça passa a ser a forma mais civilizada de encetar as lutas sociais, mesmo se em campo minado por procedimentos burocratizados.

(...)
Em Fevereiro de 1998, pouco tempo depois da substituição do Ministro Jorge Coelho pelo Ministro José Sócrates na responsabilidade pela área da toxicodependência foi nomeada a Comissão para a Estratégia Nacional de Combate à Droga, com a incumbência de "propor ao Governo uma estratégia nacional de combate à droga de que constem as orientações fundamentais da política relativa à droga e à toxicodependência, nos diversos domínios, nomeadamente em matéria de prevenção primária, tratamento, reinserção social, formação e investigação, bem como de redução de riscos e de combate ao tráfico."Esta Comissão foi presidida, como já foi dito, por Alexandre Quintanilha.(...)
(...)
A lei aprovada[1] contém os seguintes traços principais:
 A aquisição e detenção de droga para consumo próprio deixa de ser crime, sendo revogadas as disposições da "lei da droga" que dispunham nesse sentido. Porém, a detenção de droga que exceda a quantidade necessária para dez dias de consumo médio individual não se considera para consumo próprio.
 O consumo continua a ser proibido, não havendo qualquer liberalização. As autoridades policiais identificam os consumidores e apresentam-nos a uma "Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência", junto dos governos civis e da responsabilidade do Instituto Português da Droga e da Toxicodependência, que aplicará sanções, nos seguintes termos:
 - Se o consumidor solicitar a assistência de serviços de saúde, não se aplica qualquer sanção.
- A Comissão ouve o consumidor e avalia a sua situação, com apoio médico (que pode ser indicado pelo próprio). Se se tratar de um primeiro processo e caso o consumidor não seja toxicodependente, ou sendo toxicodependente aceitar submeter-se a tratamento, a comissão suspende-o. Neste último caso, o processo pode ser suspenso mesmo que tenha havido antecedentes. A suspensão é controlada, com informação regular dos serviços de saúde à Comissão, e pode ir até 2 anos, prorrogável por mais um.
 - Se o processo prosseguir, ainda pode ser suspensa a determinação da sanção se o consumidor, sendo toxicodependente, aceitar sujeitar-se a tratamento. A suspensão é controlada e pode durar até 3 anos. Se o consumidor não cumprir o tratamento, a sanção é aplicada.
 - As sanções aplicáveis são as seguintes: a) Para os não toxicodependentes, coima, ou sanção não pecuniária, em alternativa; b) Para os toxicodependentes, sanção não pecuniária.
As sanções não pecuniárias podem ser as seguintes: Admoestação, ou a) Proibição de exercício de actividade que comporte riscos para o próprio ou para terceiros; b) interdição da frequência de certos lugares; c) proibição de acompanhar, alojar ou receber certas pessoas; d) interdição de ausência para o estrangeiro sem autorização; e) apresentação periódica em local a designar; f) proibição de uso e porte de arma; g) apreensão de objectos que comportem riscos; h) privação da gestão de subsídios atribuídos a título pessoal. O consumidor pode preferir, como sanção alternativa, a prestação de serviços gratuitos à comunidade ou a atribuição de um donativo a uma instituição de solidariedade social. Depois de determinada a sanção, a sua execução ainda pode ser suspensa, mediante a aceitação voluntária de algumas das regras de conduta acima referidas e de um regime de apresentação periódica perante serviços de saúde. A duração das sanções terá um período mínimo de um mês e máximo de 3 anos.
A Lei n.º 30/2000 corresponde a uma nova abordagem no tratamento legal dos consumidores de drogas que, pela primeira vez são realmente encarados não como criminosos mas como cidadãos que carecem de apoio com vista à superação da situação dramática em que se encontram. (...)

[1] Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro.
2. As políticas  de luta contra a droga (1980-2001).

António Filipe
(...) Os Estados estão ligados às questões relacionadas com as drogas. As de carácter legal estão reguladas por eles e são fonte de rendimentos, empregos e receitas fiscais. As ilegais representam uma ameaça constante para a integridade nacional e para o desenvolvimento económico e social, dadas as consequências de perda de produtividade da população e do crescimento dos custos médicos, por exemplo, e dado também o poder económico e político de que desfrutam as organizações criminosas a elas associadas. Em consequência destas razões, adquire importância o conhecimento aprofundado por parte dos Estados nacionais dos variados aspectos do fenómeno da droga.
Muitos são os estudos que abordam o fenómeno, sobretudo ao nível do consumo, na sua incidência social, médica ou psicológica, bem como nos comportamentos. Mas raros são aqueles que assentam na visão do custo inerente a tal fenómeno. Depois do trabalho pioneiro de Pierre Kopp, referente ao caso francês, existem poucos estudos desta índole[1]. O entendimento da forma como os recursos públicos limitados são utilizados é, ou pelo menos deveria ser, uma das preocupações dos que tomam as decisões no Estado[2]. Na aplicação do dinheiro é fundamental conseguir uma acção o mais eficiente possível, com um mínimo de desperdício, uma vez que os fundos são escassos.
Custo do consumo de drogas.-
(...)
Esta noção de custo da droga respeita aquilo a que convencionou chamar-se
custo social da droga, que resulta essencialmente de três aspectos. Por um lado, das despesas privadas, ou seja, o conjunto das despesas levadas a efeito pelos consumidores de droga na sua aquisição. Por outro lado, da despesa pública em objectivos de prevenção, tratamento ou repressão. Por fim, dos custos externos, isto é, das despesas indirectas que se prendem, por exemplo, com a perda de produtividade, o absentismo ou as mortes prematuras[3].
O custo social e económico da produção de drogas reflecte-se nas nefastas consequências em termos da ausência de criação de riqueza e cultura. Está em causa a capacidade de desenvolvimento económico e a própria estabilidade política. Um toxicómano não pode realizar as suas potencialidades como ser humano e agrega com isto um outro obstáculo ao desenvolvimento da sociedade a que pertence. O custo social da toxico-dependência é um desvio no uso das infra-estruturas sociais, enquanto a produção ilegal de drogas constitui uma má utilização dos recursos humanos e naturais destinados a actividades produtivas e, por esta via, às bases do crescimento de longo prazo.
Como medida de eficácia da acção governamental, o critério dos custos corre o risco de ser um critério redutor, sobretudo se tomarmos em conta que a decisão política não é tomada apenas em base a juízos de optimização. Não se pretende limitar a política estatal à sua dimensão orçamental, o que se deseja é conhecer os contornos financeiros de um fenómeno que a todos afecta e que para ser abordado acarreta um determinado custo, com reflexões no dinheiro público.(...)

