O FURACÃO QUE PASSOU PELO FERRO-VELHO 

...E CONSTRUIU UM AVIÃO A JATO!

 

Bruno Maçães

 

Até meados do século XIX, antes da publicação da Origem das Espécies, de Charles Darwin, acreditávamos que todos os tipos de animais, plantas e microorganismos haviam de alguma forma surgido independentemente uns dos outros. Para grande parte da humanidade, o Gênese, contido na Bíblia, era a explicação suficiente. Deus criara todas as espécies, incluindo a nossa. Houve inclusive esforços para calcular a data exata da criação, somando-se as idades dos profetas das escrituras. A conclusão foi que tudo surgiu seis mil anos atrás, aproximadamente.

            Filósofos como o inglês Sir William Paley apresentavam outras evidências da veracidade da criação. Utilizando-se de analogia, ele raciocinou que quando vemos um objeto complexo, como um relógio, pressupomos a existência de um relojoeiro, já que o relógio nunca poderia ter surgido ao acaso. A complexidade ainda maior da natureza e dos seres vivos indicava a existência de um projeto, de uma criação extremamente elaborada.

            Mas a força de um argumento às vezes pode nos levar ao caminho errado. A humanidade também considerava óbvio que a Terra não se movia, e era o centro do Universo. Existem particularidades no mínimo estranhas quanto à idéia da criação. Por exemplo, o número de espécies da Terra, descontando-se as bactérias, é estimado em vinte milhões. Mas menos de dois milhões de espécies são catalogadas e conhecidas, sendo que pouco mais de um milhão pertencem ao reino animal. Entre os animais catalogados, mais de um terço são besouros, e a proporção deve ser ainda maior. Se Deus criou mesmo todas as espécies, então Ele deve ser um verdadeiro fanático por besouros!

Além disso, durante escavações, freqüentemente eram encontrados no subsolo ossos fossilizados de animais totalmente desconhecidos. A explicação, um tanto ad hoc, era que Deus havia criado o Universo com todos aqueles ossos enterrados, para dar impressão de que o mundo é mais antigo do que realmente é. Como disse Einstein certa vez, o Senhor é sutil, mas não malicioso! Existe um princípio científico chamado a navalha de Occam: quando há duas explicações para o mesmo fenômeno, devemos adotar a mais simples.

            Como então explicar toda a diversidade da vida e toda sua complexidade? Como explicar a existência dos fósseis? Inspirando-se em algumas idéias do reverendo Thomas Malthus e observando a natureza, Darwin encontrou uma explicação simples: as espécies se transformavam com o tempo, ou evoluíam. Esta idéia é tão profunda que podemos dizer que na verdade Darwin não a inventou, e sim descobriu.

            Malthus havia postulado que as populações humanas tendem a crescer muito mais rapidamente do que a quantidade de recursos necessários para mantê-las. Ou seja, os recursos são escassos e não permitem que a população cresça indefinidamente. É fácil entender isto: se numa população cada indivíduo tem quatro filhos, então um indivíduo específico teria quatro filhos, dezesseis netos, sessenta e quatro bisnetos, duzentos e cinqüenta e seis tataranetos, e assim por diante, de maneira que ao longo de poucas gerações seus descendentes ocupariam toda a superfície da Terra, não havendo lugar para ninguém mais. Claramente, a população para de crescer muito antes que esta situação extrema aconteça.

            Se tendemos a nos reproduzir rapidamente, mas não há recursos suficientes para todos, o resultado é o que já sabemos: a vida não é fácil; temos de lutar pela sobrevivência. Competimos por recursos. Quando estes são suficientes, nossa população cresce. Isto é o que acontece atualmente, devido à riqueza material de nossa sociedade industrial. Mas quando nos tornamos numerosos demais, a fome generalizada pode nos castigar. A fome nos debilita, e epidemias se seguem. Desta forma nossos números novamente diminuem. Com nossa sofisticação humana, inventamos também as guerras, que têm o mesmo efeito sobre a população.

            Nenhum indivíduo numa população é igual ao outro: uns são mais altos, outros resistem mais ao calor, uns são mais claros e outros mais escuros, e assim por diante. A diferença significa que alguns terão acesso a mais recursos do que outros. Em geral, os indivíduos que conseguem mais recursos para si também conseguem sobreviver por mais tempo e ter mais descendentes. Em contrapartida, alguns não conseguem obter recursos suficientes e morrem antes de ter filhos. Os que geram mais descendentes têm características que os conferem uma vantagem sobre os outros e os tornam mais adaptados ao ambiente em que vivem. Essas mesmas características são passadas adiante, enquanto que os indivíduos mal-adaptados nunca transmitem suas características.

