"A teoria revolucionária é, agora, inimiga de toda a ideologia revolucionária e sabe que o é."

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

GUY DEBORD

(1931-1994)

As idéias se aperfeiçoam. O sentido das palavras também. O plagiato é necessário. O avanço implica-o. Ele acerca-se estreitamente da frase de um autor, serve-se das suas expressões, suprime uma idéia falsa, substitui-a pela idéia justa. (Guy Debord )


[Nota importante: O que vem a seguir, é uma paráfrase desenvolvida em português do Brasil, baseada em uma tradução (http://www.terravista.pt/IlhadoMel/1540) publicada na rede em 1997 em português de Portugal. Para quem faz questão da precisão absoluta das palavras escritas por Debord, é fortemente recomendado beber da fonte original, em francês]


 

Capítulo I - A separação consolidada

Capítulo II - A mercadoria como espetáculo

Capítulo III - Unidade e divisão na aparência

Capítulo IV - O proletariado como sujeito e como representação

Capítulo V - Tempo e história

Capítulo VI - O Tempo espetacular

Capítulo VII - A Ordenação do território

Capítulo VIII - A Negação e o consumo da cultura

Capítulo IX - A Ideologia materializada

 

GUY DEBORD

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

CAPITULO I

A SEPARAÇÃO CONSOLIDADA

 

Nosso tempo, sem dúvida . . . prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser. . . O que é sagrado para ele, não passa de ilusão, pois a verdade está no profano. Ou seja, à medida que decresce a verdade a ilusão aumenta, e o sagrado cresce a seus olhos de forma que o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado.

Feuerbach - Prefácio à segunda edição de A Essência do Cristianismo

1

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação.

2

As imagens fluem desligadas de cada aspecto da vida e fundem-se num curso comum, de forma que a unidade da vida não mais pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente reflete em sua própria unidade geral um pseudo mundo à parte, objeto de pura contemplação. A especialização das imagens do mundo acaba numa imagem autonomizada, onde o mentiroso mente a si próprio. O espetáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autônomo do não-vivo.

3

O espetáculo é ao mesmo tempo parte da sociedade, a própria sociedade e seu instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, o espetáculo concentra todo o olhar e toda a consciência. Por ser algo separado, ele é o foco do olhar iludido e da falsa consciência; a unificação que realiza não é outra coisa senão a linguagem oficial da separação generalizada.

4

O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens.

5

O espetáculo não pode ser compreendido como abuso do mundo da visão ou produto de técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é a expressão de uma Weltanschauung, materialmente traduzida. É uma visão cristalizada do mundo.

6

O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é simultaneamente o resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um complemento ao mundo real, um adereço decorativo. É o coração da irrealidade da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares de informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita na produção, e no seu corolário -- o consumo. A forma e o conteúdo do espetáculo são a justificação total das condições e dos fins do sistema existente. O espetáculo é também a presença permanente desta justificação, enquanto ocupação principal do tempo vivido fora da produção moderna.

7

A própria separação faz parte da unidade do mundo, da praxes social global que se cindiu em realidade e imagem. A prática social, diante da qual surge o espetáculo autônomo, é também a totalidade real que contém o espetáculo. Mas a cisão nesta totalidade mutila-a ao ponto de apresentar o espetáculo como sua finalidade. A linguagem do espetáculo é constituída por signos da produção reinante, que são ao mesmo tempo o princípio e a finalidade última da produção.

8

Não se pode contrapor abstratamente o espetáculo à atividade social efetiva; este desdobramento está ele próprio desdobrado. O espetáculo que inverte o real é produzido de forma que a realidade vivida acaba materialmente invadida pela contemplação do espetáculo, refazendo em si mesma a ordem espetacular pela adesão positiva. A realidade objetiva está presente nos dois lados. O alvo é passar para o lado oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo no real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente.

9

No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso.

10

O conceito de espetáculo unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes. As suas diversidades e contrastes são as aparências organizadas socialmente, que devem, elas próprias, serem reconhecidas na sua verdade geral. Considerado segundo os seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, socialmente falando, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo descobre-o como a negação visível da vida; uma negação da vida que se tornou visível.

11

Para descrever o espetáculo, a sua formação, as suas funções e as forças que tendem para sua dissolução, é preciso distinguir seus elementos artificialmente inseparáveis. Ao analisar o espetáculo, fala-se em certa medida a própria linguagem do espetacular, no sentido de que se pisa no terreno metodológico desta sociedade que se exprime no espetáculo. Mas o espetáculo não significa outra coisa senão o sentido da prática total da formação econômico-social, o seu emprego do tempo. É o momento histórico que nos contém.

12

O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é «o que aparece é bom, o que é bom aparece». A atitude que ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência.

13

O caráter fundamentalmente tautológico do espetáculo decorre do simples fato dos seus meios serem ao mesmo tempo a sua finalidade. Ele é o sol que não tem poente no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo e banha-se indefinidamente na sua própria glória.

14

A sociedade que repousa sobre a indústria moderna não é fortuitamente ou superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente espetaculista. No espetáculo da imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenvolvimento é tudo. O espetáculo não quer chegar a outra coisa senão a si mesmo.

15

Na forma do indispensável adorno dos objetos hoje produzidos, na forma da exposição geral da racionalidade do sistema, e na forma de setor econômico avançado que modela diretamente uma multidão crescente de imagens-objetos, o espetáculo é a principal produção da sociedade atual.

16

O espetáculo submete para si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si própria. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objetivação infiel dos produtores.

17

A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente da ocupação total da vida social em busca da acumulação de resultados econômicos conduz a uma busca generalizada do ter e do parecer, de forma que todo o «ter» efetivo perde o seu prestígio imediato e a sua função última. Assim, toda a realidade individual se tornou social e diretamente dependente do poderio social obtido. Somente naquilo que ela não é, Ihe é permitido aparecer.

18

Onde o mundo real se converte em simples imagens, estas simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes típicas de um comportamento hipnótico. O espetáculo, como tendência para fazer ver por diferentes mediações especializadas o mundo que já não é diretamente apreensível, encontra normalmente na visão o sentido humano privilegiado que noutras épocas foi o tato; a visão, o sentido mais abstrato, e o mais mistificável, corresponde à abstração generalizada da sociedade atual. Mas o espetáculo não é identificável ao simples olhar, mesmo combinado com o ouvido. Ele é o que escapa à atividade dos homens, à reconsideração e à correção da sua obra. É o contrário do diálogo. Em toda a parte onde há representação independente, o espetáculo reconstitui-se.

19

O espetáculo é o herdeiro de toda a fraqueza do projeto filosófico ocidental, que foi uma compreensão da atividade dominada pelas categorias do ver; assim como se baseia no incessante alargamento da racionalidade técnica precisa, proveniente deste pensamento. Ele não realiza a filosofia, ele filosofa a realidade. É a vida concreta de todos que se degradou em universo especulativo.

20

A filosofia, enquanto poder do pensamento separado, e pensamento do poder separado, nunca pode por si própria superar a teologia. O espetáculo é a reconstrução material da ilusão religiosa. A técnica espetacular não dissipou as nuvens religiosas onde os homens tinham colocado os seus próprios poderes desligados de si: ela ligou-os somente a uma base terrestre. Assim, é a mais terrestre das vidas que se toma opaca e irrespirável. Ela já não reenvia para o céu, mas alberga em si a sua recusa absoluta, o seu falacioso paraíso. O espetáculo é a realização técnica do exílio dos poderes humanos num além; a cisão acabada no interior do homem.

21

À medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. O espetáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que ao cabo não exprime senão o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste sono.

22

Destituída de seu poder prático, e permeada pelo império independente no espetáculo, a sociedade moderna permanece atomizada e em contradição consigo mesma.

23

Mas é a especialização do poder, a mais velha especialização social, que está na raiz do espetáculo. O espetáculo é, assim, uma atividade especializada que fala pelo conjunto das outras. É a representação diplomática da sociedade hierárquica perante si própria, onde qualquer outra palavra é banida, onde o mais moderno é também o mais arcaico.

24

O espetáculo é o discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu monólogo elogioso. É o auto-retrato do poder no momento da sua gestão totalitária das condições de existência. A aparência fetichista de pura objetividade nas relações espetaculares esconde o seu caráter de relação entre homens e entre classes: uma segunda natureza parece dominar o nosso meio ambiente com as suas leis fatais. Mas o espetáculo não é necessariamente um produto do desenvolvimento técnico do ponto de vista do desenvolvimento natural. A sociedade do espetáculo é, pelo contrário, uma formulação que escolhe o seu próprio conteúdo técnico. O espetáculo, considerado sob o aspecto restrito dos «meios de comunicação de massa» -- sua manifestação superficial mais esmagadora -- que aparentemente invade a sociedade como simples instrumentação, está longe da neutralidade, é a instrumentação mais conveniente ao seu automovimento total. As necessidades sociais da época em que se desenvolvem tais técnicas não podem encontrar satisfação senão pela sua mediação. A administração desta sociedade e todo o contato entre os homens já não podem ser exercidos senão por intermédio deste poder de comunicação instantâneo, é por isso que tal «comunicação» é essencialmente unilateral; sua concentração se traduz acumulando nas mãos da administração do sistema existente os meios que Ihe permitem prosseguir administrando. A cisão generalizada do espetáculo é inseparável do Estado moderno, a forma geral da cisão na sociedade, o produto da divisão do trabalho social e o órgão da dominação de classe.

25

A separação é o alfa e o ômega do espetáculo. A institucionalização da divisão social do trabalho, a formação das classes, constituiu a primeira contemplação sagrada, a ordem mítica em que todo o poder se envolve desde a origem. O sagrado justificou a ordenação cósmica e ontológica que correspondia aos interesses dos Senhores, ele explicou e embelezou o que a sociedade não podia fazer. Todo o poder separado foi pois espetacular, mas a adesão de todos a uma tal imagem imóvel não significava senão o reconhecimento comum de um prolongamento imaginário para a pobreza da atividade social real, ainda largamente ressentida como uma condição unitária. O espetáculo moderno exprime, pelo contrário, o que a sociedade pode fazer, mas nesta expressão o permitido opõe-se absolutamente ao possível. O espetáculo é a conservação da inconsciência na modificação prática das condições de existência. Ele é o seu próprio produto, e ele próprio fez as suas regras: é um pseudo-sagrado. Ele mostra o que é: o poder separado, desenvolvendo-se em si mesmo no crescimento da produtividade por intermédio do refinamento incessante da divisão do trabalho na parcelarização dos gestos, desde então dominados pelo movimento independente das máquinas; e trabalhando para um mercado cada vez mais vasto. Toda a comunidade e todo o sentido crítico se dissolveram ao longo deste movimento, no qual as forças que puderam crescer, separando-se, ainda não se reencontraram.

26

Com a separação generalizada do trabalhador daquilo que ele produz perde-se todo ponto de vista unitário sobre a atividade realizada, perde-se toda a comunicação pessoal direta entre os produtores. Na senda do progresso da acumulação dos produtos separados, e da concentração do processo produtivo, a unidade e a comunicação tornam-se atribuições exclusivas da direção do sistema. O êxito do sistema econômico da separação significa a proletarização do mundo.

27

O próprio êxito da produção separada enquanto produção do separado, experiência fundamental ligada às sociedades primitivas, desloca-se, no pólo do desenvolvimento do sistema, para o não-trabalho, para a inatividade. Mas esta inatividade não é em nada liberta da atividade produtiva: depende desta, uma submissão inquieta e contemplativa às necessidades e aos resultados da produção; ela própria é um produto da sua racionalidade. Nela não pode haver liberdade fora da atividade. No quadro do espetáculo toda a atividade é negada, exatamente pela atividade real ter sido integralmente captada para a edificação global resultante. Assim, a atual «libertação do trabalho», o aumento dos tempos livres, não é de modo algum libertação no trabalho, nem libertação de um mundo moldado por este trabalho. Nada da atividade roubada no trabalho pode reencontrar-se na submissão ao seu resultado.

28

O sistema econômico fundado no isolamento é uma produção circular do isolamento. O isolamento fundamenta a técnica, e, em retorno, o processo técnico isola. Do automóvel à televisão, todos os bens selecionados pelo sistema espetacular são também as suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das «multidões solitárias». O espetáculo reencontra cada vez mais concretamente os seus próprios pressupostos.

29

A origem do espetáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espetáculo moderno exprime a totalidade desta perda: a abstração de todo o trabalho particular e a abstração geral da produção do conjunto traduzem-se perfeitamente no espetáculo, cujo modo de ser concreto é justamente a abstração. No espetáculo, uma parte do mundo representa-se perante o mundo, e é-lhe superior. O espetáculo não é mais do que a linguagem comum desta separação. O que une os espectadores não é mais do que uma relação irreversível com o próprio centro que mantém o seu isolamento. O espetáculo reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado.

30

A alienação do espectador em proveito do objeto contemplado (que é o resultado da sua própria atividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que Ihos apresenta.

 

Eis porque o espectador não se sente em casa em parte alguma, porque o espetáculo está em toda a parte.

31

O trabalhador não produz para si próprio, ele produz para um poder independente. O sucesso desta produção, a sua abundância, regressa ao produtor como abundância da despossessão. Todo o tempo e o espaço do seu mundo se Ihe tornam estranhos com a acumulação dos seus produtos alienados. O espetáculo é o mapa deste novo mundo, mapa que recobre exatamente o seu território. As próprias forças que nos escaparam mostram-se-nos em todo o seu poderio.

32

O espetáculo na sociedade representa concretamente uma fabrica de alienação. A expansão econômica é principalmente a expansão da produção industrial. O crescimento econômico, que cresce para si mesmo, não é outra coisa senão a alienação que constitui seu núcleo original.

33

O homem alienado daquilo que produz, mesmo criando os detalhes do seu mundo, está separado dele. Quanto mais sua vida se transforma em mercadoria, mais se separa dela.

34

O espetáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se toma imagem.

Guy Debord (A Sociedade do espetáculo Capitulo I)


GUY DEBORD

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

CAPÍTULO II

A MERCADORIA COMO ESPETÁCULO

A mercadoria pode ser compreendida na sua essência apenas como categoria universal do ser social total. É apenas neste contexto que a reificação [o momento, dentro do processo de alienação, em que a característica de ser uma coisa se torna típica da realidade objetiva] surgida da relação mercantil adquire uma significação decisiva, tanto pela evolução objetiva da sociedade como pela atitude dos homens em relação a ela, na submissão da sua consciência às formas nas quais esta reificação se exprime... Esta submissão acresce-se ainda do fato de que quanto mais a racionalização e a mecanização do processo de trabalho aumentam, mais a atividade do trabalhador perde o seu caráter de atividade, tornando-se uma atitude meramente contemplativa.

Lukács - História e consciência de classe

35

Neste movimento essencial do espetáculo -- que consiste em ingerir tudo o que existe na atividade humana em estado fluido para depois vomitá-lo em estado coagulado, para que as coisas assumam seu valor exclusivamente pela formulação em negativo do valor vivido -- nós reconhecemos a nossa velha inimiga que embora pareça trivial à primeira vista é intensamente complexa e cheia de sutilezas metafísicas, a mercadoria.

36

É pelo princípio do fetichismo da mercadoria, a sociedade sendo dominada por «coisas supra-sensíveis embora sensíveis», que o espetáculo se realiza absolutamente. O mundo sensível é substituído por uma seleção de imagens que existem acima dele, ao mesmo tempo em que se faz reconhecer como o sensível por excelência.

37

O mundo ao mesmo tempo presente e ausente que o espetáculo apresenta é o mundo da mercadoria dominando tudo o que é vivido. O mundo da mercadoria é mostrado como ele é, com seu movimento idêntico ao afastamento dos homens entre si, diante de seu produto global.

38

A perda da qualidade -- tão evidente em todos os níveis da linguagem espetacular -- dos objetos que louva e das condutas que regula, não faz outra coisa senão traduzir as características fundamentais da produção real, que repudiam a realidade: a forma-mercadoria é de uma ponta a outra a igualdade consigo mesma, a categoria do quantitativo. É o quantitativo que ela desenvolve, e ela não se pode desenvolver senão nele.