[1] KOPP, P, Le Coût de la Politique Publique de la Drogue (rapport. Não publicado), 1996. No caso português, ver Carlos Dinis, "Gastos Orçamentais do Estado Português em Matéria de Droga", Tese Mestrado em Desenvolvimento e Cooperação Internacional, ISEG-UTL, 1998. Muitas das nossas afirmações são tiradas de esse estudo, por nós orientado. Existiram dois projectos da U.E., nunca concretizados.... por razões de orçamento: do Robert Schuman Centre, Instituto Universitário Europeu, Florença, 1998 e do OEDT, Lisboa, 1999.
[2]Kopp, op. cit., 1996, p. 4.
[3]Kopp, op. cit., 1996, p. 5.
3. O  Quantitativo e o Qualitativo no Fenómeno da Droga e as Políticas do Estado.

René Tapia  Ormazábal
PREFACIO

Alexandre Quintanilha*
4. Droga, Lei  e  Saber  Abordagem Psico-criminal
Carlos Alberto Poiares
(...)
Enquanto fenómeno social, as drogas tornaram-se objecto de inúmeros discursos, por parte das instâncias de Poder, discursos esses que visam um maior controle relativamente a uma matéria que, com premência crescente, demonstra a ineficácia das políticas que têm sido desenhadas. Pelo lado do Saber, desde há muito que as drogas foram erigidas em objecto de abordagens científicas plurais, versando sobre vários domínios: o das substâncias, o do sujeito-transgressor (pelo acto de uso, proscrito pelas leis) e o dos contextos.
(...)
Ora, a droga revelou já que possui enorme capacidade de mobilidade e adaptação face aos esquemas de normalização, determinando a transformação dos sistemas punitivos e das estruturas do Saber (Da Agra, 1982-1986: 470). Com efeito, o uso de drogas é o átomo que se introduziu no corpo social e que produziu um sismo nos sistemas científico e normativo-jurídico, obrigando a repensar e reequacionar quer os saberes comportamentais quer a configuração ética da penalidade; a droga funcionou como o elemento desestruturador e perturbador das arquitecturas do Jurídico e do Saber. Esta desestruturação conduziu à ruptura desses sistemas, provocando o redimensionamento dos critérios de vigilância, de controle e do exercício da punibilidade, em direcção a uma formulação jurídico-psicossociológica, o que resulta do falhanço dos modelos importados da prevenção/repressão de outros comportamentos. Na verdade, a frequência com que os toxicodependentes realizam o périplo dos hospitais, comunidades terapêuticas e prisões, a uns e outros retornando, cedo ou tarde, num envio-reenvio interinstitucional, comprova a ausência de meios adequados de reacção. Está instalada a aporia e, seja no domínio das medidas legais e judiciais, seja no que toca às terapêuticas, «o campo do tratamento tornou-se pois baldio, está aberto a quem nele queira vir semear e ceifar o que bem entender...», como assinala Da Agra (1982: 544). Efectivamente, o uso de drogas tem assumido o estatuto de entidade reprogramadora da penalidade, através de sucessivas experiências destinadas a testar hipóteses que o Legislador e os técnicos da saúde e da justiça vão sistematicamente colocando.

(...)
5. O  Dilema das  Abordagens  à  Droga: Racionalidade  ou  Irracionalidade  ?

Eficacia:  Criterio  para  Determinar a  Abordagem mais  Adequada
JORGE DA SILVA RIBEIRO
(...)
9.1.     Dados e resultados da abordagem proibicionista em Portugal entre 1978 e 1994.
        Os dados e resultados da abordagem proibicionista adoptada, em Portugal, na luta contra a droga, entre 1978 e 1994, foram analisados e ajuizados em função das metas contenção/redução quer da oferta/tráfico, quer da procura/consumo. 
        (...)
        Os dados aqui citados foram publicados por órgãos oficiais governamentais.  A análise estatística aqui apresentada deriva de estudo realizado pelo autor[1], há 5 anos.  A contenção/redução constituirá a referência implícita do critério de eficácia, em todos os juízos sobre os eventos relativos a substâncias (controlo, investimento, etc.), indivíduos (no âmbito da Justiça: como traficantes, traficantes-consumidores ou consumidores, qualquer que seja a sua situação de presumíveis infractores, pronunciados, condenados, reclusos, absolvidos, amnistiados "; e no âmbito da Saúde, quando em tratamento, estando ou não afectados pelo vírus da SIDA), e mortes por overdose.
(...)
9.2.    A perspectiva da União Europeia face aos resultados dentro do quadro de actuação proibicionista
        No Relatório da Comissão das Liberdades Públicas e dos Assuntos Inter­nos sobre a comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Eu­ropeu relativa a um plano de acção da União Europeia em matéria de luta contra a droga (1995-1999), sobre a epígrafe EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS   Introdução, diz-se o seguinte, a págs. 33-34:
"O problema da droga continua a agravar-se implacavelmente de ano para ano[2].  Os cartéis internacionais da droga são cada vez mais agressivos e mais expansionistas no ataque a novos mercados com novas drogas, com métodos de distribuição em constante evolução e com uma habilidade cada vez maior para encobrir e transferir o dinheiro proveniente das vendas. Ainda mais importante é o facto de estarem a utilizar os seus importantes recursos para interferir nos processos democráticos e económicos de determinados países, exercendo influência na política e controlando sectores fundamentais da actividade empresarial e dos serviços financeiros.
Calcula-se que, actualmente, o valor anual das vendas na rua de drogas ilícitas ascenda a mais de 500.000 milhões de dólares.  Trata-se de um montante superior ao dos orçamentos nacionais de muitos países.
Assistimos, com uma frequência cada vez maior, à colaboração entre cartéis da droga e grupos terroristas que vendem droga para adquirir armas.  A estabilidade polí­tica, social e económica de determinadas nações é, por conseguinte, afectada pelo tráfico de droga.  As principais vítimas da droga são e continuarão a ser os jovens que se deixam seduzir pela droga e se tornam dependentes.  Contudo, embora à primeira vista a criminalidade de rua possa continuar a parecer a ameaça mais óbvia à nossa segurança quotidiana, é o alargamento constante do poder das grandes organizações criminosas, que contribuem para o crescimento do tráfico de droga, que constitui a principal ameaça do nosso tempo.
O tráfico internacional de droga está altamente organizado.  Os traficantes podem recrutar os melhores especialistas dos sectores jurídico, financeiro, logístico ou químico.  Utilizam os mais avançados equipamentos e tecnologias para produzir, transportar e distribuir droga e para os ajudar a branquear os lucros da sua actividade.  Os maiores traficantes de droga podem actualmente gerir e financiar toda a sua actividade sem entrar em contacto com a própria droga e, em muitos casos, graças às comunicações via satélite, vivem em iates ou em países nos quais a justiça nada pode fazer contra eles.  Continuam impunes,porque raramente podem ser associados a operações específicas de tráfico de droga ou, porque no sítio onde se encontram não é possível provar a sua culpa.  Graças à sua riqueza ilimitada, os barões da droga podem comprar a sua imunidade ou, caso isso não seja possível, recorrem à violência paraeliminar testemunhas que os podem incriminar.
É imparável o fluxo de heroína proveniente da Ásia, de cocaína da América do Sul, de cannabisdo Norte de África e de drogas sintéticas de bases europeias. As apreensões cada vez mais frequentes de droga, e em maiores quantidades, por parte dos serviços aduaneiros podem significar um maior êxito na descoberta de carregamentos de droga.  Contudo, muitas vezes estas apreensões constituem um indício de que o fluxo de droga está a aumentar. ["]  Se os preços forem baixos e a pureza elevada, as apreensões em grande escala confirmam, apenas, uma maior disponibilidade de droga.
No que se refere à lei e à ordem, observamos que as forças policiais e as autoridades aduaneiras cooperam na luta contra a droga de um modo muito mais eficaz do que há dez ou, mesmo, há cinco anos.  Contudo, ainda, não dispõem de equipamento adequado nem de pessoal suficiente.  ["]  Se não pudermos igualar-nos aos traficantes, em termos de equipamento técnico, electrónico e de análise química[3], continuaremos a lutar com um braço atado atrás das costas.