            Darwin concluiu que este raciocínio servia para qualquer espécie. E foi mais adiante: diferentes locais, como um deserto ou o alto de uma montanha, colocam diferentes desafios a uma população. Em cada local, as características favorecidas em cada indivíduo serão diferentes. Quando uma população que vivia unida no passado se divide e migra para locais diferentes e isolados, as duas novas populações passam a adaptar-se separadamente, transfigurando-se até tornarem-se irreconhecíveis após longo tempo.

Não é só o ambiente que determina quais indivíduos são mais adaptados a um determinado lugar. Os outros seres vivos que habitam a região devem adaptar-se uns aos outros. Assim, as características ideais não são sempre as mesmas; elas estão sempre mudando. O leopardo é rápido para conseguir capturar gazelas, e estas últimas são rápidas para fugir dos leopardos. Leopardos lentos não conseguem refeições e morrem. Gazelas lentas raramente passam suas características adiante.

            Darwin não conhecia as leis da hereditariedade, que já haviam sido estudadas em sua época por Gregor Mendel. Esta ignorância enfraquecia bastante seu argumento. Pensava-se que as características do pai misturavam-se às da mãe, o que tendia a diluir as diferenças entre indivíduos, criando uma população homogênea.

A descoberta neste século da molécula de DNA confirmou completamente os pressupostos da evolução. O DNA em nossas células contém instruções para a confecção de proteínas que determinam toda a nossa fisiologia e morfologia. Tudo isto utilizando uma linguagem digital semelhante à dos computadores, porém com um alfabeto de quatro “letras”, A,T,C,G, em vez das duas - 0,1- usadas pelos computadores. Em sua longa sequência sempre há uma instrução sobre como fabricar uma cópia de si mesma. Moléculas de DNA uniram-se em “equipes” para levar vantagem sobre as outras. Cada membro da equipe é chamado de gene. Os genes são as características de um ser vivo. Quanto melhor a combinação (ou equipe) de genes herdada dos pais, mais adaptado é o indivíduo e melhores as chances dos genes que formam esta equipe conseguirem copiar a si mesmos. Os genes instruem: “construir uma girafa com tais e tais características”. Se as características conseguem fazer a girafa reproduzir-se, então a equipe de genes não morre, sendo passada adiante.

As características de pai e mãe não se diluem porque são recebidas em “pacotes” por seus descendentes. Cada um de nossos pais nos transmite aleatoriamente a metade de seus genes. Para cada uma de nossas características, temos dois genes – um recebido da mãe e outro do pai. Mas em cada caso, apenas um deles se sobressai, sendo que o outro não tem grande influência. A diversidade na natureza é gerada por este embaralhamento de genes que ocorre com a reprodução sexuada e também devido a raros erros na cópia do DNA, que são chamados mutações.

O nome evolução pode dar uma idéia de progresso, de formas mais simples de vida para formas mais complexas. Este é um ponto ainda debatido, já que a idéia de que um aumento de complexidade é adaptativo é razoável. Mas este ‘progresso’ não significa uma trajetória específica em direção a um objetivo (o ser humano, por exemplo), muito menos teleologia. A seleção natural é um relojoeiro cego, nas palavras do biólogo Richard Dawkins. De fato, após o surgimento da vida, todas as espécies eram microscópicas e simples. Ultimamente surgiram muitas espécies complexas, mas estas formam apenas uma pequena porcentagem do número total de espécies, que cresceu muito desde o início. As bactérias continuam a predominar, perfazendo mais de noventa por cento das espécies.

Também apareceram algumas objeções à evolução, em parte devido à falta de compreensão deste processo. Se a evolução é cega e aleatória, como surgiram órgãos tão complexos como o olho? E seres complexos? Se o surgimento do olho por um processo aleatório fosse possível, não seria também possível um furacão passando por um ferro velho construir um avião a jato? Além disso, se a evolução é gradual, aproveitando pequenas diferenças entre indivíduos, que utilidade teria meio olho, ou meia-asa? A resposta é que, por incrível que pareça, não só um órgão tão complexo quanto o olho surgiu por um processo aleatório, como surgiu quarenta vezes independentemente. Ou seja, nossos olhos são diferentes dos olhos dos insetos, que são diferentes dos olhos das lulas, que são diferentes dos olhos dos crustáceos. Nós, os insetos, as lulas e crustáceos, e muitas outras espécies, não herdamos nossos olhos de um ancestral comum, mas os desenvolvemos independentemente! A estrutura dos olhos é diferente para diferentes ordens de seres vivos. Como pode ser isto?