39

Este desenvolvimento exclui o qualitativo estancando, enquanto desenvolvimento, a passagem qualitativa: o espetáculo significa que ele transpôs o limiar da sua própria abundância; isto ainda não é verdadeiro localmente senão em alguns pontos, mas já é verdadeiro em escala universal, que é a referência original da mercadoria, referência que o seu movimento prático confirmou, definindo a terra como mercado mundial.

40

O desenvolvimento das forças produtivas foi a história real inconsciente que construiu e modificou as condições de existência dos grupos humanos, enquanto condições de sobrevivência, e alargamento destas condições: a base econômica de todos os seus empreendimentos. O setor da mercadoria foi, no interior da economia natural, a constituição de um excedente de sobrevivência. A produção das mercadorias, que implica a troca de produtos variados entre produtores independentes, pode permanecer durante muito tempo artesanal, contida numa função econômica marginal onde a sua verdade quantitativa estava ainda encoberta. No entanto, onde encontrou as condições sociais do grande comércio e da acumulação dos capitais, ela apoderou-se do domínio total da economia. A economia inteira tornou-se então o que a mercadoria tinha mostrado ser no decurso desta conquista: um processo de desenvolvimento quantitativo. O alargamento incessante do poderio econômico sob a forma da mercadoria, que transfigurou o trabalho humano em trabalho-mercadoria, em salariado, conduz cumulativamente a uma abundância na qual a questão primeira da sobrevivência está sem dúvida resolvida, mas de um tal modo que ela deve sempre reencontrar-se; ela é, cada vez, colocada de novo a um grau superior. O crescimento econômico liberta as sociedades da pressão natural que exigia a sua luta imediata pela sobrevivência, mas é então do seu libertador que elas não estão libertas. A independência da mercadoria estendeu-se ao conjunto da economia sobre a qual ela reina. A economia transforma o mundo, mas transforma-o somente em mundo da economia. A pseudonatureza na qual o trabalho humano se alienou exige prosseguir ao infinito o seu serviço e este serviço, não sendo julgado e absolvido senão por ele próprio, obtendo, de fato, a totalidade dos esforços e dos projetos socialmente lícitos, como seus servidores. A abundância das mercadorias, isto é, da relação mercantil, não pode ser mais do que a sobrevivência aumentada.

41

A dominação da mercadoria sobre a economia exerceu-se, antes de mais nada de uma maneira oculta. A mercadoria, enquanto base material da vida social, permaneceu desapercebida e incompreendida, como o parente que apesar de sua condição não é conhecido. Numa sociedade em que a mercadoria concreta permanece rara ou minoritária, a dominação aparente do dinheiro se apresenta como um emissário munido de plenos poderes que fala em nome de uma potência desconhecida. Com a revolução industrial, a divisão do trabalho e a produção maciça para o mercado mundial, a mercadoria aparece efetivamente como uma potência que vem realmente ocupar a vida social. É aí que se constitui a economia política como ciência dominante e como ciência da dominação. O espetáculo é o momento em que a mercadoria chega à ocupação total da vida social. Tudo isso é perfeitamente visível com relação à mercadoria, pois nada mais se vê senão ela: o mundo visível é o seu mundo. A produção econômica moderna estende a sua ditadura extensiva e intensivamente. Até mesmo nos lugares menos industrializados, o seu reino já se faz presente com algumas mercadorias-vedetas, com a dominação imperialista comandando o desenvolvimento da produtividade. Nestas zonas avançadas, o espaço social é invadido por uma sobreposição contínua de camadas geológicas de mercadorias. Neste ponto da «segunda revolução industrial», o consumo alienado torna-se para as massas um dever suplementar à produção alienada. É todo o trabalho vendido de uma sociedade, que se torna globalmente mercadoria total, cujo ciclo deve prosseguir. Para o fazer, é preciso que esta mercadoria total regresse fragmentariamente ao indivíduo fragmentário, absolutamente separado das forças produtivas e operando como um conjunto. Assim, portanto, a ciência especializada da dominação se especializa: fragmentando tudo, em sociologia, psicotécnica, cibernética, semiologia, etc., velando pela auto-regulação de todos os níveis do processo.

43

Embora na fase primitiva da acumulação capitalista «a economia política não visse no proletário senão o operário» que deveria receber o mínimo indispensável para a conservação da sua força de trabalho, sem nunca ser considerado «nos seus lazeres, na sua humanidade», esta posição de ideias da classe dominante inverte-se assim que o grau de abundância atingido na produção das mercadorias exige um excedente de colaboração do operário. Este operário, completamente desprezado diante de todas as modalidades de organização e vigilância da produção, vê a si mesmo, a cada dia, do lado de fora, mas é aparentemente tratado como uma grande pessoa, com uma delicadeza obsequiosa, sob o disfarce do consumidor. Então o humanismo da mercadoria toma a cargo os «lazeres e humanidade» do trabalhador, muito simplesmente porque a economia política pode e deve dominar, agora, também estas esferas, enquanto economia política. Assim, «a negação da humanidade» é agora a negação da totalidade da existência humana.

44

O espetáculo é uma permanente guerra do ópio para confundir bem com mercadoria; satisfação com sobrevivência, regulando tudo segundo as suas próprias leis. Se o consumo da sobrevivência é algo que deve crescer sempre, é porque a privação nunca deve ser contida. E se ele não é contido, nem estancado, é porque ele não está para além da privação, é a própria privação enriquecida.

45

A automação é o setor mais avançado da indústria moderna e ao mesmo tempo o modelo que define sua prática. Mas é necessário que o mundo da mercadoria supere esta contradição: a instrumentação técnica que suprime objetivamente o trabalho deve, ao mesmo tempo, conservar o trabalho como mercadoria, e manter o trabalho como a única instância de nascimento da mercadoria. Para que a automação, ou qualquer outra forma menos extrema de aumento da produtividade do trabalho, não diminua efetivamente o tempo de trabalho social necessário à escala de sociedade, é indispensável criar novos empregos. O setor terciário -- os serviços -- é o imenso prolongamento das linhas e etapas do exército da distribuição e do elogio das mercadorias atuais; pela mobilização de forças supletivas que encontra oportunamente na própria facticidade das necessidades relativas de tais mercadorias, a necessária organização da retaguarda do trabalho.

46

O valor da troca não pode formar-se senão como agente do valor de uso, mas a sua vitória pelas suas próprias armas criou as condições da sua dominação autônoma. Mobilizando todo o uso humano e apoderando-se do monopólio da sua satisfação, ela acabou por dirigir o uso. O processo de troca identificou-se a todo o uso possível e reduziu-o à sua mercê. O valor de troca é o condottiere do valor de uso, que acaba por conduzir a guerra por sua própria conta.

47

Esta constante da economia capitalista, que é a baixa tendencial do valor de uso, desenvolve uma nova forma de privação no interior da sobrevivência aumentada, a qual não está, por isso, mais liberta da antiga penúria, visto que exige a participação da grande maioria dos homens, como trabalhadores assalariados, no prosseguimento infinito do seu esforço; e que cada qual sabe que é necessário submeter-se-lhe ou morrer. É a realidade desta chantagem, o fato do uso sob a sua forma mais pobre (comer, habitar) já não existir senão aprisionado na riqueza ilusória da sobrevivência aumentada, que é a base real da aceitação da ilusão em geral no consumo das mercadorias modernas. O consumidor real toma-se um consumidor de ilusões. A mercadoria é esta ilusão efetivamente real, e o espetáculo a sua manifestação geral.

48

O valor de uso, que estava implicitamente compreendido no valor de troca, deve estar agora explicitamente proclamado na realidade invertida do espetáculo, justamente porque a sua realidade efetiva é corroída pela economia mercantil superdesenvolvida; e porque uma pseudojustificação se torna necessária à falsa vida.

49

O espetáculo é a outra face do dinheiro: o equivalente geral abstrato de todas as mercadorias. Mas se o dinheiro dominou a sociedade enquanto representação da equivalência central, isto é, do carácter permutável dos bens múltiplos cujo uso permanecia incomparável, o espetáculo é o seu complemento moderno desenvolvido, onde a totalidade do mundo mercantil aparece em bloco como uma equivalência geral ao que o conjunto da sociedade pode ser e fazer. O espetáculo é o dinheiro que se olha somente, pois nele é já a totalidade do uso que se trocou com a totalidade da representação abstrata. O espetáculo não é somente o servidor do pseudo-uso, é já, em si próprio, o pseudo-uso da vida.

50

O resultado concentrado do trabalho social, o momento da abundância econômica, torna-se aparente e submete toda a realidade à aparência, que é agora seu produto. O capital não é apenas o centro invisível que dirige o modo de produção: a sua acumulação estende-o até à periferia, sob a forma de objetos sensíveis. Toda a vastidão da sociedade é o seu retrato.

51

A vitória da economia autônoma representa, ao mesmo tempo, a sua derrota. As forças desencadeadas por ela suprimem a necessidade econômica que foi a base imutável das sociedades antigas. Quando ela a substitui pela necessidade do desenvolvimento econômico infinito, ela não pode fazer outra coisa a não ser substituir a satisfação das primeiras necessidades, sumariamente reconhecidas, por uma fabricação ininterrupta de pseudo-necessidades que se reduzem à única pseudo-necessidade da manutenção do seu reino. A economia autônoma separa-se para sempre da necessidade profunda, na própria medida em que sai do inconsciente social que dela dependia sem o saber. «Tudo o que é consciente se usa. O que é inconsciente permanece inalterável. Mas uma vez liberto, não cai por sua vez em ruínas?» (Freud).

52

Quando a sociedade descobre que ela depende da economia, a economia, de fato, depende dela. Esta potência subterrânea, que cresceu até aparecer soberanamente, também perdeu o seu poderio. Lá onde estava o ça (*) econômico deve vir o je (*). O sujeito não pode emergir senão da sociedade, isto é, da luta que está nela própria. A sua existência possível está suspensa nos resultados da luta de classes, que se revela como o produto e a produtora da fundação econômica da história.

53

A consciência do desejo e o desejo da consciência são um mesmo projeto que, sob a sua forma negativa, quer a abolição das classes, isto é, a posse direta pelos trabalhadores de todos os momentos da sua atividade. O seu contrário é a sociedade do espetáculo onde a mercadoria se contempla a si mesma num mundo que ela criou .

(*) Mantêm-se o original para referenciar o conceito utilizado por Freud (N.T.)

Guy Debord (A Sociedade do espetáculo Capitulo II)


GUY DEBORD

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

CAPÍTULO III

UNIDADE E DIVISÃO NA APARÊNCIA

Na frente filosófica, desenrola-se no país uma nova e animada polêmica a propósito dos conceitos «um divide-se em dois» e «dois fundem-se em um». Este debate é uma luta entre os que são a favor e os que são contra a dialética materialista, uma luta entre duas concepções de mundo: a concepção proletária e a concepção burguesa. Os que sustentam que «um divide-se em dois» é a lei fundamental das coisas, mantêm-se do lado da dialética materialista; os que sustentam que a lei fundamental das coisas é que «dois fundem-se em um», são contra a dialética materialista. Os dois lados traçaram entre si uma nítida linha de demarcação e seus argumentos são diametralmente opostos. Esta polêmica reflete, no plano ideológico, a aguda e complexa luta de classes que se desenrola na China e no mundo.

-- Bandeira Vermelha, Pequim, 21 de Setembro de 1964

54

O espetáculo, da mesma forma que a moderna sociedade, está ao mesmo tempo unido e dividido. Ele edifica a sua unidade sobre o dilaceramento. A contradição, quando emerge no espetáculo, é contradita pela inversão do seu sentido; de modo que a divisão mostrada é unitária, enquanto que a unidade mostrada está dividida.

55

A luta de poderes, que se constituíram para a gestão do mesmo sistema socio-econômico, se desenrola como a contradição oficial, mas que pertence de fato à unidade real; tanto em escala mundial como no interior de cada nação.

56

As falsas lutas espetaculares das formas rivais do poder separado são, ao mesmo tempo, reais no que diz respeito ao desenvolvimento desigual e conflitual do sistema, aos interesses relativamente contraditórios das classes ou subdivisões de classes que reconhecem o sistema, e definem sua própria participação no seu poder. O desenvolvimento da economia mais avançada constitui o afrontamento de certas prioridades com outras. A gestão totalitária da economia por uma burocracia de Estado e a condição dos países que se encontraram colocados na esfera de colonização ou da semicolonização são consideravel e particularmente definidas por modalidades da produção e do poder. Estas diversas aposições podem exprimir-se no espetáculo, segundo critérios completamente diferentes, como formas de sociedades absolutamente distintas. Mas segundo sua realidade efetiva de setores particulares, a verdade da sua particularidade reside no sistema universal que as contém: no movimento único que faz do planeta seu campo, o capitalismo.

57

Não é somente pela sua hegemonia econômica que a sociedade portadora do espetáculo domina as regiões subdesenvolvidas. Domina-as enquanto sociedade do espetáculo. Lá onde a base material ainda está ausente, a sociedade moderna já invadiu espetacularmente a superfície social de cada continente. Ela define o programa de uma classe dirigente e preside sua constituição. Do mesmo modo que apresenta os pseudobens a cobiçar, ela oferece aos revolucionários locais os falsos modelos de revolução. O próprio espetáculo do poder burocrático, que detêm alguns dos países industriais, faz precisamente parte do espetáculo total, como sua pseudonegacão geral e seu suporte. Se o espetáculo, olhado nas suas diversas localizações, revela especializações totalitárias da palavra e da administração sociais, estas acabam por fundir-se, ao nível do funcionamento global do sistema, numa divisão mundial das tarefas espetaculares.

58

A divisão das tarefas espetaculares, que conserva a generalidade da ordem existente, conserva principalmente o pólo dominante do seu desenvolvimento. A raiz do espetáculo está no terreno da economia tornada abundante, e é de Iá que vêm os frutos que tendem finalmente a dominar o mercado espetacular, apesar das barreiras protecionistas ideológico-policiais, e de qualquer espetáculo local com pretensão autárquica.

59

O movimento de banalização que, sob as diversões cambiantes do espetáculo, domina mundialmente a sociedade moderna, domina-a também em cada um dos pontos onde o consumo desenvolvido das mercadorias multiplicou na aparência os papéis a desempenhar e os objetos a escolher. As sobrevivência da religião e da família -- que permanece a forma principal da herança do poder de classe --, e, portanto, da repressão moral que elas asseguram, podem combinar-se como uma mesma e única coisa, com a afirmação redundante do gozo deste mundo, este mundo não sendo justamente produzido senão como pseudogozo que traz consigo a repressão. A aceitação beata daquilo que existe pode juntar-se como uma mesma e única coisa à revolta puramente espetacular: pelo simples fato de que a própria insatisfação se tornou uma mercadoria desde que a abundância econômica se achou capaz de estender sua produção tratando de tal matéria-prima.

60

Ao concentrar na vedeta, a imagem de um possível papel a desempenhar, a representação espetacular do homem vivo, concentra, pois, esta banalidade. A condição de vedeta é a especialização do viver aparente, o objeto da identificação com a vida aparente sem profundidade, que deve compensar as infinitas subdivisões das especializações produtivas efetivamente vividas. As vedetas existem para figurar tipos variados de estilos de vida e de estilos de compreensão da sociedade, livres de se exercerem globalmente. Elas encarnam o resultado inacessível do trabalho social, ao arremedar subprodutos deste trabalho que são magicamente transferidos acima dele como sua finalidade: o poder e as férias, a decisão e o consumo, que estão no começo e no fim de um processo indiscutido. Lá, é o poder governamental que se personaliza em pseudovedeta; aqui, é a vedeta do consumo que se faz plebiscitar inserindo pseudopoder sobre o vivido. Mas, assim como estas atividades da vedeta não são realmente globais, elas não são variadas.