[1]   Ribeiro, Jorge da Silva (1996).  Análise e Interpretação de Dados sobre Oferta e Procura de Drogas sob Controlo em Portugal 1978-1994.  Lisboa, Ministério da Justiça, Gabinete de Planeamento e de Coordenação do Combate à Droga (não publicado).
[2]   Destaques da responsabilidade do autor.
[3]   De Portugal nunca foi enviado para as Nações Unidas, no contexto do Relatório Anual, o grau de pureza das drogas apreendidas.
     Aliás, conforme foi referido pelo Parlamento Europeu, em 1995: O êxito ou o fracasso das apreensões de droga efectuadas num país, apenas, pode ser verdadeiramente avaliado quando os factores preço e pureza da droga vendida na rua são acrescentados à equação.  Se os preços forem baixos e a pureza elevada, as apreensões em grande escala confirmam, apenas, uma maior disponibilidade de droga. [Cf.:Luta contra a Droga: Relatório da Comissão das Liberdades e dos Assuntos Internos sobre a comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu relativa a um  plano de acção da União Europeia em matéria de luta contra droga (1995-1999, p. 34)].
6. Droga, Liminaridade Social e Utilização de Ersatzs
Artur Valentim*
(...)
Em fins de 2000 foram aprovadas alterações à legislação da droga (Lei n.º 30/2000 de 29/11). Estas alterações mantiveram intangíveis as premissas e objectivos do regime proibicionista, mas reenquadraram a qualificação do "consumo, aquisição e detenção para consumo próprio" de droga na categoria sancionatória administrativa de "contra-ordenação", atribuindo a comissões técnico-burocráticas e ao dispositivo médico-terapêutico a missão penalizadora e normalizadora dos actores captados nesta condição. Estas alterações legais consagram o propósito político de promover uma mudança na integração hierárquica dos dispositivos de controle do regime, de forma a conferir preponderância a um estilo terapêutico de controle (Horwitz, 1990).
(...)
A METADONA[1] NA POLÍTICA DE CUIDADOS DA TOXICODEPENDÊNCIA
Em Portugal, durante os anos 90, assistiu-se à formação de um poder médico-terapêutico centralizado e de dominante psiquiátrica " o biopsicopoder da droga " que adquiriu uma importância crescente na definição e execução da política da droga (Valentim, 2000). Tal deveu-se ao deslocamento progressivo dos enunciados políticos sobre o controle social da droga para o espaço médico-sanitarista. Nesta medida, o biopsicopoder da droga pode reunir concentradamente a natureza estrutural do poder da medicina nas sociedades modernas com uma procuração política para o exercício da administração societária do problema da droga.
A política de saúde em relação à toxicodependência sempre foi pautada pela ideologia médico-terapêutica da abstinência, partilhada por este biopsicopoder. Esta constitui a aplicação no campo clínico dos princípios de erradicação/abstinência inscritos no interdito absoluto e transpõe-se numa doutrina de "cura" que fornece a orientação normativa a seguir em relação a esta "perturbação" (Solal, 1994). Sustenta esta perspectiva doutrinal ser a abstinência de droga um incontornável objectivo terapêutico, identitário da própria intervenção clínica (...)
(...)