A explicação é muito simples, tanto para o caso dos olhos como para o caso das asas. Para começar, é equivocada a idéia de que meio olho ou meia asa não têm utilidade. Afinal, num reino de cegos, quem tem um olho é rei! Numa população onde todos os membros são cegos, aquele que consegue diferenciar luz de sombras tem uma grande vantagem sobre os outros. Se um ser tem uma mutação que faz com que ele tenha algumas células em seu corpo capazes de reagir com a luz, ele poderá perceber a presença de um predador antes dos outros e se salvar. Ou então poderá notar que uma presa está se aproximando. Em pouco tempo, seus descendentes estarão por toda parte. Se um destes descendentes tem uma mutação e nasce com suas células fotossensíveis numa superfície curvada, então ele será capaz de perceber a direção de um predador ou presa, pois sua imagem incidirá mais de um lado da superfície do que do outro. Esta também é uma grande vantagem, fazendo com que em breve seus descendentes também estejam por toda parte. Uma futura mutação pode fazer esta curvatura se acentuar, permitindo que a imagem seja focalizada, como numa câmara escura. Outras mutações podem permitir a diferenciação de cores, e assim por diante. Não parece tão difícil, agora que temos em mente que basta acontecerem mutações aleatórias e graduais. A maioria destas mutações será prejudicial, mas algumas delas serão as que a natureza estará selecionando no momento.

Com as asas acontece o mesmo. Muitas espécies são pequenas e possuem uma massa pequena comparada à área de seu corpo, sendo facilmente carregadas pelo vento. Se uma mutação permite a um indivíduo desenvolver uma extremidade de seu corpo capaz de aumentar sua dirigibilidade quando ele é levado no ar, isto pode evitar predadores ou facilitar a captura de presas. As mutações vão se sucedendo até formarem asas.

Como as mutações não são dirigidas a um objetivo, mas aleatórias, a maioria delas diminui, e não aumenta, a adaptabilidade de um indivíduo. Mas como ambientes diferentes impõem desafios diferentes, o conceito de “defeito”, ou doença, pode mudar de local para local. Quando um animal nasce míope, devido a uma mutação, sua capacidade de localizar presas e predadores diminui. Se ele nasce cego, então, ele está praticamente perdido. Mas se ele vive embaixo da terra ou do oceano, nascer cego não fará a menor diferença, e a cegueira deixa de ser doença. Livrar-se dos olhos pode ser até uma vantagem, porque a energia que o organismo utilizaria para construir e manter um olho pode ser utilizada de outras formas. Nascer sem pernas é fatal para um animal terrestre, mas quando este animal vive nas margens de uma lagoa, isto pode até facilitar sua locomoção na água. Provavelmente isto aconteceu com as baleias e golfinhos.

O homem é a primeira espécie na Terra a “tentar resistir” à seleção natural, porque cuida dos fracos e doentes. Fazendo isto, ele torna viáveis mutações que seriam inviáveis na natureza, ou seja, que provocariam a morte dos indivíduos afetados sem gerar descendentes. Quando nascemos míopes, não temos mais de nos preocupar se seremos apanhados por um leopardo ou se não conseguiremos capturar um mamute. Usamos óculos. Alguns problemas mais graves surgem com isto. Por exemplo, até pouco tempo, hemofílicos não deixavam descendentes, pois tendiam a morrer antes de atingirem a idade reprodutiva. Como atualmente existe algum tratamento para esta doença, os genes da hemofilia se espalham cada vez mais pela população. O mesmo acontece com outras doenças. Estamos numa corrida da tecnologia contra o tempo para erradicá-las de vez, alterando os próprios genes que as causam. Mas aqui entramos num campo perigoso, que novamente tem a ver com nossa noção de doença e com a ética. Como seremos capazes no futuro de determinar quais são os genes “bons”? Nosso bom senso às vezes falha. Alguns acham que os genes para determinadas cores de pele são ruins e devem ser eliminados. Nossa moral não evolui tão rápido quanto nossa tecnologia. Se saberemos nos conduzir sabiamente ou não é ainda uma questão aberta.

Muitas pessoas se opõem à evolução, pois ela nos tirou de nosso lugar privilegiado na criação e nos transformou em apenas mais uma entre milhões de espécies. Como todas as espécies, também estaremos extintos um dia. Mas esta idéia veio para ficar e não deve ser alterada no futuro. É possível que novas idéias surjam que a complementem, como auto-organização e complexidade na natureza. Mas ainda assim, seria uma escolha da natureza entre diferentes formas de auto-organização. E um assunto para um outro ensaio...

 

Voltar