O agente do espetáculo posto em cena como vedeta é o contrário do indivíduo, o inimigo do indivíduo, tanto em si próprio como, evidentemente, nos outros. Passando no espetáculo como modelo de identificação, renunciou a toda a qualidade autônoma, para ele próprio se identificar com a lei geral da obediência ao curso das coisas. A vedeta do consumo, mesmo sendo exteriormente a representação de diferentes tipos de personalidade, mostra cada um destes tipos como tendo igualmente acesso à totalidade do consumo e encontrando aí, de igual modo, a sua felicidade. A vedeta da decisão deve possuir o stock completo daquilo que foi admitido como qualidades humanas. Assim, entre estas, as divergências oficiais são anuladas pela semelhança oficial, que é o pressuposto da sua excelência em tudo. Khruchtchev tornara-se general para decidir a batalha de Kursk, não no campo de batalha, mas no vigésimo aniversário, quando ele se achava senhor do Estado. Kennedy permanecera orador, ao ponto de pronunciar seu elogio sobre o próprio túmulo, visto que Théodore Sorensen continuava, nesse momento, a redigir para o sucessor os discursos naquele estilo que tanto tinha concorrido para fazer reconhecer a personalidade do desaparecido. As pessoas admiráveis nas quais o sistema se personifica são bem conhecidas por não serem aquilo que são; tornaram-se grandes homens ao descer abaixo da realidade da mais pequena vida individual, e cada qual o sabe.

62

A falsa escolha na abundância espetacular, escolha que reside na justaposição de espetáculos concorrenciais e solidários, como na justaposição dos papéis a desempenhar (principalmente significados e trazidos por objetos), é ao mesmo tempo exclusiva e imbricada, desenvolve-se numa luta de qualidades fantasmagóricas destinadas a apaixonar a adesão à trivialidade quantitativa. Assim renascem falsas aposições arcaicas, regionalismos ou racismos encarregados de transfigurar em fantástica superioridade ontológica a vulgaridade dos lugares hierárquicos no consumo. Deste modo, recompõe-se a interminável série dos afrontamentos irrisórios, mobilizando um interesse sublúdico, que vai desde desporto competitivo até as eleições. Lá onde se instalou o consumo abundante, uma oposição espetacular principal entre a juventude e os adultos vem no primeiro plano dos papéis falaciosos: porque em parte alguma existe o adulto senhor da sua vida, e a juventude, a mudança do que existe, não é de modo nenhum propriedade destes homens, que são agora jovens, mas do sistema econômico, o dinamismo do capitalismo. São as coisas que reinam e que são jovens; que se deitam fora e se substituem a si próprias.

63

É a unidade da miséria que se esconde sob as aposições espetaculares. Se formas diversas da mesma alienação se combatem sob as máscaras da escolha total, é porque elas estão todas identificadas com contradições reais recalcadas. Conforme as necessidades do estado particular da miséria, que ele desmente e mantém, o espetáculo existe sob uma forma concentrada ou sob uma forma difusa. Nos dois casos, ele não é mais do que uma imagem de unificação feliz, cercada de desolação e de pavor, no centro tranquilo da infelicidade.

64

O espetacular concentrado pertence essencialmente ao capitalismo burocrático, embora possa ser importado como técnica do poder estatal sobre economias mistas mais atrasadas, ou em certos momentos de crise do capitalismo avançado. A própria propriedade burocrática é efetivamente concentrada, no sentido de que o burocrata individual não tem relações com a posse da economia global a não ser por intermédio da comunidade burocrática, a não ser enquanto membro desta comunidade. Além disso, a produção menos desenvolvida das mercadorias apresenta-se, também, sob uma forma concentrada: a mercadoria que a burocracia detém é o trabalho social total, e o que ela revende à sociedade é a sua sobrevivência em bloco. A ditadura da economia burocrática não pode deixar às massas exploradas nenhuma margem notável de escolha, visto que ela teve de escolher tudo por si própria, e que toda outra escolha exterior, quer diga respeito à alimentação ou à música, é já a escolha da sua destruição completa. Ela deve acompanhar-se de uma violência permanente. A imagem imposta do bem, no seu espetáculo, recolhe a totalidade do que existe oficialmente e concentra-se normalmente num único homem, que é a garantia da sua coesão totalitária. Com esta vedeta absoluta, deve cada um identificar-se magicamente, ou desaparecer. Pois trata-se do senhor do seu não-consumo, e da imagem heróica de um sentido aceitável para a exploração absoluta, que é na realidade a acumulação primitiva acelerada pelo terror. Na medida em que cada chinês deve aprender Mao, e assim ser Mao, ele não tem mais nada para ser. Lá onde domina o espetacular concentrado domina também a polícia.

65

O espetacular difuso acompanha a abundância das mercadorias, o desenvolvimento não perturbado do capitalismo moderno. Aqui, cada mercadoria considerada isoladamente está justificada em nome da grandeza da produção da totalidade dos objetos, de que o espetáculo é um catálogo apologético. Afirmações inconciliáveis amontoam-se na cena do espetáculo unificado da economia abundante; do mesmo modo que diferentes mercadorias-vedetas sustentam, simultaneamente, os seus projetos contraditórios de ordenação da sociedade, onde o espetáculo dos automóveis implica uma circulação perfeita, que destrói a parte velha da cidade, enquanto o espetáculo da própria cidade tem necessidade de bairros-museus. Portanto, a satisfação já problemática, que é reputada pertencer ao consume do conjunto, está imediatamente falsificada pelo fato do consumidor real não poder receber diretamente mais do que uma sucessão de fragmentos desta felicidade mercantil, fragmentos dos quais a qualidade atribuída ao conjunto está evidentemente ausente.

66

Cada mercadoria determinada luta para si própria, não pode reconhecer as outras, pretende impor-se em toda a parte como se fosse a única. O espetáculo é, então, o canto épico deste afrontamento, que a queda de nenhuma Ílion poderia concluir. O espetáculo não canta os homens e as suas armas, mas as mercadorias e as suas paixões. É nesta luta cega que cada mercadoria, ao seguir a sua paixão, realiza, de fato, na inconsciência algo de mais elevado: o devir-mundo da mercadoria, que é também o devir-mercadoria do mundo. Assim, por uma astúcia da razão mercantil o particular-mercadoria gasta-se ao combater, enquanto a forma-mercadoria tende para a sua realização absoluta.

67

A satisfação, que a mercadoria abundante já não pode fornecer pelo uso, acaba sendo procurada no reconhecimento do seu valor enquanto mercadoria: com o uso da mercadoria bastando-se a si mesmo; e, para o consumidor, basta a efusão religiosa para com a liberdade soberana da mercadoria. As ondas de entusiasmo por um dado produto, apoiado e relançado por todos os meios de formação, propagam-se, assim, a grande velocidade. Um estilo de roupa surge de um filme; uma revista lança clubes que por sua vez lançam panóplias diversas. O gadget(*) exprime os fatos de tal forma que, no momento em que a massa das mercadorias cai na aberração, o próprio aberrante se tornar uma mercadoria especial. Nos porta-chaves publicitários, por exemplo, que não mais são comprados, há dons suplementares que acompanham os objetos de prestigio vendidos ou resultantes da troca em sua própria esfera. Nestes penduricalhos pode-se reconhecer a manifestação do abandono místico à transcendência da mercadoria. Aquele que coleciona porta-chaves que acabam de ser fabricados para colecionadores acumula as indulgências da mercadoria, um sinal glorioso da sua presença real entre os seus fiéis. O homem reificado proclama a prova da sua intimidade com a mercadoria. Como nos arrebatamentos dos convulsionários ou miraculados do velho fetichismo religioso, o fetichismo da mercadoria atinge momentos de excitação fervente. O único uso que ainda se exprime aqui é o uso fundamental da submissão.

68

Sem dúvida, a pseudo-necessidade imposta no consumo moderno não se opõe a nenhuma necessidade ou desejo autêntico, que não seja, ele próprio, modelado pela sociedade e pela sua história. Mas a mercadoria abundante está lá como a ruptura absoluta de um desenvolvimento orgânico das necessidades sociais. A sua acumulação mecânica liberta um artificial ilimitado, perante o qual o desejo vivo fica desarmado. A potência cumulativa de um artificial independente conduz em toda parte à falsificação da vida social.

69

Na imagem da unificação feliz da sociedade pelo consumo, a divisão real está apenas suspensa até à próxima não-completa realização no consumível. Cada produto particular que deve representar a esperança de um atalho fulgurante para aceder, enfim, à terra prometida do consumo total, é, por sua vez, apresentado cerimoniosamente como a singularidade decisiva. Mas como no caso da difusão instantânea das modas de nomes aparentemente aristocráticos que se vão encontrar usados por quase todos os indivíduos da mesma idade, o objeto do qual se espera um poder singular não pôde ser proposto à devoção das massas senão porque ele foi tirado de um número de exemplares suficientemente grande para ser consumido massivamente. O carácter prestigioso deste qualquer produto não Ihe vem senão de ter sido colocado por um momento no centro da vida social, como o mistério revelado da finalidade da produção. O objeto, que era prestigioso no espetáculo, torna-se vulgar no instante em que entra na casa do consumidor ao mesmo tempo que na casa de todos os outros. Ele revela demasiado tarde a sua pobreza essencial, que retira da miséria da sua produção. Mas é já um outro objeto que traz a justificação do sistema e a exigência de ser reconhecido.

70

A própria impostura da satisfação deve denunciar-se ao substituir-se ao seguir a mudança dos produtos e das condições gerais da produção. Aquilo que afirmou, com o mais perfeito descaramento, a sua própria excelência definitiva muda não só no espetáculo difuso, mas também no espetáculo concentrado, onde apenas o sistema deve continuar: Estaline, enquanto mercadoria fora de moda, é denunciado por aqueles mesmos que o impuseram. Cada nova mentira da publicidade é também a confissão da sua mentira precedente. Cada derrocada de uma figura do poder totalitário revela a comunidade ilusória que a aprovava unanimemente e que não era mais do que um aglomerado de solidões sem ilusões.

71

O que o espetáculo apresenta como perpétuo é fundado sobre a mudança, e deve mudar com a sua base. O espetáculo é absolutamente dogmático e, ao mesmo tempo, não pode levar a nenhum dogma sólido. Para ele nada pára; é o estado que Ihe é natural e, todavia, o mais contrário à sua inclinação.

72

A unidade irreal que o espetáculo proclama é a máscara da divisão de classe sobre a qual repousa a unidade real do modo de produção capitalista. O que obriga os produtores a participar na edificação do mundo é também o que disso os afasta. A mesma coisa que relaciona os homens libertos nas suas limitações locais e nacionais é também aquilo que os distancia. O que obriga ao aprofundamento do racional é também o que alimenta o racional da exploração hierárquica e da repressão. O que constitui o poder abstrato da sociedade constitui a sua não-liberdade concreta.

(*) Em inglês no original (N. T.).

Guy Debord


GUY DEBORD

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

CAPÍTULO IV

O PROLETARIADO COMO SUJEITO E COMO REPRESENTAÇÃO

Direito igual a todos os bens e aos gozos deste mundo, destruição de toda a autoridade, negação de todo freio moral, essas coisas foram, no fundo, a razão de ser da insurreição de 18 de março e a carta magna da temível associação que Ihe forneceu um exército.

Inquérito parlamentar sobre a insurreição de 18 de Março

73

O movimento real, que suprime as condições acima, governa a sociedade desde a vitória econômica da burguesia, e de forma visível desde que essa vitória se traduziu políticamente. O desenvolvimento das forças produtivas arrebentou com as antigas relações de produção e toda ordem estática se desfaz em pó. Tudo o que era absoluto tornou-se histórico.

74

Lançados na história, devendo participar no trabalho e nas lutas que a constituem, os homens se vêem obrigados a encarar suas relações de uma maneira desiludida. Esta história não tem um objeto distinto daquele que realiza por si mesma, embora a última visão metafísica inconsciente da época histórica tenha encarado o progresso na produção, através do qual a história se desenrolou, como o próprio objeto da história. O sujeito da história não pode ser senão o vivente produzindo-se a si mesmo, tomando-se senhor e possuidor do seu mundo que é a história, e sendo consciente de seu papel.

75

Como uma única corrente, a luta de classes se desenvolveu ao longo da época revolucionária, inaugurada pela ascensão da burguesia, e pelo pensamento da história, a dialética, o pensamento que não pára a procura do sentido do sendo, mas que se eleva ao conhecimento da dissolução de tudo o que é; e no movimento dissolve toda a separação.

76

Hegel não interpreta o mundo, mas a transformação do mundo. Interpretando somente essa transformação, Hegel não é mais do que o acabamento filosófico da filosofia. Ele quer compreender um mundo que se faz por si mesmo. Este pensamento histórico não é outra coisa senão a consciência que sempre chega tarde demais, e que enuncia a justificação post festum. Assim, ela não ultrapassa a separação senão no pensamento. O paradoxo, que consiste em restringir o sentido e a definição de toda a realidade ao seu acabamento histórico, resulta do simples fato do pensador das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII não ter procurado na sua filosofia outra coisa senão a reconciliação com seu resultado. «Mesmo enquanto filosofia da revolução burguesa, ela não exprime todo o processo desta revolução, mas somente sua última conclusão. Neste sentido, ela é uma filosofia não da revolução, mas da restauração» (Karl Korsch, Teses sobre Hegel e a revolução). Hegel fez, em última instância, o trabalho do filósofo, «a glorificação do que existe», mas o que existia para ele já não podia ser outra coisa senão a totalidade do movimento histórico. A posição exterior do pensamento, sendo de fato mantida, não podia ser encoberta senão pela sua identificação a um projeto prévio do Espírito, herói absoluto que fez o que quis e que quis o que fez, e cuja plena realização coincide com o presente. Assim, a filosofia que morre no pensamento da história já não pode glorificar seu mundo senão renegando-o, porque para tomar a palavra é-lhe necessário supor acabada esta história total à qual ela tudo reduziu, encerrando a sessão do único tribunal onde pode ser pronunciada a sentença da verdade.

77

Quando o proletariado manifesta, pela sua própria existência em atos, que este pensamento da história não foi esquecido, o desmentido da conclusão é a confirmação do método.

78

O pensamento da história não pode ser salvo senão na forma de um pensamento prático; e a prática do proletariado como classe revolucionária não pode ser menos que sua consciência histórica operando sobre a totalidade do seu mundo. Todas as correntes teóricas do movimento operário revolucionário saíram de um afrontamento crítico com o pensamento de Hegel, de Marx, assim como de Stirner e Bakunine.

79

O caráter inseparável entre teoria de Marx e o método hegeliano é por si só inseparável do caráter revolucionário desta teoria, isto é, da sua verdade. É nisto que esta primeira relação foi geralmente ignorada ou mal compreendida, ou ainda denunciada como o fraco daquilo que se tornava falaciosamente uma doutrina marxista. Bernstein, em Socialismo teórico e Social-democracia prática, revela perfeitamente esta ligação do método dialético e da tomada de partido histórico ao deplorar as previsões pouco científicas do Manifesto de 1847 sobre a iminência da revolução proletária na Alemanha: «Esta auto-sugestão histórica, tão errada que qualquer visionário político que aparecesse poderia encontrar melhor, seria incompreensível num Marx, que à época tinha já seriamente estudado economia, se não se estivesse permeada pelo produto de um resto da dialética antitética hegeliana, da qual Marx, tanto quanto Engels, nunca soube desfazer-se completamente. Naqueles tempos de efervescência geral, isso foi-lhe ainda mais fatal».

80

A inversão que Marx efetua, através de um «salvamento por transferência» do pensamento das revoluções burguesas, não consiste em substituir trivialmente pelo desenvolvimento materialista das forças produtivas o percurso do Espírito hegeliano, indo ao seu próprio encontro no tempo, a sua objetivação sendo idêntica à sua alienação, e as suas feridas históricas não deixando cicatrizes. A história tornada real já não tem fim. Marx arruinou a posição separada de Hegel perante o que acontece, e a contemplação dum agente supremo exterior, qualquer que ele seja. A teoria já não tem a conhecer senão o que ela faz. É, pelo contrário, a contemplação do movimento da economia, no pensamento dominante da sociedade atual, que é a herança não-reivindicativa da parte não-dialética na tentativa hegeliana de um sistema circular: é uma aprovação que perdeu a dimensão do conceito, e que já não tem necessidade dum hegelianismo para se justificar, porque o movimento que se trata de louvar já não é senão um setor sem pensamento do mundo, cujo desenvolvimento mecânico domina efetivamente o todo. O projeto de Marx é o de uma história consciente. O quantitativo que sobrevêm ao desenvolvimento cego das forças produtivas simplesmente econômicas deve transformar-se em apropriação histórica qualitativa. A crítica da economia política é o primeiro ato deste fim de pré-história: «De todos os instrumentos de produção, o maior poder produtivo é a própria classe revolucionária.»