[1]Eduíno Lopes é o responsável pela introdução em Portugal da metadona nos cuidados da heroinodependência. Médico psiquiatra e toxicoterapeuta, Eduíno Lopes formou-se nos Estados Unidos no início da década de 70 no período de lançamento e expansão dametadona como correctivo tecnológico para o "problema da droga" (Nelkin, 1973). Partilhando substancialmente as perspectivas e princípios que nortearam o trabalho de Vincent Dole e Marie Nyswander realizado nos EUA no início dos anos 60 e a partir do qual se afirmou e alicerçou a utilização da metadona como fármaco substitutivo, tais como (a) a definição da heroinodependência como "doença" (e mais especificamente como "doença crónica"), (b) a superioridade bioquímica deste narcótico que o legitimava como "medicamento", e (c) a sua eficácia na retenção e ressocialização dos heroinodependentes (Lopes, 1987 e 1998), Eduíno Lopes teve a oportunidade de implementar esta modalidade terapêutica quando fundou em 1978 o CEPD/Norte. Ao fazê-lo seguiu a normativa que regulava o uso deste narcótico nos EUA, mas a prática da administração do programa não colocou severas restrições ao seu acesso, e por outro lado veio a gerar a admissibilidade da utilização da metadona num regime de manutenção relativamente prolongado, antecipando o que veio a ser convencionalmente aceite e recomendado de forma generalizada em toda a Europa cerca de 10 anos depois, já na fase da mudança de atitude dos poderes sociais relativamente ao tratamento da toxicodependência em face da proliferação da epidemia da SIDA entre os consumidores de drogas injectáveis.
O CEPD/Norte constituiu um dos primeiros centros na Europa a utilizar metadona como fármaco substitutivo, o que foi possível devido à autonomia técnica e ao poder de auto-regulação que a profissão médica usufrui nas sociedades modernas. No entanto, quando a questão da droga passou para o topo da agenda política em meados dos anos 80 e emergiram, no interior da corporação médico-terapeutica da droga, soluções "técnicas" mais coerentes com os princípios do interdito absoluto da política proibicionista, o CEPD/Norte e o seu programa de metadona passaram a ser alvo de contestação e desqualificação por parte do biopsicopoder, processo que culminou com a destituição de Eduíno Lopes no início dos anos 90 do cargo de director daquele centro, no auge das campanhas contra a "mosca" e o conluio substitutivo.
7. INVESTIGAÇÃO EM TOXICODEPENDÊNCIAS E REDUÇÃO DE RISCOS EM PORTUGAL
Nuno Felix da Costa
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As políticas de redução de riscos ganharam relevo desde a pandemia do SIDA e provocaram uma substancial mudança de atitudes dentro do quadro das políticas mais ou menos abertamente proibicionistas vigentes, ao colocarem o Estado numa posição (discordante) de ter que conviver com os sectores ilegalizados. Estas medidas, inquestionavelmente benéficas no plano da saúde pública em que se inscrevem, introduzem alguma forma de legitimidade no comportamento de consumo de drogas, tornando inconsistente o objectivo político de exterminar as drogas da vida nacional (Guerra das Drogas nos EUA de Reagan). Pode ser argumentado cinicamente que as políticas não têm que ser consistentes ou justas, mas apenas que cumprir eficazmente os seus desideratos, contudo, parece que se ultrapassou o nível de inconsistência tolerável pelo sistema.
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            É frequentemente afirmado que, sendo Portugal um país de escassos recursos, a investigação não é uma prioridade. Propomo-nos defender a investigação como especialmente prioritária nos países menos abastados; são estes que devem avaliar muito bem os resultados dos dispêndios com as suas políticas. Percorreremos sucessivamente diversas áreas de carência de informação seleccionando alguns resultados da investigação, com destaque para a nacional.
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A proximidade dos casos dentro do seu quotidiano, os custos impostos, mas também uma indefinível atracção/repulsa por uma situação vincadamente estigmatizada elege-a tema mediático tratado de  formas sempre pouco sérias, apenas aproveitando a sua espectacularidade. Esta visibilidade torna a área apetecível para intervenções orientadas para dividendos políticos em termos de popularidade, mas não visando efeitos benéficos na redução dos custos e riscos da toxicodependência, situação que também explica o desinteresse pela investigação, no sentido de criar uma atitude de urgência de intervenção numa área em que a ignorância grassa, logo qualquer intervenção é melhor que nada, o que não é verdade.
11. A prevenção do consumo de drogas: teoria, investigação e prática
Jorge Negreiros
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No entanto, o domínio da prevenção do abuso de drogas parece viver, actualmente, uma situação algo paradoxal: por um lado, multiplicam-se as iniciativas e projectos que se reclamam da prevenção do abuso de drogas; por outro lado, são recorrentes as posições críticas em relação à prevenção, baseadas na constatação segundo a qual não está inequivocamente demonstrado que a aplicação de estratégias de prevenção tenha conduzido a uma diminuição da incidência e prevalência do uso de drogas.
Factores de risco e factores de protecção
Com efeito, um aspecto que pode ajudar a compreender o tipo de intervenções que estão habitualmente relacionadas com a prevenção do abuso de drogas baseia-se na distinção entre factores de risco e factores de protecção. São considerados factores de risco certas situações, circunstâncias ou características individuais que estão associadas a uma maior probabilidade de consumir drogas. Pelo contrário, os factores individuais e sociais que reduzem a probabilidade de consumo de drogas, designam-se "factores de protecção".
Diversos estudos, conduzidos ao longo dos últimos 20 anos, permitiram identificar uma série de factores de risco em relação ao abuso de drogas. Os factores de risco envolvem interrelações entre dimensões da personalidade e influências do contexto social.
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Estratégias universais, selectivas e indicadas
É também com base no reconhecimento de que os destinatários das acções de prevenção podem apresentar diferentes tipos e níveis de risco de consumo de drogas que, recentemente (Institute of Medicine, 1994), se estabeleceu uma classificação das intervenções preventivas que toma como referência os diferentes grupos-alvo dessas intervenções. Tal classificação inclui descreve três modalidades distintas de estratégias: a) estratégias universais; b) estratégias selectivas e; c) estratégias indicadas.
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Princípios da prevenção do abuso de drogas
Duas décadas de investigação sobre a prevenção do abuso de drogas tornaram possível individualizar um conjunto de princípios básicos que caracterizam as "boas práticas" nesta área. De facto, embora as intervenções preventivas tenham conduzido a resultados inconsistentes no que se refere à capacidade de modificar o abuso de drogas ou outros comportamentos desviantes, ao longo das últimas duas décadas, tem vindo a ser acumulado um vasto manancial de conhecimentos, originários da investigação teórica e empírica É esse conjunto de factores, susceptíveis de conferir às intervenções preventivas uma maior eficácia, que procuraremos enunciar de seguida.
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2. As abordagens baseadas no conceito de "competências de vida" e nos modelos de influência social parecem ser as mais promissoras
Uma das características do tem sido designado por "3º geração da investigação e prática na prevenção" (Botvin e Rosenbury, 1989), traduz-se na elaboração de programas complexos, compostos por unidades específicas mas integradas. Esses programas incluem, assim, para além de uma componente de informação sobre drogas, um conjunto de outras unidades relativamente independentes às quais estão igualmente associadas técnicas e resultados específicos.
8. Neurofarmacologia das Adições
Mário David
Todas as funções que ocorrem no cérebro, tal como, o mecanismo aditivo a substâncias exógenas (Adição), envolvem a comunicação entre os neurónios cerebrais. Cada neurónio conecta com centenas ou milhares de neurónios adjacentes, através de mensagens transportadas por substâncias químicas chamadas neurotransmissores que atravessam as sinapses interneuronais. Já se conhecem cerca de 100 diferentes neurotransmissores , dos quais, cada neurónio liberta somente um ou alguns tipos.
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Alguns estudos laboratoriais recentes revelaram que as substâncias aditivas funcionam, como reforços positivos, ao nível neuronal, nos mesmos sistemas cerebrais que normalmente medeiam as acções dos reforços naturais, tais como: a comida, a água e a interacção sexual.
A Cocaína é uma substância que é extraída das folhas da planta denominada Erythroxylum Coca, possuindo efeitos estimulantes e euforizantes no Sistema Nervoso Central, e cujo efeito psicológico principal é um estado de imediata euforia, com a desinibição psicológica e motora, a elevação da auto-estima e um aparente aumento das performances físicas e psíquicas. Quando esta é aplicada topicamente, esta droga tem efeitos vasoconstritores e anestésicos locais.
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Situações Especiais de Tratamento (Adições Mistas)
        A) No tratamento de situações de duplo abuso de Opiáceos-Cocaína (Adições Mistas), têm sido referidos o uso de dois tipos de abordagem farmacológica:
1) o ajustamento da dose de metadona[1]..
 Um factor significativo na previsão para a diminuição do uso de cocaína em Heroinómanos é o tempo de permanência nos programas de substituição, quanto maior, maior a redução nos consumos de ambas as substâncias.
2) autilização de medicação Opióide alternativa. Pelo que tem sido mencionada que a utilização de Buprenorfina, um agonista parcial, em doses altas (12-16mg/diários), também reduz a frequência do uso de cocaína nos Heroinómanos (Schottenfeld et al.,1993).
        B) Também se sabe que o Alcoolismoé um problema muito comum entre cocainómanos, tanto na comunidade, como nas populações em tratamento, com altas taxas de co-morbilidade que podem atingir valores até 90% (Gorelick,1992). A sua evolução clínica é pior, devido a uma variedade de factores tais como a estimulação do desejo de cocaína induzido pelo álcool, a indução da produção do Cocaetileno, um metabolito tóxico e psicoactivo, e as alterações do metabolismo dos medicamentos pelas alterações da função hepática (Gorelick,1992; Carroll et al.,1993)
(...)
As anfetaminas, e em particular as metanfetaminas, têm uma duração de acção maior pois a maioria daquelas substancias permanece no corpo, sem alterações, pelo que originam maiores e mais prolongados efeitos estimulantes, ao contrário da cocaína que é rapidamente eliminada e quase totalmente metabolizada no corpo.
Elas dão origem a uma sensação de euforia, ao fim de alguns minutos (3 a 5 minutos), se for utilizada por via inalada, e ao fim de 15 a 20 minutos, se usada por via oral.
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O Extasy ou MDMA
        Não irei descrevê-las em detalhe, mas talvez seja interessante fazer algumas referências ao MDMA ou Exctasy por ser a droga actualmente mais abusada deste grupo.
Ela foi sintetizada em 1912 e registada em 1914, como anorexígeno. Trata-se de uma substância com características anfetamínicas e alucinogénicas, em doses elevadas e com o seu uso prolongado, mas não produzindo alucinações visuais, como a mescalina ou o LSD.
Em doses baixas, o MDMAprovoca um aumento da sensibilidade ao tacto e à audição, uma secura de boca, uma falta de apetite, uma sensação de calma e de serenidade, com uma aparente maior aproximação emocional. Os seus efeitos duram cerca de 2 ou mais horas, dependendo da dose, da personalidade do utilizador e do ambiente. Não provoca dependência física, mas psicológica. Com o seu uso regular é necessário o aumento das doses para obtenção dos mesmos efeitos, por causa do efeito da tolerânciafarmacológica. Em doses elevadas, podem então surgir ataques de pânico, crises de insónia, confusão mental, depressão, náuseas, tonturas, crises hipertensivas e possíveis paragens cardíacas.
(...)
Os tratamentos mais efectivos contra a adição às anfetaminas/ metanfetaminas, são as intervenções cognitivas sobre o comportamento. Estes métodos estão desenhados para ajudar a modificar a forma de pensar, as expectativas e a conduta do paciente, a fim de aumentar a sua capacidade de fazer frente aos factores estressantes da vida. Os grupos de entre-ajuda, de apoio e de recuperação psicológica, parecem funcionar com melhores resultados quando usados em conjunto, com as intervenções cognitivas (NIDA, Serie De Reports, 2000).