81

O que liga estreitamente a teoria de Marx ao pensamento científico é a compreensão racional das forças que se exercem realmente na sociedade. Mas ela é fundamentalmente um além do pensamento científico, onde este não é conservado senão sendo superado: trata-se de uma compreensão da luta ,e de nenhum modo da lei. «Nós só conhecemos uma ciência: a ciência da história», diz A Ideologia Alemã.

82

A época burguesa, que pretende fundar cientificamente a história, negligencia o fato de que esta ciência disponível teve, antes de mais nada, de ser ela própria fundada historicamente com a economia. Inversamente, a história não depende radicalmente deste conhecimento senão enquanto esta história permanece história econômica. Quanto do papel da história na própria economia -- o processo global que modifica os seus próprios dados científicos de base -- pôde ser, aliás, neglicenciado pelo ponto de vista da observação científica, é o que mostra a vaidade dos cálculos socialistas que acreditavam ter estabelecido a periodicidade exata das crises; e desde que a intervenção constante do Estado logrou compensar o efeito das tendências à crise, o mesmo gênero de raciocínio vê neste equilíbrio uma harmonia econômica definitiva. O projeto de superar a economia, o projeto de tomar posse da história, se ele deve conhecer -- e trazer a si -- a ciência da sociedade, não pode, ele mesmo, ser científico. Nesse último movimento, que crê dominar a história presente através de um conhecimento científico, o ponto de vista revolucionário permaneceu burguês.

83

As correntes utópicas do socialismo, embora elas próprias fundadas historicamente na crítica da organização social existente, podem ser justamente qualificadas de utópicas na medida em que recusam a história -- isto é, a luta real em curso, assim como o movimento do tempo para além da perfeição inalterável da sua imagem de sociedade feliz --, mas não porque eles recusassem a ciência. Os pensadores utópicos são, pelo contrário, inteiramente dominados pelo pensamento científico, tal como ele se tinha imposto nos séculos precedentes. Eles procuram o acabamento desse sistema racional geral: eles não se consideram de nenhum modo profetas desarmados, porque crêem no poder social da demonstrarão científica, e mesmo, no caso do saint-simonismo, na tomada do poder pela ciência. Como, diz Sombart, «quereriam eles arrancar pela luta, aquilo que deveria ser provado?» Contudo, a concepção científica dos utópicos não se estende ao conhecimento de que os grupos sociais têm interesses numa situação existente, que eles tem forças para mantê-la, e, igualmente, formas de falsa-consciência correspondentes a tais posições. Ela permanece, portanto, muito aquém da realidade histórica do desenvolvimento da própria ciência, que se encontrou em grande parte orientada pela procura social resultante de tais fatores, que seleciona não só o que pode ser admitido, mas também o que pode ser procurado. Os socialistas utópicos, ao ficarem prisioneiros do modo de exposição da verdade científica, concebem esta verdade segundo a sua pura imagem abstrata, tal como a tinha visto impor-se um estágio muito anterior da sociedade. Como o notava Sorel, é segundo o modelo da astronomia que os utópicos pensam descobrir e demonstrar as leis da sociedade. A harmonia por eles visada, hostil à história, decorre duma tentativa de aplicação à sociedade da ciência menos dependente da história. Ela tenta fazer-se reconhecer com a mesma inocência experimental do newtonismo, e o destino feliz, constantemente postulado, «desempenha na sua ciência social um papel análogo ao que cabe à inércia na mecânica racional» (Materiais para uma teoria do proletariado).

84

O lado determinista-científico no pensamento de Marx foi justamente a brecha pela qual penetrou o processo de «ideologização», enquanto vivo, e ainda mais na herança teórica deixada ao movimento operário. A chegada do sujeito da história é ainda adiada, e é a ciência histórica por excelência, a economia, que tende cada vez mais a garantir a necessidade da sua própria negação futura. Mas, deste modo, é repelida para fora do campo da visão teórica a prática revolucionária que é a única verdade desta negação. Assim, importa estudar pacientemente o desenvolvimento econômico e nele admitir ainda, com uma tranquilidade hegeliana, a dor, o que no seu resultado permanece «cemitério das boas intenções». Descobre-se que agora, segundo a ciência das revoluções, a consciência chega sempre cedo demais, e deverá ser ensinada. «A história não nos deu razão, a nós e a todos os que pensavam como nós. Ela mostrou claramente que o estado do desenvolvimento econômico do continente estava, então, ainda bem longe de estar amadurecido...», dirá Engels em 1895. Durante toda a sua vida, Marx manteve o ponto de vista unitário da sua teoria, mas o enunciado da sua teoria colocou-se no terreno do pensamento dominante ao precisar-se, sob a forma de criticas de disciplinas particulares, principalmente a crítica da ciência fundamental da sociedade burguesa, a economia política. É esta mutilação, ulteriormente aceita como definitiva, que constitui o «marxismo».

85

A carência na teoria de Marx é naturalmente a carência da luta revolucionária do proletariado da sua época. A classe operária não decretou a revolução permanente, na Alemanha de 1848; a Comuna foi vencida pelo isolamento. A teoria revolucionária não pôde, pois, atingir ainda a sua própria existência total. Reduzir-se a defendê-la e a precisá-la na separação do trabalho douto, no British Museum, implicava uma perda na própria teoria. São precisamente as justificações científicas tiradas do futuro do desenvolvimento da classe operária, e a prática organizacional combinada com estas justificações, que se tornarão obstáculos à consciência proletária num estágio mais avançado.

86

Toda a insuficiência teórica na defesa cientifica da revolução proletária pode ser reduzida, tanto no conteúdo assim como na forma do enunciado, a uma identificação do proletariado com a burguesia, do ponto de vista da tomada revolucionária do poder.

87

A tendência a fundar uma demonstração da legalidade científica do poder proletário, com o argumento de experimentações repetidas do passado, obscurece, desde o Manifesto, o pensamento histórico de Marx, ao fazê-lo sustentar uma imagem linear do desenvolvimento dos modos de produção, impulsionando lutas de classes que terminariam, por sua vez, «numa transformação revolucionária de toda sociedade ou pela mútua destruição das classes em luta». Mas na realidade observável da história, do mesmo modo que o «modo de produção asiático», como Marx algures o constatava, conservou sua imobilidade apesar de todos os afrontamentos de classes. As jacqueries de servos nunca venceram os barões, nem as revoltas de escravos da Antiguidade foram vencidas pelos homens livres. O esquema linear perde de vista, antes de tudo, o fato de que a burguesia é a única classe revolucionária que jamais venceu; ao mesmo tempo que ela é a única para a qual o desenvolvimento da economia foi causa e consequência do seu poder sobre a sociedade. A mesma simplificação conduziu Marx a negligenciar o papel econômico do Estado na gestão de uma sociedade de classes. Se a burguesia ascendente pareceu franquear a economia do Estado, é somente na medida em que o Estado antigo se confundia com o instrumento de uma opressão de classe numa economia estática. A burguesia desenvolveu o seu poderio econômico autônomo no período medieval de enfraquecimento do Estado, no momento de fragmentação feudal de poderes equilibrados. Mas o Estado moderno que, pelo mercantilismo, começou a apoiar o desenvolvimento da burguesia, e que finalmente se tornou o seu Estado na hora do «laisser faire, laisser passer», vai revelar-se ulteriormente dotado de um poder central na gestão calculada do processo econômico. Marx pôde, no entanto, descrever no bonapartismo este esboço da burocracia estatal moderna, fusão do capital e do Estado, constituição de um «poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força pública organizada para a sujeição social», onde a burguesia renuncia a toda a vida histórica que não seja a sua redução à história econômica das coisas, e se presta a «ser condenada ao mesmo nada político que as outras classes». Aqui, estão já colocadas as bases sociopolíticas do espetáculo moderno, que, negativamente, define o proletariado como único pretendente à vida histórica.

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As duas únicas classes que correspondem efetivamente à teoria de Marx, as duas classes puras às quais leva toda a análise no Capital, a burguesia e o proletariado, são igualmente as duas únicas classes revolucionárias da história, mas a títulos diferentes: a revolução burguesa está feita; a revolução proletária é um projeto, nascido na base da precedente revolução, mas dela diferindo qualitativamente. Ao negligenciar a originalidade do papel histórico da burguesia encobre-se a originalidade concreta deste projeto proletário, que nada pode atingir senão ostentando as suas próprias cores e conhecendo «a imensidade das suas tarefas». A burguesia veio ao poder porque é a classe da economia em desenvolvimento. O proletariado não pode ele próprio ser o poder, senão tornando-se a classe da consciência. O amadurecimento das forças produtivas não pode garantir um tal poder, mesmo pelo desvio da despossessão crescente que traz consigo. A tomada jacobina do Estado não pode ser um instrumento seu. Nenhuma ideologia Ihe pode servir para disfarçar fins parciais em fins gerais, porque ele não pode conservar nenhuma realidade parcial que seja efetivamente sua.

89

Se Marx, num período determinado da sua participação na luta do proletariado, esperou demasiado da previsão científica, ao ponto de criar a base intelectual das ilusões do economismo, sabe-se que a tal não sucumbiu pessoalmente. Numa carta bem conhecida, de 7 de Dezembro de 1867, acompanhando um artigo onde ele próprio critica O Capital, artigo que Engels devia fazer passar na Imprensa como se emanasse de um adversário, Marx expôs claramente o limite da sua própria ciência: «... A tendência subjetiva do autor (que Ihe impunham talvez a sua posição política e o seu passado), isto é, a maneira como ele apresenta aos outros o resultado último do movimento atual, do processo social atual, não tem nenhuma relação com a sua análise real.» Assim Marx, ao denunciar ele próprio as «conclusões tendenciosas» da sua análise objetiva, e pela ironia do «talvez» relativo às escolhas extracientíficas que se Ihe teriam imposto, mostra ao mesmo tempo a chave metodológica da fusão dos dois aspectos.

90

É na própria luta histórica que é preciso realizar a fusão do conhecimento e da ação, de tal modo que cada um destes termos coloque no outro a garantia da sua verdade. A constituição da classe proletária em sujeito é a organização das lutas revolucionárias e a organização da sociedade no momento revolucionário: é aqui que devem existir as condições práticas da consciência, nas quais a teoria da práxis se confirma tomando-se teoria prática. Contudo, esta questão central da organização foi a menos considerada pela teoria revolucionária na época em que se fundava o movimento operário, isto é, quando esta teoria possuía ainda o carácter unitário vindo do pensamento da história (e que ela se tinha justamente dado por tarefa desenvolver até uma prática histórica unitária). É, pelo contrário, o lugar da inconsequência para esta teoria, ao admitir o retomar de métodos de aplicação estatais e hierárquicos copiados da revolução burguesa. As formas de organização do movimento operário desenvolvidas sobre esta renúncia da teoria tenderam por sua vez a interditar a manutenção de uma teoria unitária, dissolvendo-a em diversos conhecimentos especializados e parcelares. Esta alienação ideológica da teoria já não pode, então, reconhecer a verificação prática do pensamento histórico unitário que ela traiu, quando uma tal verificação surge na luta espontânea dos operários; ela pode somente concorrer para reprimir-lhe a manifestação e a memória. Todavia, estas formas históricas aparecidas na luta são justamente o meio prático que faltava à teoria para que ela fosse verdadeira. Elas são uma exigência da teoria, mas que não tinha sido formulada teoricamente. O soviete não era uma descoberta da teoria. E a mais alta verdade teórica da Associação Internacional dos Trabalhadores, era já a sua própria existência na prática.

91

Os primeiros sucessos da luta da Internacional levavam-na a libertar-se das influências confusas da ideologia dominante que nela subsistiam. Mas a derrota e a repressão que ela cedo encontrará fizeram passar ao primeiro plano um conflito entre duas concepções da revolução proletária, ambas contendo uma dimensão autoritária, pela qual a auto-emancipação consciente da classe é abandonada. Com efeito, a querela tornada irreconciliável entre os marxistas e os bakuninistas era dupla, tendo ao mesmo tempo por objeto o poder na sociedade revolucionária e a organização presente do movimento, e ao passar dum ao outro destes aspectos, as posições dos adversários invertem-se. Bakunine combatia a ilusão de uma abolição das classes pelo uso autoritário do poder estatal, prevendo a reconstituição de uma classe dominante burocrática e a ditadura dos mais sábios, ou dos que serão reputados como tal. Marx, que acreditava que um amadurecimento inseparável das contradições econômicas e da educação democrática dos operários reduziria o papel de um Estado proletário a uma simples fase de legalização de novas relações sociais, impondo-se objetivamente, denunciava em Bakunine e seus partidários o autoritarismo duma elite conspirativa que se tinha deliberadamente colocado acima da Internacional, e que formulava o extravagante desígnio de impor à sociedade a ditadura irresponsável dos mais revolucionários, ou dos que se teriam a si próprios designado como tal. Bakunine recrutava efetivamente os seus partidários sob tal perspectiva: «Pilotos invisíveis no meio da tempestade popular, nós devemos dirigi-la, não por um poder ostensivo mas pela ditadura coletiva de todos os aliados. Ditadura sem faixa, sem título, sem direito oficial, e quanto mais poderosa menos terá aparências de poder». Assim se opuseram duas ideologias da revolução operária, contendo cada uma delas uma critica parcialmente verdadeira, mas perdendo a unidade do pensamento da história e instituindo-se, a si próprias, em autoridades ideológicas. Organizações poderosas, como a social-democracia alemã e a Federação Anarquista Ibérica, serviram fielmente uma e outra destas ideologias; e em toda parte o resultado foi grandemente diferente do que era desejado.

92

O fato de olhar a finalidade da revolução proletária como algo imediatamente presente constitui, ao mesmo tempo, a grandeza e a fraqueza da luta anarquista real (porque nas suas variantes individualistas, as pretensões do anarquismo permanecem irrisórias). Do ponto de vista do pensamento histórico da moderna luta de classes, o anarquismo coletivista retém unicamente sua conclusão, e sua exigência absoluta desta conclusão traduz-se igualmente no seu desprezo deliberado pelo método. Assim, sua crítica da luta política permaneceu abstrata, enquanto sua escolha da luta econômica não se afirmou, ela própria, senão em função da ilusão de uma solução definitiva arrancada de uma só vez nesse terreno, no dia da greve geral ou da insurreição. Os anarquistas têm um ideal a realizar. O anarquismo é a negação ainda ideológica do Estado e das classes, isto é, das próprias condições sociais da ideologia separada. É a ideologia da pura liberdade que iguala tudo e que afasta toda a ideia do mal histórico. Este ponto de vista da fusão de todas as exigências parciais deu ao anarquismo o mérito de representar a recusa das condições existentes no conjunto da vida, e não em torno de uma especialização crítica privilegiada, mas esta fusão, ao ser considerada no absoluto, segundo o capricho individual, antes da sua realização efetiva condenou também o anarquismo a uma incoerência demasiado fácil de constatar. O anarquismo não tem senão a redizer e a repor em jogo, em cada luta, a sua simples conclusão total, porque esta primeira conclusão era desde a origem identificada com a concretização integral do movimento. Bakunine podia pois escrever em 1873, ao abandonar a Federação do Jura: «Nos últimos nove anos desenvolvemos no seio da Internacional mais ideias do que o necessário para salvar o mundo, [como] se as ideias por elas mesmas pudessem salvá-lo, e desafio quem quer que seja a inventar uma nova. O tempo já não está para ideias, mas para fatos e atos». Sem dúvida, esta concepção conserva do pensamento histórico do proletariado a certeza de que as ideias devem tornar-se práticas, mas ela abandona o terreno histórico ao supor que as formas adequadas a esta passagem à prática já estão encontradas e não variarão mais.

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Os anarquistas, que se distinguem explicitamente do conjunto do movimento operário pela sua convicção ideológica, vão reproduzir entre si esta separação das competências, ao fornecer um terreno favorável à dominação informal, sobre toda a organização anarquista, pelos propagandistas e defensores da sua própria ideologia, especialistas, via de regra, medíocres na medida em que sua atividade intelectual se reduz principalmente à repetição de algumas verdades definitivas. O respeito ideológico da unanimidade na decisão favoreceu antes de mais nada a autoridade incontrolada, na própria organização, dos especialistas da liberdade; e o anarquismo revolucionário espera do povo liberto o mesmo gênero de unanimidade, obtida pelos mesmos meios. De resto, a recusa de considerar a oposição das condições entre uma minoria agrupada na luta atual e a sociedade dos indivíduos livres alimentou uma permanente separação dos anarquistas no momento da decisão comum, como o mostra o exemplo de uma infinidade de insurreições anarquistas na Espanha, limitadas e esmagadas no plano local.

94

A ilusão, sustentada mais ou menos explicitamente no anarquismo autêntico, é a iminência permanente de uma revolução que deverá dar razão à ideologia, e ao modo de organização prático derivado da ideologia, ao realizar-se instantaneamente. O anarquismo conduziu realmente, em 1936, uma revolução social e o esboço, o mais avançado de todos os tempos, de um poder proletário. Nesta circunstância, é preciso ainda notar, por um lado, que o sinal de uma insurreição geral tinha sido imposto pelo pronunciamento do exército. Por outro lado, na medida em que esta revolução não se concluiu nos primeiros dias, pela existência de um poder franquista em metade do país, apoiado fortemente pelo estrangeiro no momento em que o resto do movimento proletário internacional já estava vencido, e pela sobrevivência das forças burguesas ou de outros partidos operários estatalistas no campo da República, o movimento anarquista organizado mostrou-se incapaz de alargar as meias-vitórias da revolução, e até mesmo de defendê-las. Os seus reconhecidos chefes tornaram-se ministros e reféns do Estado burguês que destruía a revolução para perder a guerra civil.

95

O «marxismo ortodoxo» da II Internacional é a ideologia científica da revolução socialista, que identifica toda sua verdade ao processo objetivo na economia e ao progresso dum reconhecimento desta necessidade na classe operária educada pela organização. Esta ideologia reencontra a confiança na demonstração pedagógica que tinha caracterizado o socialismo utópico, mas dotado de uma referência contemplativa do curso da história: porém, tal atitude perdeu tanto a dimensão hegeliana de uma história total como perdeu a imagem imóvel da totalidade presente na crítica utópica (no mais alto grau, em Fourier).

É de tal atitude científica, que não podia fazer mais que relançar simetricamente escolhas éticas, que procedem as tolices de Hilferding quando este afirma que o fato de reconhecer a necessidade do socialismo não dá uma «indicação sobre qual atitude prática adotar. Porque uma coisa é reconhecer uma necessidade, e outra é pôr-se ao serviço desta necessidade» (Capital financeiro). Aqueles que não reconheceram que o pensamento unitário da história, para Marx e para o proletariado revolucionário, não era em nada distinto de uma atitude prática a adotar, deviam normalmente ser vítimas da prática que tinham simultaneamente adotado.

96

A ideologia da organização social-democrata submetia-a ao poder dos professores que educavam a classe operária, e a forma de organização adotada era a forma adequada a esta aprendizagem passiva. A participação dos socialistas da II Internacional nas lutas políticas e econômicas era certamente concreta, mas profundamente não critica. Ela era conduzida, em nome da ilusão revolucionária, segundo uma prática manifestamente reformista. Assim, a ideologia revolucionária devia ser despedaçada pelo próprio sucesso daqueles que consigo a traziam. A separação dos deputados e dos jornalistas no movimento arrastava para o modo de vida burguês aqueles mesmos que eram recrutados entre os intelectuais burgueses. A burocracia sindical constituía corretores da força de trabalho, vendendo como mercadoria ao seu justo preço aqueles mesmos que eram recrutados a partir das lutas dos operários industriais e deles extraídos. Para que a atividade de todos eles conservasse algo de revolucionário, teria sido necessário que o capitalismo se encontrasse oportunamente incapaz de suportar economicamente este reformismo que politicamente ele tolerava na sua agitação legalista. A incompatibilidade que a sua ciência garantia era a cada instante desmentida pela história.

97

Esta contradição, cuja realidade Bernstein, por ser o social-democrata mais afastado da ideologia política e o mais francamente ligado à metodologia da ciência burguesa, teve a honestidade de querer mostrar -- e o movimento reformista dos operários ingleses, ao prescindir da ideologia revolucionária, tinha-o mostrado também -- não devia, contudo, ser demonstrada sem réplica senão pelo próprio desenvolvimento histórico. Bernstein, embora cheio de ilusões quanto ao resto, tinha negado que uma crise da produção capitalista viesse miraculosamente obrigar os socialistas ao poder que não queriam herdar da revolução senão por esta legítima sagração. O momento de profunda perturbação social que surgiu com a primeira guerra mundial, embora tivesse sido fértil em tomada de consciência, demonstrou duplamente que a hierarquia social-democrata não tinha de modo algum tornado teóricos os operários alemães: de início, quando a grande maioria do partido aderiu à guerra imperialista, em seguida, quando na derrota ela esmagou os revolucionários spartakistas. O ex-operário Ebert acreditava ainda no pecado, porque confessava odiar a revolução «como o pecado». E o mesmo dirigente mostrou-se bom precursor da representação socialista que devia, pouco depois, opor-se como inimigo absoluto ao proletariado da Rússia e de algures, ao formular o programa exato desta nova alienação: «Socialismo quer dizer trabalhar muito.»

98

Lenine não foi, como pensador, marxista, outra coisa senão um Kautskista fiel e consequente, que aplicava a ideologia revolucionária deste «marxismo ortodoxo» nas condições russas, condições que não permitiam a prática reformista que a II Internacional seguia em contrapartida. A direção exterior do proletariado, agindo por intermédio de um partido clandestino disciplinado, submetido aos intelectuais que se tornaram «revolucionários profissionais», constitui aqui uma profissão que não quer pactuar com nenhuma profissão dirigente da sociedade capitalista (o regime czarista sendo, de resto, incapaz de oferecer uma tal abertura, cuja base é um estágio avançado do poder da burguesia). Ela assume, assim, a profissão da direção absoluta da sociedade.

99

O radicalismo ideológico autoritário dos bolcheviques estendeu-se, em escala mundial, com a guerra e com o desmoronamento da social-democracia internacional perante a guerra. O fim sangrento das ilusões democráticas do movimento operário tinha feito do mundo inteiro uma Rússia, e o bolchevismo, reinando sobre a primeira ruptura revolucionária que esta época de crise tinha trazido, oferecia ao proletariado de todos os países o seu modelo hierárquico e ideológico, para «falar em russo» à classe dominante. Lenine não criticou o marxismo da II Internacional de ser uma ideologia revolucionária, mas de ter deixado de ser.

100

O mesmo momento histórico, em que o bolchevismo triunfou para si mesmo na Rússia, e onde a social-democracia combateu vitoriosamente para o velho mundo, marca o nascimento acabado de uma ordem de coisas que está no coração da dominação do espetáculo moderno: a representação operária opôs-se radicalmente à classe operária.

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«Em todas as revoluções anteriores, escrevia Rosa Luxemburgo na Rote Fahne de 21 de Dezembro de 1918, os combatentes afrontavam-se de cara descoberta: classe contra classe, programa contra programa. Na presente revolução, as tropas de proteção da antiga ordem não intervêm sob a insígnia das classes dirigentes, mas sob a bandeira de um "partido social-democrata". Se a questão central da revolução estivesse posta aberta e honestamente, capitalismo ou socialismo, nenhuma dúvida, nenhuma hesitação seriam hoje possíveis na grande massa do proletariado.» Assim, alguns dias antes da sua destruição, a corrente radical do proletariado alemão descobria o segredo das novas condições que todo o processo anterior havia criado (para o qual a representação operária tinha grandemente contribuído): a organização espetacular da defesa da ordem existente, o reino central das aparências onde nenhuma «questão central» pode jamais ser colocada «aberta e honestamente». A representação revolucionária do proletariado neste estágio tinha-se tornado, ao mesmo tempo, o fator principal e o resultado central da falsificação geral da sociedade.

102

A organização do proletariado segundo o modelo bolchevique, que tinha nascido do atraso russo e da demissão do movimento operário dos países avançados quanto à luta revolucionária, encontrou, também no atraso russo, todas as condições que levavam esta forma de organização à inversão contra-revolucionária que ela inconscientemente continha no seu germe original; a demissão reiterada da massa do movimento operário europeu perante o Hic Rhodus, hic salta do período de 1918-1920, demissão que incluía a destruição violenta da sua minoria radical, favoreceu o desenvolvimento completo do processo e dele deixou o resultado mentiroso, perante o mundo, como a única solução proletária. O apoderar-se do monopólio estatal da representação e da defesa do poder dos operários, que o partido bolchevique justificou, fê-lo tornar-se o que ele era: o partido dos proprietários do proletariado, eliminando no essencial as formas precedentes de propriedade.

103

Todas as condições da liquidação do czarismo, encaradas no debate teórico sempre insatisfatório das diversas tendências da social-democracia russa, havia vinte anos -- fraqueza da burguesia, peso da maioria camponesa, papel decisivo de um proletariado concentrado e combativo, mas extremamente minoritário no país -- revelaram, afinal, na prática a sua solução, através de um dado que não estava presente nas hipóteses: a burocracia revolucionária que dirigia o proletariado, ao apoderar-se do Estado, deu à sociedade uma nova dominação de classe. A revolução estritamente burguesa era impossível; a «ditadura democrática dos operários e dos camponeses» era vazia de sentido; o poder proletário dos sovietes não podia manter-se, ao mesmo tempo, contra a classe dos camponeses proprietários, a reação branca nacional e internacional, e a sua própria representação exteriorizada e alienada, em partido operário dos senhores absolutos do Estado, da economia, da expressão, e dentro em breve do pensamento. A teoria da revolução permanente de Trotsky e Parvus, à qual Lenine aderiu efetivamente em abril de 1917, era a única a tomar-se verdadeira para os países atrasados em relação ao desenvolvimento social da burguesia, mas só depois da introdução deste fator desconhecido que era o poder de classe da burocracia. A concentração da ditadura nas mãos da representação suprema da ideologia foi defendida da maneira mais consequente por Lenine, nos numerosos afrontamentos da direção bolchevique. Lenine tinha cada vez mais razão contra os seus adversários naquilo que ele sustentava ser a solução implicada pelas escolhas precedentes do poder absoluto minoritário: a democracia, recusada estatalmente aos camponeses, devia sê-lo aos operários, o que levava a recusá-la aos dirigentes comunistas dos sindicatos, em todo o partido, e finalmente até ao topo do partido hierárquico. No X Congresso, no momento em que o soviete de Kronstadt era abatido pelas armas e enterrado sob a calúnia, Lenine pronunciava contra os burocratas esquerdistas, organizados em «Oposição Operária», a conclusão de que Estaline iria alargar a lógica até uma perfeita divisão do mundo: «Aqui ou ali com uma espingarda, mas não com a oposição... Estamos fartos de oposição.»

104

A burocracia, ficando única proprietária de um capitalismo de Estado, assegurou, antes de mais nada, o seu poder no interior através de uma aliança temporária com o campesinato, após Kronstadt, por ocasião da «nova política econômica», tal como o defendeu no exterior, utilizando os operários arregimentados nos partidos burocráticos da III Internacional como força de apoio da diplomacia russa, para sabotar todo o movimento revolucionário e sustentar governos burgueses de que ela esperava um apoio em política internacional (O poder do Kuo-Ming-Tang na China de 1925-1927, a Frente Popular na Espanha e na França, etc.). Mas a sociedade burocrática devia prosseguir o seu próprio acabamento pelo terror exercido sobre o campesinato para realizar a acumulação capitalista primitiva mais brutal da história. Esta industrialização da época estalinista revela a realidade última da burocracia: ela é a continuação do poder da economia, a salvação do essencial da sociedade mercantil mantendo o trabalho-mercadoria. É prova da economia independente que domina a sociedade ao ponto de recriar para os seus próprios fins a dominação de classe que Ihe é necessária: o que se resume em dizer que a burguesia criou um poder autônomo que, enquanto subsistir esta autonomia, pode até mesmo prescindir de uma burguesia. A burocracia totalitária não é «a última classe proprietária da história» no sentido de Bruno Rizzi, mas somente uma classe dominante de substituição para a economia mercantil. A propriedade privada capitalista desfalecente é substituída por um subproduto simplificado, menos diversificado, concentrado em propriedade coletiva da classe burocrática. Esta forma subdesenvolvida de classe dominante é também a expressão do subdesenvolvimento econômico; e não tem outra perspectiva senão a de recuperar o atraso deste desenvolvimento em certas regiões do mundo. É o partido operário, organizado segundo o modelo burguês da separação, que forneceu o quadro hierárquico-estatal a esta edição suplementar da classe dominante. Anton Ciliga notava, numa prisão de Estaline, que «as questões técnicas de organização revelavam-se ser questões sociais» (Lenine em revolução).

105

A ideologia revolucionária, a coerência do separado na qual o leninismo constitui o mais alto esforço voluntarista, ao deter a gestão de uma realidade que a rejeita, com o estalinismo voltará à sua verdade na incoerência. Nesse momento, a ideologia já não é uma arma, mas um fim. A mentira que não é mais desmentida torna-se loucura. A realidade, assim como a finalidade, são dissolvidas na proclamação ideológica totalitária: tudo o que ela diz é tudo o que é. É um primitivismo local do espetáculo, cujo papel é, todavia, essencial no desenvolvimento do espetáculo mundial. A ideologia que se materializa aqui não transformou economicamente o mundo, como o capitalismo chegando ao estágio da abundância; ela só transformou policialmente a percepção.

106

A classe ideológica totalitária no poder é o poder de um mundo reinvertido: quanto mais ela é forte, mais ela afirma que não existe, e a sua força serve-lhe acima de tudo para afirmar a sua inexistência. Ela é modesta nesse único ponto, porque a sua inexistência oficial deve também coincidir com o nec plus ultra do desenvolvimento histórico, que simultaneamente se deveria ao seu infalível comando. Exposta por toda a parte a burocracia deve ser a classe invisível para a consciência, de forma que toda a vida social se torna demente. A organização social da mentira absoluta decorre desta contradição fundamental.

107

O estalinismo foi o reino do terror na própria classe burocrática. O terrorismo que funda o poder desta classe deve também atingir esta classe, porque ela não possui nenhuma garantia jurídica, nenhuma existência reconhecida enquanto classe proprietária que ela poderia alargar a cada um dos seus membros. A sua propriedade real está dissimulada, e ela não se tomou proprietária senão pela via da falsa consciência. A falsa consciência não mantém o seu poder absoluto senão pelo terror absoluto, onde todo o verdadeiro motivo acaba por perder-se. Os membros da classe burocrática no poder não têm o direito de posse sobre a sociedade senão coletivamente, enquanto participantes numa mentira fundamental: é preciso que eles desempenhem o papel do proletariado dirigindo uma sociedade socialista; que sejam os atores fiéis ao texto da infidelidade ideológica. Mas a participação efetiva neste ser mentiroso deve, ela própria, ver-se reconhecida como uma participação verídica. Nenhum burocrata pode sustentar individualmente o seu direito ao poder, pois provar que é um proletário socialista seria manifestar-se como o contrário de um burocrata; e provar que é um burocrata é impossível, uma vez que a verdade oficial da burocracia é a de não ser. Assim, cada burocrata está na dependência absoluta de uma garantia central da ideologia, que reconhece uma participação coletiva ao seu «poder socialista» de todos os burocratas que ela não aniquila. Se os burocratas, considerados no seu conjunto, decidem de tudo, a coesão da sua própria classe não pode ser assegurada senão pela concentração do seu poder terrorista numa só pessoa. Nesta pessoa reside a única verdade prática da mentira no poder: a fixação indiscutível da sua fronteira sempre retificada. Estaline decide sem apelo quem é finalmente burocrata possuidor; isto é, quem deve ser chamado «proletário no poder» ou então «traidor a soldo do Mikado e de Wall Street». Os átomos burocráticos não encontram a essência comum do seu direito senão na pessoa de Estaline. Estaline é esse soberano do mundo que se sabe deste modo a pessoa absoluta, para a consciência da qual não existe espírito mais alto. «O soberano do mundo possui a consciência efetiva do que ele é - o poder universal da efetividade - na violência destrutiva que exerce contra o Soi (*) dos seus sujeitos fazendo-lhe contraste.» Ao mesmo tempo que é o poder que define o terreno da dominação, ele é «o poder devastando esse terreno».