[1]Num estudo controlado (Borg et al.,1995) observou-se que os consumos de cocaína tinham diminuído de 80% para 20%, nos indivíduos submetidos ao aumento das doses de metadona administrada. As doses superiores a 60 mg/dia estão geralmente associadas não só à baixa do uso de opiáceos, como da cocaína, se bem que algumas excepções têm sido referidas (Grabowski et al.,1993).
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9. Casal Ventoso: A Desértica do Plano
Carlos Fugas
A intervenção no Casal Ventoso, bairro muito (mal) afamado do nosso jardim à beira mar plantado, tem-se caracterizado por desentendimentos e infortúnios vários, muitas controvérsias, sobretudo ao nível das ideias e aproveitamento para todos os sabores.
O tráfico da droga tinha-se implantado no bairro, praticamente desde o 25 de Abril, embora o seu carácter tenha mudado ao longo do tempo[1] e terá sido em 1996 que se tornou evidente a vontade de reconverter o bairro.
(...)
O sintoma mais evidente e óbvio da tendência referida para a acção irreflectida, é a quase total ausência de estudos prévios, ou mesmo paralelos, a todos os programas iniciados pelo Gabinete de Reconversão. Não houve estudos, inquéritos, etc, para o lançamento do Gabinete de Apoio da Câmara Municipal de Lisboa, para o programa da metadona, para o Centro de Abrigo, para o Centro de Acolhimento e não haverá, promovido pela Câmara Municipal de Lisboa, ou qualquer outra entidade pública, um ou vários estudos que fundamentem as Casas de Injecção Assistida, ao que tudo indica[2].
A arrogância, patente na decisão de prescindir dos estudos e inquéritos, tem-se feito sentir em várias áreas do combate à droga, com os responsáveis portugueses a desconsiderarem os dados do relatório oficial da OEDT 2000, ou a meterem na gaveta inquéritos[3], cujos dados são desfavoráveis à cavalgada vitoriana prevista e antecipada para extinguir o país do novo mal radical, a droga.
(...)
Se não formos capazes de mobilizar a capacidade de pensar dos toxicodependentes, isto é, de os envolvermos como parte da solução, tornando-os parceiros de intervenção, não estamos a afastá-los, criando ainda maior distância entre mundos, separando ainda mais o "mundo deles" da cidade normal ?
O Gabinete de Reconversão e Ares-do-Pinhal têm adoptado um modelo prescritivo[4], por oposição ao modelo participativo defendido e aplicado pelas equipas de rua, os "amarelos".
O Quadro 1 compara as duas formas de intervir e a nosso ver é bastante ilustrativo das diferenças de ideias e concepções existentes.
Resumindo, a tese de Nuno Miguel, Luís Patrício e Cipriano de Oliveira é a de que criaram um modelo de intervenção e ajuda no Casal Ventoso tão perfeito e imune à crítica, que qualquer remoque, mesmo pequeno, é imediatamente produto de mentes mal-intencionadas. Esta hipersensibilidade à crítica e ao debate (tão normal em democracia) é reveladora de uma intolerância extrema a qualquer frustração e tende a suscitar uma atmosfera de "estado de sítio".
(...)
Fazendo o ponto da situação do tipo de consumo no bairro e recolhendo uma amostra de 205 questionários válidos, verificou-se que cerca de 65% dos utilizadores fazem poli-consumos de heroína e cocaína, sendo que a maioria dos utilizadores que apenas consomem heroína vivem fora do bairro (80%) e a maioria dos consumidores exclusivos de cocaína vive no bairro (59%), ou seja, indivíduos não oriundos do bairro mas aí ligados pelo consumo da substância. Segundo Nuno Torres, o aumento da cocaína ?pode ser visto como uma estratégia dos traficantes para manter os lucros que perderam para os laboratórios produtores de metadona e Laam?[5].
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Apesar da referência epistolar a um "princípio de descentralização" por parte do Dr. Vitalino Canas, na introdução ao diploma posto a discussão pública no início de Fevereiro de 2001, na sua redacção o documento enferma dos vícios centralizadores que têm marcado o combate à droga em Portugal.
A aplicação dos programas de metadona tem dependido do SPTT[9] e assim continua, ao que tudo indica. Assim, podemos ler ?A decisão de instalação de um programa de substituição em baixo limiar cabe ao SPTT?. Digamos que este serviço actua como intermediário entre os laboratórios que produzem metadona e a sua distribuição pelos programas. Portanto, quem domina o SPTT, domina a aplicação da metadona em Portugal. A isto chama o Dr. Vitalino Canas de "princípio de descentralização" !!?