108

Quando a ideologia, tornada absoluta pela posse do poder absoluto, se transforma de um conhecimento parcelar numa mentira totalitária, o pensamento da história foi tão perfeitamente aniquilado que a própria história, ao nível do conhecimento mais empírico, já não pode existir. A sociedade burocrática totalitária vive num presente perpétuo, onde tudo o que sobreveio existe somente para ela como um espaço acessível à sua polícia. O projeto, já formulado por Napoleão, de «dirigir monarquicamente a energia das recordações» encontrou a sua concretização total numa manipulação permanente do passado, não só nos significados mas também nos fatos. Mas o preço deste franqueamento de toda a realidade histórica é a perda de referência racional que é indispensável à sociedade histórica do capitalismo. Sabe-se o que a aplicação científica da ideologia esquecida pôde custar à economia russa, quanto mais não seja com a impostura de Lyssenko. Esta contradição da burocracia totalitária administrando uma sociedade industrializada, colhida entre a sua necessidade do racional e a sua recusa do racional, constitui também uma das deficiências principais face ao desenvolvimento capitalista normal. Do mesmo modo que a burocracia não pode resolver, como este, a questão da agricultura, ela é-lhe finalmente inferior na produção industrial, planificada autoritariamente na base do irrealismo e da mentira generalizada.

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O movimento operário revolucionário entre as duas guerras foi aniquilado pela ação conjugada da burocracia estalinista e do totalitarismo fascista que tinha copiado a sua forma de organização do partido totalitário experimentado na Rússia. O fascismo foi uma defesa extremista da economia burguesa, ameaçada pela crise e pela subversão proletária, o estado de sitio na sociedade capitalista, pelo qual esta sociedade se salva e se dota de uma primeira racionalização de urgência, fazendo intervir maciçamente o Estado na sua gestão. Mas uma tal racionalização é, ela própria, agravada pela imensa irracionalidade do seu meio. Se o fascismo se lança na defesa dos principais pontos da ideologia burguesa tornada conservadora (a família, a propriedade, a ordem moral, a nação), reunindo a pequena burguesia e os desempregados desnorteados pela crise ou desiludidos pela impotência da revolução socialista, ele próprio não é fundamentalmente ideológico. Ele apresenta-se como aquilo que é: uma ressurreição violenta do mito, que exige a participação numa comunidade definida por pseudovalores arcaicos: a raça, o sangue, o chefe. O fascismo é o arcaísmo tecnicamente equipado. O seu ersatz decomposto do mito é retomado no contexto espetacular moderno, do mesmo modo que a sua parte na destruição do antigo movimento operário faz dele uma das potências fundadoras da sociedade presente; mas como também acontece que o fascismo é a forma mais dispendiosa da manutenção da ordem capitalista, ele devia normalmente abandonar a boca da cena que ocupam os grandes papéis desempenhados pelos Estados capitalistas, eliminado por formas mais racionais e mais fortes desta ordem.

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Quando a burocracia russa consegue enfim desfazer-se dos traços da propriedade burguesa que entravavam o seu reino sobre a economia, e desenvolvê-la para o seu próprio uso, e ser reconhecida no exterior entre as grandes potências, ela quis desfrutar calmamente do seu próprio mundo, suprimindo esta porção de arbitrário que se exercia sobre si própria: ela denuncia o estalinismo da sua origem. Mas uma tal denúncia permanece estalinista, arbitrária, inexplicada e incessantemente corrigida, porque a mentira ideológica da sua origem nunca pode ser revelada. Assim, a burocracia não pode liberalizar-se nem culturalmente nem politicamente porque a sua existência como classe depende do seu monopólio ideológico que, com toda a sua grosseria, é o seu único título de propriedade. A ideologia perdeu certamente a paixão da sua afirmação positiva, mas o que dela subsiste de trivialidade indiferente tem ainda esta função repressiva de interditar a mínima concorrência, de manter cativa a totalidade do pensamento. A burocracia está, assim, ligada a uma ideologia em que já ninguém acredita. O que era terrorista tornou-se irrisório, mas esta mesma irrisão não pode manter-se senão conservando em segundo plano o terrorismo de que ela queria desfazer-se. Assim, no próprio momento em que a burocracia quer demonstrar a sua superioridade no terreno do capitalismo, ela confessa-se um parente pobre do capitalismo. Do mesmo modo que a sua história efetiva está em contradição com o seu direito, e a sua ignorância grosseiramente mantida em contradição com as suas pretensões cientificas, o seu projeto de rivalizar com a burguesia na produção duma abundância mercantil é entravado pelo fato de uma tal abundância trazer em si mesma a sua ideologia implícita, e reveste-se normalmente duma liberdade indefinidamente extensa de falsas escolhas espetaculares, pseudoliberdade que permanece inconciliável com a ideologia burocrática.

111

Neste momento do desenvolvimento, o título de propriedade ideológica da burocracia já se desmorona em escala internacional. O poder, que se tinha estabelecido nacionalmente enquanto modelo fundamentalmente internacionalista, deve admitir que já não pode pretender manter a sua coesão mentirosa para além de cada fronteira nacional. O desigual desenvolvimento econômico que conhecem as burocracias, de interesses concorrentes, que conseguiram possuir o seu «socialismo» fora dum só país, conduziu ao afrontamento público e completo da mentira russa e da mentira chinesa. A partir deste ponto, cada burocracia no poder, ou cada partido totalitário candidato ao poder deixado pelo período estalinista em algumas classes operárias nacionais, deve seguir a sua própria via. Juntando-se às manifestações de negação interior que começaram a afirmar-se perante o mundo com a revolta operária de Berlim-Leste, opondo aos burocratas a sua exigência de «um governo de metalúrgicos» e que já uma vez foram até ao poder dos conselhos operários da Hungria, a decomposição mundial da aliança da mistificação burocrática é, em última análise, o fator mais desfavorável para o desenvolvimento atual da sociedade capitalista. A burguesia está em vias de perder o adversário que a sustentava objetivamente ao unificar ilusoriamente toda a negação da ordem existente. Uma tal divisão do trabalho espetacular vê o seu fim quando o papel pseudo-revolucionário se divide por sua vez. O elemento espetacular da dissolução do movimento operário vai ser ele próprio dissolvido.

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A ilusão leninista já não tem outra base atual senão nas diversas tendências trotskistas, onde a identificação do projeto proletário a uma organização hierárquica da ideologia sobrevive inabalavelmente à experiência de todos os seus resultados. A distância que separa o trotskismo da crítica revolucionaria da sociedade presente, permite também a distância respeitosa que ele observa em relação a posições que eram já falsas quando foram usadas num combate real. Trotsky permaneceu até 1927 fundamentalmente solidário da alta burocracia, procurando mesmo apoderar-se dela para Ihe fazer retomar uma ação realmente bolchevique no exterior (sabe-se que, nesse momento, para ajudar a dissimular o famoso «testamento de Lenine», ele foi ao ponto de desmentir caluniosamente o seu partidário Max Eastman, que o tinha divulgado). Trotsky foi condenado pela sua perspectiva fundamental, porque no momento em que a burocracia se conhece a si própria no seu resultado como classe contra-revolucionária no interior, ela deve escolher também ser efetivamente contra-revolucionária no exterior, em nome da revolução, como em sua casa. A luta ulterior de Trotsky por uma IV internacional contém a mesma inconsequência. Ele recusou toda a sua vida reconhecer na burocracia o poder de uma classe separada, porque ele se tinha tornado durante a segunda revolução russa o partidário incondicional da forma bolchevique de organização. Quando Lukács, em 1923, mostrava nesta forma a mediação enfim encontrada entre a teoria e a prática, onde os proletários deixam de ser «espectadores» dos acontecimentos ocorridos na sua organização para conscientemente os escolherem e viverem, ele descrevia como méritos efetivos do partido bolchevique tudo o que o partido bolchevique não era. Lukács era ainda, a par do seu profundo trabalho teórico, um ideólogo, falando em nome do poder mais vulgarmente exterior ao movimento proletário, crendo e fazendo crer que ele próprio se reconhecia, com a sua personalidade total, nesse poder como no seu próprio. Porquanto o seguimento manifestasse de que maneira esse poder desmente e suprime os seus lacaios, Lukács, desmentindo-se a si mesmo sem fim, fez ver com uma nitidez caricatural aquilo a que se tinha exatamente identificado: ao contrário de si-mesmo, e do que ele tinha defendido na História e Consciência de Classe. Lukács verifica o melhor possível a regra fundamental que julga todos os intelectuais deste século: o que eles respeitam mede exatamente a sua própria realidade desprezível. Lenine não tinha, no entanto, lisonjeado muito este gênero de ilusões sobre a sua atividade, ele que convinha que «um partido político não pode examinar os seus membros para ver se há contradições entre a filosofia destes e o programa do partido». O partido real, de que Lukács tinha apresentado fora do tempo o retrato sonhado, não era coerente senão para uma tarefa precisa e parcial: apoderar-se do poder no Estado.

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A ilusão neoleninista do trotskismo atual, porque é a cada momento desmentida pela realidade da sociedade capitalista moderna, tanto burguesa como burocrática, encontra naturalmente um campo de aplicação privilegiado nos países «subdesenvolvidos» formalmente independentes, onde a ilusão de uma qualquer variante de socialismo estatal e burocrático é conscientemente manipulada como a simples ideologia do desenvolvimento econômico, pelas classes dirigentes locais. A composição híbrida destas classes relaciona-se mais ou menos nitidamente com uma degradação sobre o espectro burguesia-burocracia. O seu jogo, em escala internacional entre estes dois pólos do poder capitalista existente, assim como os seus compromissos ideológicos -- sabidamente com o islamismo -- exprimindo a realidade híbrida da sua base social, acabam por retirar a este último subproduto do socialismo ideológico toda a seriedade, salvo a policial. Uma burocracia pôde formar-se enquadrando a luta nacional e a revolta agrária dos camponeses: ela tende então, como na China, a aplicar o modelo estalinista de industrialização numa sociedade menos desenvolvida que a Rússia de 1917. Uma burocracia capaz de industrializar a nação pode formar-se a partir da pequena burguesia, dos quadros do exército tomando o poder, como o mostra o exemplo do Egito. Em certos pontos, como a Argélia no fim da sua guerra de independência, a burocracia, que se constituiu como direção para-estatal durante a luta, procura um ponto de equilíbrio de um compromisso para se fundir com uma fraca burguesia nacional. Enfim, nas antigas colônias da África negra que continuam abertamente ligadas à burguesia ocidental, americana ou europeia, uma burguesia constitui-se -- a maior parte das vezes a partir do poder dos chefes tradicionais do tribalismo -- pela posse do Estado: nestes países onde o imperialismo estrangeiro permanece o verdadeiro senhor da economia, chegou um estágio onde os compradores (**) receberam, em compensação da sua venda dos produtos indígenas, a propriedade de um Estado indígena, independente face às massas locais mas não face ao imperialismo. Neste caso, trata-se de uma burguesia artificial que não é capaz de acumular, mas que simplesmente delapida, tanto a parte de mais valia do trabalho local que Ihe cabe, como os subsídios estrangeiros dos Estados ou monopólios que são seus protetores. A evidência da incapacidade destas classes burguesas a desempenhar a função econômica normal da burguesia ergue perante cada uma delas uma subversão segundo o modelo burocrático mais ou menos adaptado às particularidades locais que quer apoderar-se da sua herança. Mas o próprio êxito de uma burocracia no seu projeto fundamental de industrialização contém necessariamente a perspectiva do seu revés histórico: ao acumular o capital ela acumula o proletariado, e cria o seu próprio desmentido, num país onde ele ainda não existia.

114

Neste desenvolvimento complexo e terrível, que arrastou a época das lutas de classes para novas condições, o proletariado dos países industrializados perdeu completamente a afirmação da sua perspectiva autônoma e, em última análise, as suas ilusões, mas não o seu ser. Ele não foi suprimido. Permanece irredutivelmente existente na alienação intensificada do capitalismo moderno: ele é a imensa maioria dos trabalhadores que perderam todo o poder sobre o emprego da sua vida, e que, desde que o sabem, se redefinem como o proletariado, o negativo em marcha nesta sociedade. Este proletariado é, objetivamente, reforçado pelo movimento do desaparecimento do campesinato, como pela extensão da lógica do trabalho na fábrica, que se aplica a uma grande parte dos «serviços» e das profissões intelectuais. É subjetivamente que este proletariado está ainda afastado da sua consciência prática de classe, não só nos empregados, mas também nos operários que ainda não descobriram senão a impotência e a mistificação da velha política. Porém, quando o proletariado descobre que a sua própria força exteriorizada concorre para o reforço permanente da sociedade capitalista, já não só sob a forma de trabalho seu, mas também sob a forma dos sindicatos, dos partidos ou do poder estatal que ele tinha constituído para se emancipar, descobre também pela experiência histórica concreta que ele é a classe totalmente inimiga de toda a exteriorização petrificada e de toda a especialização do poder. Ele traz a revolução que não pode deixar nada no exterior de si própria, a exigência da dominação permanente do presente sobre o passado, e a crítica total da separação; e é disto que ele deve encontrar a forma adequada na ação. Nenhuma melhoria quantitativa da sua miséria, nenhuma ilusão de integração hierárquica é um remédio durável para a sua insatisfação, porque o proletariado não pode reconhecer-se veridicamente num dano particular que teria sofrido, nem, portanto, na reparação de um dano particular, nem de um grande número desses danos, mas somente no dano absoluto de estar posto à margem da vida.

115

Aos novos sinais de negação, incompreendidos e falsificados pela ordenação espetacular, que se multiplicam nos países mais avançados economicamente, pode-se já tirar a conclusão de que uma nova época está aberta: depois da primeira tentativa de subversão operária, é agora a abundância capitalista que falhou. Quando as lutas anti-sindicais dos operários ocidentais são reprimidas primeiro que tudo pelos sindicatos, e quando as correntes revoltadas da juventude lançam um primeiro protesto informe, no qual, porém a recusa da antiga política especializada, da arte e da vida quotidiana, está imediatamente implicada, estão aí as duas faces de uma nova luta espontânea que começa sob o aspecto criminal. São os sinais precursores do segundo assalto proletário contra a sociedade de classe. Quando os enfants perdus (1) deste exército ainda imóvel reaparecem nesse terreno que se tornou outro e permaneceu o mesmo, eles seguem um novo «general Ludd», que desta vez os lança na destruição das máquinas do consumo permitido.

116

«A forma política enfim descoberta, sob a qual a emancipação econômica do trabalho podia ser realizada», tomou neste século uma nítida forma nos Conselhos operários revolucionários, concentrando neles todas as funções de decisão e de execução, e federando-se por intermédio de delegados responsáveis perante a base e revogáveis a todo o instante. A sua existência efetiva ainda não foi senão um breve esboço, imediatamente combatido e vencido por diferentes forças de defesa da sociedade de classe, entre as quais é necessário muitas vezes contar com a sua própria falsa consciência. Pannekoek insistia justamente no fato de que a escolha de um poder dos Conselhos operários «propõe problemas» mais do que traz uma solução. Mas este poder é precisamente o lugar onde os problemas da revolução do proletariado podem encontrar a sua verdadeira solução. É o lugar onde as condições objetivas da consciência histórica estão reunidas; a realização da comunicação direta ativa, onde acabam a especialização, a hierarquia e a separação, onde as condições existentes foram transformadas «em condições de unidade». Aqui, o sujeito proletário pode emergir da sua luta contra a contemplação: a sua consciência é igual à organização prática de que ela se dotou, porque esta consciência é inseparável da intervenção coerente na história.

117

No poder dos Conselhos, que deve suplantar internacionalmente qualquer outro poder, o movimento proletário é o seu próprio produto, e este produto é o próprio produtor. Ele é para si mesmo a sua própria finalidade. Somente lá a negação espetacular da vida é efetiva.

118

A aparição dos Conselhos foi a mais alta realidade do movimento proletário no primeiro quarto do século, realidade que passou despercebida ou disfarçada porque ela desaparecia com o resto do movimento que o conjunto da experiência histórica de então desmentia e eliminava. No novo momento da crítica proletária, este resultado regressa como o único ponto invicto do movimento vencido. A consciência histórica, que sabe ter em si o seu único lugar de existência, pode agora reconhecê-lo, não mais na periferia do que reflui, mas no centro do que sobe.

119

Uma organização revolucionária existente antes do poder dos Conselhos -- que deve encontrar sua própria forma na luta -- sabe, por todas essas razões históricas, que não representa a classe. Deve apenas reconhecer-se a si própria como radicalmente saparada do mundo da separação.

120

A organização revolucionária é a expressão coerente da teoria da práxis entrando em comunicação não-unilateral com as lutas práticas, em devir para a teoria prática. A sua própria prática é a generalização da comunicação e da coerência nestas lutas. No momento revolucionário da dissolução da separação social, esta organização deve reconhecer a sua própria dissolução enquanto organização separada.

121

A organização revolucionária não pode ser senão a crítica unitária da sociedade, isto é, uma crítica que não pactua com nenhuma forma de poder separado, em nenhum ponto do mundo, e uma crítica pronunciada globalmente contra todos os aspectos da vida social alienada. Na luta da organização revolucionária contra a sociedade de classes as armas não são outra coisa senão a essência dos próprios combates: a organização revolucionária não pode reproduzir em si as condições de cisão e de hierarquia que são as da sociedade dominante. Ela deve lutar permanentemente contra a sua deformação no espetáculo reinante. O único limite da participação na democracia total da organização revolucionária é o reconhecimento e a auto-apropriacão efetiva, por todos os seus membros, da coerência da sua crítica, coerência que deve provar-se na teoria crítica propriamente dita, e na relação entre esta e a atividade prática.

122

Quando o avanço cada vez mais poderoso da alienação capitalista, em todos os níveis, torna cada vez mais difícil aos trabalhadores reconhecer e identificar sua própria miséria, isso os coloca na alternativa do tudo ou nada, ou seja, de recusar a totalidade da sua miséria ou nada. A organização revolucionária aprende que ela não pode combater a alienação sob formas alienadas.

123

A revolução proletária depende inteiramente desta necessidade que, acima de tudo, representa a teoria na forma da inteligência da prática humana que deve ser reconhecida e vivida pelas massas. Ela exige que os operários se tornem dialéticos e traduzam seu pensamento na prática; assim, ela pede aos homens sem qualidade bem mais do que a revolução burguesa pedia aos homens qualificados que ela delegava para seus empreendimentos: porque a consciência ideológica parcial edificada por uma parte da classe burguesa tinha por base essa parte central da vida social, a economia, onde esta classe detinha o poder. O próprio desenvolvimento da sociedade de classes até à organização espetacular da não-vida leva, pois, o projeto revolucionário a tornar-se visivelmente o que ele já era essencialmente.

124

A teoria revolucionária é, agora, inimiga de toda a ideologia revolucionária e sabe que o é.

GUY DEBORD

(1) Gíria militar francesa designando extrema vanguarda (Guerra dos Trinta Anos). (N. T.)

(*) Mantém-se o original para não alterar a dimensão conferida por Hegel (N. T.)

(**) Em português, no original. (N. T.)


A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

GUY DEBORD

Capitulo V

TEMPO E HISTÓRIA

Ó gentis-homens, a vida é curta. Se vivemos, vivamos para marchar sobre a cabeça dos reis.

Shakespeare, Henrique IV

125

O homem, «o ser negativo que é unicamente na medida em que suprime o Ser», é idêntico ao tempo. A apropriação pelo homem da sua própria natureza é, de igual modo, o apoderar-se do desenvolvimento do universo. «A própria história é uma parte real da história natural, da transformação da natureza em homem» (Marx). Inversamente, esta «história natural» não tem outra existência efetiva senão através do processo de uma história humana, da única parte que reencontra este todo histórico, como o telescópio moderno cujo alcance recupera no tempo a fuga das nebulosas na periferia do universo. A história existiu sempre, mas não sempre sob a sua forma histórica. A tempo-realização do homem, tal como ela se efetua pela mediação de uma sociedade, é igual a uma humanização do tempo. O movimento inconsciente do tempo manifesta-se e toma-se verdadeiro na consciência histórica.

126

O movimento propriamente histórico, embora ainda escondido, começa na lenta e insensível formação da «natureza real do homem», esta «natureza que nasce na história humana - no ato gerador da sociedade humana», mas a sociedade que então dominou uma técnica e uma linguagem, se é já o produto da sua própria história, não tem consciência senão de um presente perpétuo. Todo o conhecimento, limitado à memória dos mais velhos, é sempre aí levado pelos vivos. Nem a morte nem a procriação são compreendidas como uma lei do tempo. O tempo permanece imóvel como um espaço fechado. Quando uma sociedade mais complexa acaba por tomar consciência do tempo, o seu trabalho é bem mais o de negar, porque ela vê no tempo não o que passa, mas o que regressa. A sociedade estática organiza o tempo segundo a sua experiência imediata da natureza, sob o modelo do tempo cíclico.

127

O tempo cíclico é já dominante na experiência dos povos nômades, porque são as mesmas condições que se reencontram perante eles a cada momento da sua passagem: Hegel nota que «a errância dos nômades é somente formal, porque está limitada a espaços uniformes». A sociedade, que ao fixar-se localmente dá ao espaço um conteúdo pela ordenação dos lugares individualizados, encontra-se por isso mesmo encerrada no interior desta localização. O regresso temporal a lugares semelhantes é, agora, o puro regresso do tempo num mesmo lugar, a repetição de uma série de gestos. A passagem do nomadismo pastoril à agricultura sedentária é o fim da liberdade ociosa e sem conteúdo, o princípio do labor. O modo de produção agrário em geral, dominado pelo ritmo das estacões, é a base do tempo cíclico plenamente constituído. A eternidade é-lhe interior: é aqui em baixo o regresso do mesmo. O mito é a construção unitária do pensamento, que garante toda a ordem cósmica em volta da ordem que esta sociedade já realizou, de fato, dentro das suas fronteiras.

 

128

A apropriação social do tempo, a produção do homem pelo trabalho humano, desenvolvem-se numa sociedade dividida em classes. O poder que sê constituiu sobre a penúria da sociedade do tempo cíclico, a classe, que organiza este trabalho social e se apropria da mais-valia limitada, apropria-se igualmente da mais-valia temporal da sua organização do tempo social: ela possui só para si o tempo irreversível do vivo. A única riqueza que pode existir concentrada no setor do poder, para ser materialmente dispendida em festa sumtuária, encontra-se também despendida aí enquanto delapidação de um tempo histórico da superfície da sociedade. Os proprietários da mais-valia histórica detêm o conhecimento e o gozo dos acontecimentos vividos. Este tempo, separado da organização coletiva do tempo que predomina com a produção repetitiva da base da vida social, corre acima da sua própria comunidade estática. É o tempo da aventura e da guerra, em que os senhores da sociedade cíclica percorrem a sua história pessoal; e é igualmente o tempo que aparece no choque das comunidades estranhas, a alteração da ordem imutável da sociedade. A história sobrevem, pois, perante os homens como um fator estranho, como aquilo que eles não quiseram e do qual se julgavam abrigados. Mas por este rodeio regressa também a inquietação negativa do humano que tinha estado na própria origem de todo o desenvolvimento que adormecera.

129

Tempo cíclico e, em si mesmo, o tempo sem conflito. Mas nesta infância do tempo o conflito está instalado: a história luta, antes do mais, para ser a história na atividade prática dos Senhores. Esta história cria superficialmente o irreversível; o seu movimento constitui o próprio tempo que ela esgota, no interior do tempo inesgotável da sociedade cíclica.

130

As «sociedades frias» são aquelas que reduziram ao extremo a sua parte de história; que mantiveram num equilíbrio constante a sua oposição ao meio ambiente natural e humano, e as suas oposições internas. Se a extrema diversidade das instituições estabelecidas para este fim testemunha a plasticidade da autocriação da natureza humana, este testemunho não aparece evidentemente senão para o observador exterior, para o etnólogo vindo do tempo histórico. Em cada uma destas sociedades, uma estruturação definitiva excluiu a mudança. O conformismo absoluto das práticas sociais existentes, às quais se encontram para sempre identificadas todas as possibilidades humanas, já não tem outro limite exterior senão o receio de tornar a cair na animalidade sem forma. Aqui, para continuar no humano, os homens devem permanecer os mesmos.

131

O nascimento do poder político, que parece estar em relação com as últimas grandes revoluções da técnica, como a fundição do ferro, no limiar de um período que já não conhecerá perturbações em profundidade até à aparição da indústria, é também o momento que começa a dissolver os laços da consanguinidade. Desde então, a sucessão das gerações sai da esfera do puro cíclico natural para se tornar acontecimento orientado, sucessão de poderes. O tempo irreversível é o tempo daquele que reina; e as dinastias são a sua primeira medida. A escrita é a sua arma. Na escrita, a linguagem atinge a sua plena realidade, independente da mediação entre consciências. Mas esta independência é idêntica à independência geral do poder separado, como mediação que constitui a sociedade. Com a escrita aparece uma consciência que já não é trazida e transmitida na relação imediata dos viventes: uma memória impessoal, que é a da administração da sociedade. «Os escritos são os pensamentos do Estado; os arquivos a sua memória» (Novalis).

132

A crônica é a expressão do tempo irreversível do poder, e também o instrumento que mantém a progressão voluntarista deste tempo a partir do seu traçado anterior, porque esta orientação do tempo deve desmoronar-se com a força de cada poder particular; voltando a cair no esquecimento indiferente do único tempo cíclico conhecido pelas massas camponesas que, na derrocada dos impérios e das suas cronologias, nunca mudam. Os possuidores da história puseram no tempo um sentido: uma direção que é também uma significação. Mas esta história desenvolve-se e sucumbe à parte; ela deixa imutável a sociedade profunda, porque ela é justamente o que permanece separado da realidade comum. É no que a história dos impérios do Oriente se reduz para nós à história das religiões: estas cronologias caídas em ruínas não deixaram mais do que a história aparentemente autônoma das ilusões que as envolviam. Os Senhores que detêm a propriedade privada da história, sob a proteção do mito, detêm-na eles próprios, antes de mais nada, sob o modo da ilusão: na China e no Egito, eles tiveram durante muito tempo o monopólio da imortalidade da alma; como as suas primeiras dinastias reconhecidas são a reorganização imaginária do passado. Mas esta posse ilusória dos Senhores é também toda a posse possível, nesse momento, de uma história comum e da sua própria história. O alargamento do seu poder histórico efetivo vai a par com uma vulgarização da possessão mítica ilusória. Tudo isto deriva do simples fato de que é na própria medida em que os Senhores se encarregaram de garantir miticamente a permanência do tempo cíclico, como nos ritos das estações dos imperadores chineses, que eles próprios dele se libertaram relativamente.

133

Quando a seca cronologia, sem explicação, do poder divinizado falando aos seus servidores, que não quer ser compreendida senão como execução terrestre dos mandamentos do mito, pode ser superada e se torna história consciente, tornou-se necessário que a participação real na história tivesse sido vivida por grupos extensos. Desta comunicação prática entre aqueles que se reconheceram como os possuidores de um presente singular, que sentiram a riqueza qualitativa dos acontecimentos assim como a sua atividade e o lugar onde habitavam - a sua época -, nasce a linguagem geral da comunicação histórica. Aqueles para quem o tempo irreversível existiu descobrem ao mesmo tempo nele o memorável e a ameaça do esquecimento: «Hérodoto de Halicarnasso apresenta aqui os resultados do seu inquérito, para que o tempo não possa abolir os trabalhos dos homens...»

134

O raciocínio sobre a história é inseparavelmente raciocínio sobre o poder. A Grécia foi esse momento em que o poder e a sua mudança se discutem e se compreendem, a democracia dos Senhores da sociedade. Lá, era o inverso das condições conhecidas pelo Estado despótico, onde o poder nunca ajusta as suas contas senão consigo próprio, na inacessível obscuridade do seu ponto mais concentrado: pela revolução de palácio, que o êxito ou o revés põe igualmente fora de discussão. Porém, o poder partilhado das comunidades gregas não existia senão no dispêndio de uma vida social em que a produção continuava separada e estática na classe servil. Só aqueles que não trabalham, vivem. Na divisão das comunidades gregas e na luta pela exploração das cidades estrangeiras, estava exteriorizado o princípio da separação que fundava interiormente cada uma delas. A Grécia, que tinha sonhado a história universal, não conseguiu unir-se face à invasão; nem sequer a unificar os calendários das suas cidades independentes. Na Grécia, o tempo histórico tornou-se consciente, mas não ainda consciente de si mesmo.

135

Depois do desaparecimento das condições localmente favoráveis que tinham conhecido as comunidades gregas, a regressão do pensamento histórico ocidental não foi acompanhada de uma reconstituição das antigas organizações míticas. No choque dos povos do Mediterrâneo, na formação e derrocada do Estado romano, apareceram religiões semi-históricas que se tornavam fatores: fundamentais da nova consciência do tempo e a nova armadura do poder separado.

136

As religiões monoteístas foram um compromisso entre o mito e a história, entre o tempo cíclico dominando ainda a produção e o tempo irreversível em que se afrontavam e se recompunham os povos. As religiões saídas do judaísmo são o reconhecimento universal abstrato do tempo irreversível que se encontra democratizado, aberto a todos, mas no ilusório. O tempo é inteiramente orientado para um único acontecimento final: «O reino de Deus está próximo». Estas religiões nasceram no solo da história, e nele se estabeleceram. Mas mesmo aí, elas mantêm-se em oposição radical à história. A religião semi-histórica estabelece um ponto de partida qualitativo no tempo, o nascimento de Cristo, a fuga de Maomé, mas o seu tempo irreversível - introduzindo uma acumulação efetiva que poderá, no Islã, tomar a forma de uma conquista, ou, no cristianismo da Reforma, a de um acréscimo do capital -- está de fato invertido no pensamento religioso como uma contagem inversa: a espera no tempo que diminui, do acesso ao outro mundo verdadeiro, a espera do Juízo Final. A eternidade saiu do tempo cíclico. É o seu além. Ela é o elemento que rebaixa a irreversibilidade do tempo, que suprime a história na própria história, colocando-se, como um puro elemento pontual em que o tempo cíclico entrou e se aboliu, do outro lado do tempo irreversível. Bossuet dirá ainda: «E por intermédio do tempo que passa, nós entramos na eternidade que não passa.»

137

A Idade Média, esse mundo mítico inacabado que tinha a sua perfeição fora de si, é o momento em que o tempo cíclico, que regula ainda a parte principal da produção, é realmente corroído pela história. Uma certa temporalidade irreversível é reconhecida individualmente a todos, na sucessão das épocas da vida, na vida considerada como uma viagem, uma passagem sem regresso num mundo cujo sentido está algures: o peregrino é o homem que sai desse tempo cíclico para ser efetivamente esse viajante que cada um é enquanto signo. A vida histórica pessoal encontra sempre a sua plena realização na esfera do poder, na participação das lutas conduzidas pelo poder e nas lutas pela disputa do poder; mas o tempo irreversível do poder está partilhado ao infinito, sob a unificação geral do tempo orientado da era cristã, num mundo de confiança armada, em que o jogo dos Senhores gira à volta da fidelidade e da contestação da fidelidade devida. Esta sociedade feudal, nascida do encontro da «estrutura organizacional do exército conquistador tal como ela se desenvolveu durante a conquista» e das «forças produtivas encontradas no país conquistado» (Ideologia alemã) -- e é preciso contar, na organização destas forças produtivas, com a sua linguagem religiosa -- dividiu a dominação da sociedade entre a Igreja e o poder estatal, por sua vez subdividido nas complexas relações de suserania e de vassalagem dos domínios territoriais e das comunas urbanas. Nesta diversidade da vida histórica possível, o tempo irreversível que a sociedade profunda levava consigo inconscientemente, o tempo vivido pela burguesia na produção das mercadorias, a fundação e a expansão das cidades, a descoberta comercial da Terra -- a experimentação prática que destrói para sempre toda a organização mítica do cosmos -- revelou-se lentamente como o trabalho desconhecido da época, quando o grande empreendimento histórico oficial desse mundo se malogrou com as Cruzadas.