[1] Ver a este propósito o testemunho de um traficante recolhido pela jornalista Graça Rosendo, na revista do semanário Expresso de 11-12-1999, p. 52-59
[2] O primeiro estudo para a implementação de uma Casa de Injecção Assistida foi recentemente realizado pelas Equipas de Rua (os ?amarelos?), tendo sido objecto de apresentação no Congresso ?Droga: É Tempo de Mudança?, realizado em 25 e 26 de Maio, na Universidade Independente, em Lisboa e trata-se de uma iniciativa privada
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CONCEITO DE AUTO-AJUDA
Os AA - Alcoólicos Anónimos(1976)  definem-se como uma comunidade de homens e mulheres que partilham entre si a sua experiência, força e esperança para resolverem o seu problema comum e ajudarem outros a recuperarem-se do alcoolismo. O único requisito para se ser membro é o desejo de parar de beber. Para se ser membro de AA não é necessário pagar taxas de admissão nem quotas. O AA não está ligado a nenhuma seita, religião, instituição política ou organização; não se envolve em qualquer controvérsia, não subscreve nem combate quaisquer causas.
Os NA - Narcóticos Anónimos(1991)e os outros grupos de auto-ajuda incluindo os Al-Anon e FA definem-se de modo semelhante e aplicam os mesmos princípios e procedimentos que os AA. Criaram a sua literatura e tem individualidade e personalidade organizacional própria.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (1994)os grupos de auto-ajuda são definidos como grupos em que os participantes se apoiam uns aos outros no processo de recuperação da dependência do álcool, outras drogas, de problemas associados ao consumo, ou dos efeitos de outras dependências, sem hierarquia ou orientação profissional.
São exemplo de grupos de auto-ajuda de 12 passos: AA - Alcoólicos Anónimos,  NA- Narcóticos Anónimos, Al-Anon - Familiares e amigos de alcoólicos e FA - Familiares e amigos de toxicodependentes
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Os grupos de auto ajuda como instrumentos de recuperação
Dois autores chave para estudo e compreensão da problemática do álcool, Jellineck (1960) em The Disease Concept of Alcoolism  e Vaillant[1] (1999) em A História Natural do Alcoolismo Revisitada, consideram decisivo o contributo dos Alcoólicos Anónimos para compreensão da doença, bem como a sua utilidade na recuperação das pessoas com problemas com o álcool.
A bibliografia na área da adicção de língua inglesa, na generalidade, considera ser útil ou muito útil a frequência das reuniões dos grupos de auto-ajuda de AA/NA pelas pessoas em recuperação. A literatura científica em língua francesa, com excepção do Québec, pouco fala dos grupos de auto-ajuda. Em Portugal as referências bibliográficas também são escassas ou mesmo marginais pois só agora começa a existir uma cultura científica do movimento de auto-ajuda.
Também as recomendações da OMS (1995) consideram não se poder discutir os problemas do álcool sem incluir os AA.
Nos tratados de medicina interna (Harrison, 1991e Cecil, 1988) e de psiquiatria geral (Kaplan & Sadocks) recomenda-se o envio das pessoas com problemas de álcool ou outras drogas aos grupos de auto-ajuda. Mais especificamente na área do tratamento do alcoolismo ou da medicina de adicção (Gitlow1991, Galanter 1994, Lowinson 1997,Schuckit1998, e a ASAM[2] 1994) ou da psiquiatria de adicção (Miller1994) é fortemente recomendada a inclusão da frequência dos grupos de auto-ajuda no programa de tratamento.
Por exemplo, Edwards (1987) em "O Tratamento do Alcoolismo" dedica o capítulo 15 aos Alcoólicos Anónimos, e refere: "Pode haver exagero nas alegações de sucesso e universalidade dos AA e seu conceito de doença pode estar em desacordo com o modelo empregado por alguns terapeutas. Mas não há dúvida de que, além do benefício directo que os AA proporcionam a muitos bebedores, também têm muito a ensinar ao terapeuta a respeito dos processos que ajudam e influenciam a recuperação. Há toda uma sabedoria que pode ser obtida junto aos AA".
Marlatt & Gordon (1985), que com a Prevenção da Recaída revolucionaram a componente profissional do tratamento do alcoolismo na década de 80, embora críticos do modelo de doença, não excluem a utilidade da frequência das reuniões de AA.
(...)
Modelo Minnesota
A outra forma de considerarmos os grupos de auto-ajuda é integrá-los formalmente[3] no programa de recuperação. O modelo Minnesota integra os AA/NA no tratamento. Alguns autores consideram que o  tratamento com mais sucesso para a dependência química é o que combina os princípios e programa de 12 passos de Alcoólicos Anónimos com aconselhamento e terapia profissional (Gorski 1986, Carrillho 1987). Para alguns pacientes, a frequência dos grupos de auto-ajuda e a intervenção profissional funcionam sinérgicamente. Os AA/NA ajudam a atingir a abstinência, e a psicoterapia e aconselhamento ajudam a lidar com problemas psicológicos e interpessoais que causam desconforto e stress (Kaplan e Sadock)

[1] Vaillant esteve em Portugal em 2000 e proferiu um palestra sobre o papel dos grupos de auto-ajuda na recuperação.
[2]American Society of Addiction Medicine - Principles of Addiction Medicine, 1994, Chevy Chase Maryland, 1994
[3] Despacho n.º 13 043/2000 do Gabinete do Secretário de Estado da Defesa Nacional, de 6 de Junho de 2000, Diário da República, II Série n.º 146 ? 27 de Junho de 2000.  Diz. "Em 1987, provisoriamente no Hospital da Marinha, planifica-se uma unidade de reabilitação biopsicossocial que introduz pioneiramente em Portugal o modelo Minnesota e inicia o seu funcionamento, em Janeiro de 1993 a Unidade de Tratamento Intensivo de Toxicodependências e Alcoolismo, Serviço de Utilização Comum das Forças Armadas (UTITA)".

10.  
Programas de Doze  Passos.  

Francisco Henriques
As doenças aditivas (toxicodependências e alcoolismo) são diferentes das clássicas, porque são doenças de abuso e não de carência.
De facto, a ciência médica e as profissões associadas têm-se baseado essencialmente no paradigma assistencial do dar, do prover assistência medicamentosa e social a pessoas carenciadas.
Se é verdade que este paradigma funciona para a maioria das doenças psíquicas, falha lamentavelmente nas patologias de abuso, seja ele o abuso de álcool e drogas, ou psicossocial (as chamadas personalidades anti-sociais).
(...)
O conceito de alexitimia e a matriz genética
Um dos erros mais graves de alguma psicologia é aplicar a toda a gente e a todas as formas de patologia o mesmo figurino etiológico e terapêutico: caricaturando, afirmaríamos que todas as pessoas com sofrimento psíquico foram vítimas de traumatismos na infância e tratam-se todas com a mesma forma de terapia. Isto equivale a um certo totalitarismo ideológico sobre os pacientes, passando a defesa dos seus interesses a ser secundária em relação à própria propagação de uma determinada ideologia terapêutica.
(...)
Introdução de conceitos novos no tratamento
O paradigma de tratamento destes casos deve ser, portanto, radicalmente oposto ao das doenças clássicas. Implica retirar: retirar as substâncias de que a pessoa abusava anteriormente, em vez de dar; retirar liberdade excessiva fornecendo limites, retirar privilégios imerecidos fomentando autocrítica e humildade.
Implica a noção de normatividade, de economia de meios, de resiliência e de subsidariedade: não avançar com terapêuticas complicadas quando as mais simples podem funcionar;
(...)
Quando, em 1985, começámos a tratar toxicodependentes, usávamos uma orientação psicanalítica, que tivemos de modificar e adaptar profundamente.
Para isso, importámos, adoptámos, criámos e combinámos as seguintes metodologias de intervenção:
Dimensão
Efeito
Comunidades Terapêuticas estruturadas
- Possibilidade de intervenção psicoterapêutica em   doentes alexitímicos
- Modificação estável de traços patológicos das   suas personalidades
Psicoterapia emocional
- Redução dos efeitos da alexitimia (Casriel, 1988)
- Superação da culpa inconsciente   (neurótica)
Centragem na família e recurso a   medicamentos antagonistas/
/aversivos (TCE em ambulatório)
- Prevenir faltas e atrasos nas consultas
- Obter informações de confiança
- Conseguir uma matriz terapêutica familiar
- Aumentar o poder terapêutico e diminuir as   recaídas
- Acelerar a maturação do/a jovem
- Trabalhar com economia de meios (consultas   curtas e 1, ou no máximo 2 terapeutas)
- Conseguir uma matriz terapêutica onde possam   inserir-se tratamentos mais específicos
12 passos
- Autocrítica e humildade saudáveis
- Espiritualidade
- descentração do egocentrismo
- Conseguir a intervenção de um grupo de   suporte
- Redução dos efeitos da   alexitimia
Desenvolvemos um conceito um pouco herético para a época: Combinar diversas formas de intervenção, de um modo adequado a cada caso e algumas feitas pelo mesmo terapeuta (por exemplo: fazer abordagem familiar, dar medicação e ao mesmo tempo fazer uma psicoterapia-aconselhamento individual breve. Outro exemplo: aceitar reuniões de tipo 12 passos em comunidades terapêuticas hierarquizadas).
Como paradigma medicamentoso recusámo-nos a utilizar benzodiazepinas para controlar estados crónicos de ansiedade e tensão e utilizámos frequentemente, entre outros, e sempre com o consentimento escrito do paciente, medicamentos antagonistas (naltrexone para o caso da heroína, dissulfiram para o caso do álcool e outros, diversos, contra a cocaína).
(...)
Um outro passo que sempre fizemos questão de desenvolver foi a avaliação dos resultados dos programas terapêuticos, porque pensamos que qualquer intervenção terapêutica está incompleta sem uma adequada avaliação dos resultados. Nesse sentido fizemos também diversas investigações clínicas sobre a eficácia do TCE, que apresentamos a seguir.
(...)
O TCE em programas de empresas
A pertinência da intervenção preventiva da adição a drogas e álcool nos locais de trabalho é inegável em Portugal. Sobretudo tendo em conta que se trata do terceiro maior consumidor mundial de álcool per capita (World Drink Trends, 2000). Em 1999 a média anual de consumo foi de 11 litros de etanol (correspondente a 27 litros de aguardente a 50º.). Isto tem consequências a nível de saúde pública e económicas.
Os princípios fundadores do TCE, nomeadamente o amor firme e o recurso à abordagem familiar, foram aplicados em empresas, tal como acontece nos CTT-Correios de Portugal, a trabalhadores com consumo excessivo de álcool e dependência de drogas.
Neste âmbito promovemos um projecto de redução do consumo de drogas e álcool nessa empresa, denominado PAAT: Programa de Apoio e Assistência a Trabalhadores. Este programa está em curso desde 1997 e já tem 257 trabalhadores referenciados e inscritos.

12.
Tratamento Combinado e  por Etapas de Dependentes Químicos.
Evolução Histórica e Resultados Conseguidos.      

Domingos Neto e Nuno Torres

Participantes:

Alexandre Quintanilha
Antonio Filipe
Antonio Dores
Artur Valentim
Carlos Fugas
Carlos Poiares
Domingos Neto
Francisco Esteves
João Paulo Ribeiro
Jorge Negreiros
Jorge Silva Ribeiro
Manuel Sanches
Mario David
Nuno Felix da Costa
Nuno Torres
Rene Tapia Ormazabal
FRENTES DE DESAFIO PARA A MUDANÇA
Relativamente à Comunidade Terapêutica, a mudança  do Adicto (passarei a usar o termo «Residente») passa pelo(a):
- «stop» com as substâncias adictivas  (álcool, drogas, benzodiazepinas);
- separação/individuação da família e, mais tarde, após «alta clínica», da  Comunidade Terapêutica;
- compreensão e aceitação das regras fundamentais e da filosofia  da Comunidade Terapêutica;
- decisão, em cada dia, de ficar e enfrentar  as previsíveis dificuldades e consequências dos actos;                               
- pedir e dar ajuda (entre-ajuda), quando necessário;
- readquirir hábitos de higiene (banho diário) e cuidados com a saúde (idas regulares a consultas);
- incorporação no funcionamento de sectores de trabalho e na hierárquica estrutura democrática;
- tentativa de resolução de conflitos de tal incorporação e da regulação da proximidade-distância;
- (re)aprender os limites pessoais e dos outros, controle de impulsos destrutivos;
- confrontode comportamentos inadequados e defeitos de carácter;
- lidar com as emoções e sentimentos (já muito anestesiados) que tais confrontos despertam;
- fomento do auto-conhecimento: «o que faço, penso e sinto»;
- reconhecimento e reparação possível de danos causados a si próprio e aos outros;
- aprendizagem de novas  competências e atitudes mais assertivas nas relações humanas;
- participar de um  processo de grupo que possibilite individuação e autonomia crescentes;
(...)
Os Residentes executam todas as tarefas domésticas e de manutenção da casa (não existe pessoal auxiliar, para cozinhar ou lavar a roupa). Sob o suporte, orientação e supervisão da Equipa Técnica, fazem também uma certa gestão da vida corrente da Comunidade (vão às compras ao supermercado, preparam as contas na administração, etc.). Participam nas actividades pedagógicas, organizativas e terapêuticas que assentam na dinâmica de grupo. (...) Para contrapor aos excessos e abusos da hierarquia, os Residentes têm ao seu alcance a possibilidade de confrontar, no «Grupo de Encontro» e no «Grupo de Bonding», as situações e pessoas que os incomodam, inclusive os Terapeutas. Estes mecanismos democráticos são preciosos para as Comunidades Terapêuticas, sejam elas do tipo hierárquico ou do dito democrático, no sentido de favorecimento do humanismo e afrontamento da perversão!
(...)
14-) O QUE SE TRABALHA E O QUE SE OBTÉM NA TERAPIA EMOCIONAL?
A Bonding Therapy, como já foi dito, utiliza a respiração, o conforto físico e o grito, no intuito de obter bem-estar  e prazer pessoal.  No entanto, as memórias de situações passadas, por vezes traumáticas, fazem emergir barreiras ou emoções sentidas como negativas (dor, medo, zanga) que impedem a vivência e a expressão de outras emoções e sentimentos (amor e prazer).
 Para além da obtenção do bem-estar e do prazer, a Bonding Therapy visa a mudança dos COMPORTAMENTOS negativos (desonestidade, mentir, manipular, etc.) que prejudicam o próprio e os parceiros, nas relações humanas saudáveis. Também tem como objectivo a mudança de ATITUDES dos Pacientes: que se  tornem mais assertivos, para que possam, de forma mais adequada, afirmar a sua existência e identidade  (eu existo ou eu sou?), as suas necessidades (eu preciso?), as suas capacidades (eu sou capaz?), os seus  direitos e méritos (eu mereço?).
(...)

13.   
Adictos:  O Processo de Mudança na Comunidade Terapêutica.

     
Manuel Peres Sanches 

"Esta coleção de contribuições vem preencher um espaço quase vazio na literatura em lingua portuguesa"

Alexandre Quintanilha.
Presidente da Comissão Nacional de Estratégia de Luta Contra a Droga, Director  do Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto .


"Reflexões duras e cruas sobre o mundo das drogas...numa abordagem sobre a realidade multifacetada deste fenómeno"

Leonor Figueiredo, Diário de Notícias, 4-10-2001
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Ficha Técnica

Data: 2001
Organização:
Nuno Torres e João P. Ribeiro
Edição:
Íman.
Praceta Cristo Rei, 10, 1 dto 2800 Almada
Grafismo: Neroli Design
343 paginas
ISBN: 972-8665-11-3