138

No declínio da Idade Média, o tempo irreversível que invade a sociedade é ressentido pela consciência ligada à antiga ordem, sob a forma de uma obsessão da morte. É a melancolia da dissolução de um mundo, o último em que a segurança do mito equilibrava ainda a história; e para esta melancolia, toda a coisa terrestre se encaminha somente para a sua corrupção. As grandes revoltas dos camponeses da Europa são também a sua tentativa de resposta à história que os arrancava violentamente ao sono patriarcal que a tutela feudal tinha garantido. É a utopia milenarista da realização terrestre do paraíso, que volta ao primeiro plano o que estava na origem da religião semi-histórica, quando as comunidades cristãs, como o messianismo judaico de que elas provinham, respondiam às perturbações e à infelicidade da época, e esperavam a iminente realização do reino de Deus, acrescentando um fator de inquietação e de subversão à sociedade antiga. O cristianismo, tendo vindo a partilhar o poder no império, tinha desmentido no momento oportuno, como simples superstição, o que subsistia desta esperança: tal é o sentido da afirmação agostiniana, arquétipo de todos os satisfecit da ideologia moderna, segundo a qual, a Igreja instalada era já desde há muito tempo este reino de que se falava. A revolta social do campesinato milenarista define-se naturalmente, antes de tudo, como uma vontade de destruição da Igreja. Mas o milenarismo desenrola-se no mundo histórico, e não no terreno do mito. Não são, como crê mostrar Norman Cohn em La Poursuite du Millénium, as esperanças revolucionárias modernas que são os prolongamentos irracionais da paixão religiosa do milenarismo. Bem pelo contrário, é o milenarismo, luta de classe revolucionária falando pela última vez a língua da religião, que é já uma tendência revolucionária moderna, à qual falta ainda a consciência de não ser senão histórica. Os milenaristas deviam perder porque não podiam reconhecer a revolução como sua própria operação. O fato deles esperarem agir sob um sinal exterior da decisão de Deus é a tradução, em pensamento, de uma prática na qual os camponeses insurgidos seguem chefes escolhidos fora deles próprios. A classe camponesa não podia atingir uma consciência justa do funcionamento da sociedade, e da maneira de conduzir a sua própria luta: é porque ela tinha falta destas condições de unidade na sua ação e na sua consciência, que ela exprimiu o seu projeto e conduziu as suas guerras segundo a imagética do paraíso terrestre.

139

A nova posse da vida histórica, a Renascença, que encontra na Antiguidade o seu passado e o seu direito, traz em si a alegre ruptura com a eternidade. O seu tempo irreversível é o da acumulação infinita dos conhecimentos, e a consciência histórica, saída da experiência das comunidades democráticas e das forças que as arruinam, vai retomar, com Maquiavel, o raciocínio sobre o poder dessacralizado, isto é, o indizível do Estado. Na vida exuberante das cidades italianas, na arte das festas, a vida conhece-se como um gozo da passagem do tempo. Mas este gozo da passagem devia ele próprio ser passageiro. A canção de Lourenço de Médicis, que Burckhardt considera como a expressão do «próprio espírito da Renascença», é o elogio que esta frágil festa da história pronunciou sobre si própria: «Como é bela a juventude - que parte tão depressa.»

140

O movimento constante de monopolização da vida histórica pelo Estado da monarquia absoluta, forma de transição para a completa dominação da classe burguesa, faz aparecer na sua verdade o que é o novo tempo irreversível da burguesia. É ao tempo do trabalho, pela primeira vez liberto do cíclico, que a burguesia está ligada. O trabalho tomou-se, com a burguesia, trabalho que transforma as condições históricas. A burguesia é a primeira classe dominante para quem o trabalho é um valor. E a burguesia que suprime todo o privilégio, que não reconhece nenhum valor que não derive da exploração do trabalho, identificou, justamente ao trabalho, o seu próprio valor como classe dominante e faz do progresso do trabalho o seu próprio progresso. A classe que acumula as mercadorias e o capital modifica continuamente a natureza ao modificar o próprio trabalho, ao desencadear a sua produtividade. Toda a vida social se concentrou já na pobreza ornamental da Corte, adorno da fria administração estatal que culmina no «ofício de rei»; e toda a liberdade histórica particular teve de consentir na sua perda. A liberdade do jogo temporal irreversível dos feudais consumiu-se nas suas últimas batalhas perdidas com as guerras da Fronda ou a sublevação dos Escoceses por Carlos Eduardo. O mundo mudou de base.

141

A vitória da burguesia é a vitória do tempo profundamente histórico, porque ele é o tempo da produção econômica que transforma a sociedade, em permanência e de cima a baixo. Durante todo o tempo em que a produção agrária permanece o trabalho principal, o tempo cíclico, que continua presente no fundo da sociedade, alimenta as forças coligadas da tradição, que vão travar o movimento. Mas o tempo irreversível da economia burguesa extirpa essas sobrevivências em toda a vastidão do mundo. A história, que tinha aparecido até aí como o único movimento dos indivíduos da classe dominante, e portanto escrita como história fatológica, é agora compreendida como um movimento geral, e neste movimento severo, os indivíduos são sacrificados. A história que descobre a sua base na economia política sabe agora da existência daquilo que era o seu inconsciente, mas que, no entanto, permanece ainda o inconsciente que ela não pode trazer à luz do dia. É somente esta pré-história cega, uma nova fatalidade que ninguém domina, que a economia mercantil democratizou.

142

A história que está presente em toda a profundidade da sociedade tende a perder-se na superfície. O triunfo do tempo irreversível é também a sua metamorfose em tempo das coisas, porque a arma da sua vitória foi precisamente a produção em série dos objetos, segundo as leis da mercadoria. O principal produto que o desenvolvimento econômico fez passar da raridade luxuosa ao consumo corrente é, pois, a história, mas somente enquanto história do movimento abstrato das coisas que domina todo o uso qualitativo da vida. Enquanto o tempo cíclico anterior tinha suportado uma parte crescente de tempo histórico vivido por indivíduos e grupos, a dominação do tempo irreversível da produção vai tender a eliminar socialmente este tempo vivido.

143

Assim, a burguesia fez conhecer e impôs à sociedade um tempo histórico irreversível, mas recusa-lhe a utilização. «Houve história, mas já não há mais», porque a classe dos possuidores da economia, que não deve romper com a história econômica, deve recalcar assim como uma ameaça imediata qualquer outro emprego irreversível do tempo. A classe dominante, feita de especialistas da possessão das coisas, que por isso são eles próprios uma possessão das coisas, deve ligar a sua sorte à manutenção desta história reificada, à permanência de uma nova imobilidade na historica. Pela primeira vez o trabalhador, na base da sociedade, não é materialmente estranho à história, porque é agora pela sua base que a sociedade se move irreversivelmente. Na reivindicação de viver o tempo histórico que ele faz, o proletariado encontra o simples centro inesquecível do seu projeto revolucionário; e cada uma das tentativas, até aqui goradas, de execução deste projeto marca um ponto de partida possível da nova vida histórica.

144

O tempo irreversível da burguesia, senhora do poder, apresentou-se, antes de mais nada, sob o seu próprio nome, como uma origem absoluta, no ano I da República. Mas a ideologia revolucionária da liberdade geral que tinha abatido os últimos restos de organização mítica dos valores, e toda a regulamentação tradicional da sociedade, deixava já ver a vontade real que ela tinha vestido à romana: a liberdade do comércio generalizada. A sociedade da mercadoria, descobrindo então que devia reconstruir a passividade que Ihe tinha sido necessário abalar, fundamentalmente para estabelecer o seu próprio reino puro, «encontra no cristianismo com o seu culto do homem abstrato... o complemento religioso mais adequado» (O Capital). A burguesia concluiu, então, com esta religião um compromisso que se exprime também na apresentação do tempo: o seu próprio calendário abandonado, o seu tempo irreversível voltou a moldar-se na era cristã, de que ele continua a sucessão.

145

Com o desenvolvimento do capitalismo, o tempo irreversível é unificado mundialmente. A história universal toma-se uma realidade, por que o mundo inteiro está reunido sob o desenvolvimento deste tempo. Mas esta história, que em toda a parte é ao mesmo tempo a mesma, ainda não é mais do que a recusa intra-histórica da história. É o tempo da produção econômica, dividido em fragmentos abstratos iguais, que se manifesta em todo o planeta como o mesmo dia. O tempo irreversível unificado é o do mercado mundial, e corolariamente o do espetáculo mundial.

146

O tempo irreversível da produção é, antes de tudo, a medida das mercadorias. Assim, pois, o tempo que se afirma oficialmente em toda a extensão do mundo como o tempo geral da sociedade, não significa mais do que interesses especializados que o constituem, não é senão um tempo particular.

GUY DEBORD


A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

GUY DEBORD

Capitulo VI

O TEMPO espetacular

Nada de nosso temos senão o tempo, de que gozam justamente aqueles que não têm paradeiro.

Baltasar Gracián - O Oráculo Manual

147

O tempo da produção, o tempo-mercadoria, é uma acumulação infinita de espaços equivalentes. É a abstração do tempo irreversível, de que todos os segmentos devem provar ao cronômetro a sua única igualdade quantitativa. Este tempo é, em toda a sua realidade efetiva, o que ele é no seu caráter permutável. É nesta dominação social do tempo-mercadoria que «o tempo é tudo, o homem não é nada: é quando muito a carcaça do tempo» (Miséria da Filosofia). É o tempo desvalorizado, a inversão completa do tempo como «campo de desenvolvimento humano».

148

O tempo geral do não desenvolvimento humano existe também sob o aspecto complementar de um tempo consumível que regressa à vida quotidiana da sociedade, a partir desta produção determinada, como um tempo, pseudocíclico.

149

O tempo pseudocíclico não é outra coisa senão o disfarce consumível do tempo-mercadoria da produção. Ele contém as características essenciais de unidades homogêneas permutáveis e da supressão da dimensão qualitativa. Mas ao ser o subproduto deste tempo destinado ao atraso da vida quotidiana concreta -- e à manutenção deste atraso --, ele deve estar carregado de pseudovalorizações e aparecer numa sucessão de momentos falsamente individualizados.

150

O tempo pseudocíclico é o do consumo da sobrevivência econômica moderna, a sobrevivência aumentada, em que o vivido quotidiano continua privado de decisão e submetido, não à ordem natural, mas à pseudonatureza desenvolvida no trabalho alienado; e, portanto, este tempo reencontra muito naturalmente o velho ritmo cíclico que regulava a sobrevivência das sociedades pré-industriais. O tempo pseudocíclico apoia-se ao mesmo tempo nos traços naturais do tempo cíclico, e dele compõe novas combinações homólogas: o dia e a noite, o trabalho e o repouso semanais, o retomo dos períodos de férias.

151

O tempo pseudocíclico é um tempo que foi transformado pela indústria. O tempo que tem a sua base na produção de mercadorias é ele próprio uma mercadoria consumível que reúne tudo o que anteriormente se departamentalizava -- quando da fase da dissolução da velha sociedade unitária -- em vida privada, vida econômica, vida política. Todo o tempo consumível da sociedade moderna acaba sendo tratado como matéria-prima de novos produtos diversificados, que se impõem no mercado como empregos do tempo socialmente organizados. «Um produto que já existe sob uma forma que o torna apropriado ao consumo pode, no entanto, tornar-se por sua vez matéria-prima de um outro produto» (O Capital).

152

Em seu setor mais avançado, a concentração capitalista orienta-se para a venda de blocos de tempo «totalmente equipados», cada um deles constituindo uma única mercadoria unificada que integrou um certo número de mercadorias diversas. É assim que pode aparecer, na economia em expansão dos «serviços» e das recriações, a modalidade do pagamento calculado «tudo incluído», para o habitat espetacular, as pseudo-deslocações coletivas de férias, o abonamento ao consumo cultural e a venda da própria sociabilidade em «conversas apaixonantes» e «encontros de personalidades». Esta espécie de mercadoria espetacular, que evidentemente não pode ter lugar senão em função da penúria aumentada das realidades correspondentes, figura, evidentemente, também entre os artigos-pilotos da modernização das vendas ao poderem ser pagas a crédito.

153

O tempo pseudocíclico consumível é o tempo espetacular, em sentido restrito, tempo de consumo de imagens, em sentido amplo, imagem do consumo do tempo. O tempo de consumo das imagens, médium de todas as mercadorias, é o campo onde atuam em toda sua plenitude os instrumentos do espetáculo e a finalidade que estes apresentam globalmente, como lugar e como figura central de todos os consumos particulares: sabe-se que os ganhos de tempo constantemente procurados pela sociedade moderna -- quer se trate da velocidade dos transportes ou da utilização de sopas em pacotes -- se traduzem positivamente para a população dos Estados Unidos neste fato: de que só a contemplação da televisão a ocupa em média três a seis horas por dia. A imagem social do consumo do tempo, por seu lado, é exclusivamente dominada pelos momentos de ócio e de férias, momentos representados à distancia e desejáveis, por postulado, como toda a mercadoria espetacular. Esta mercadoria é aqui explicitamente dada como o momento da vida real de que se trata esperar o regresso cíclico. Mas mesmo nestes momentos destinados à vida, é ainda o espetáculo que se dá a ver e a reproduzir, atingindo um grau mais intenso. O que foi representado como vida real, revela-se simplesmente como a vida mais realmente espetacular.

154

Esta época, que se mostra a si própria o seu tempo como sendo essencialmente um regresso precipitado de múltiplas festividades, é realmente uma época sem festa. O que era, no tempo cíclico, o momento da participação de uma comunidade no dispêndio luxuoso da vida, é impossível para a sociedade sem comunidade e sem luxo. Suas pseudofestas vulgarizadas, paródias do diálogo e do dom, movimentando um excedente de dispêndio econômico, não trazem outra coisa senão a decepção sempre compensada pela promessa de uma nova decepção. O tempo da sobrevivência moderna, no espetáculo, gaba-se tanto mais alto quanto mais o seu valor de uso se reduz. A realidade do tempo foi substituída pela publicidade do tempo.

155

O consumo do tempo cíclico das sociedades antigas estava de acordo com o trabalho real dessas sociedades, mas o consumo pseudocíclico da economia desenvolvida encontra-se em contradição com o tempo irreversível abstrato da sua produção. O tempo cíclico era o tempo da ilusão imóvel, realmente vivido, ao passo que o tempo espetacular é o tempo da realidade que se transforma, vivido ilusoriamente.

156

O que é sempre novo no processo da produção das coisas não se reencontra no consumo, que permanece um regresso ampliado do mesmo. Porque o trabalho morto continua a dominar o trabalho vivo, no tempo espetacular o passado domina o presente.

157

Como outro aspecto da deficiência da vida histórica geral, a vida individual não tem ainda história. Os pseudo-acontecimentos que se amontoam na dramatização espetacular não foram vividos pelos que deles são informados e, além disso, perdem-se na inflação da sua substituição precipitada a cada pulsão da maquinaria espetacular. Por outro lado, o que foi realmente vivido está sem relação com o tempo irreversível oficial da sociedade e em oposição direta ao ritmo pseudocíclico do subproduto consumível desse tempo. Este vivido individual da vida quotidiana separada permanece sem linguagem, sem conceito, sem acesso crítico ao seu próprio passado, que não está consignado em nenhum lado. Ele não se comunica. Está incompreendido e esquecido em proveito da falsa memória espetacular do não-memorável.

158

O espetáculo, como organização social presente da paralisia da história e da memória, do abandono da história que se erige sobre a base do tempo histórico, é a falsa consciência do tempo.

159

Para rebaixar os trabalhadores à condição de produtores e consumidores «livres» do tempo-mercadoria, a condição prévia foi a expropriação violenta do seu tempo. O regresso espetacular do tempo não se tornou possível senão a partir desta primeira despossessão do produtor.

160

A parte irredutivelmente biológica que continua presente no trabalho, tanto na dependência do cíclico natural da vigília e do sono como na evidência do tempo irreversível individual do uso de uma vida, não são mais do que acessórios face à produção moderna; e como tais, estes elementos são negligenciados nas proclamações oficiais do movimento da produção e dos trofeus consumíveis, que são a tradução acessível desta incessante vitória. Imobilizada no centro falsificado do movimento do seu mundo, a consciência espectadora não conhece na sua vida outra coisa senão uma passagem para a sua realização e para a sua morte. A publicidade dos seguros de vida insinua que é repreensível morrer sem assegurar a regulação do sistema depois desta perda econômica; o american way of death (*) insiste sobre a sua capacidade de manter neste encontro a maior parte das aparências da vida. Do ponto de vista da frente do bombardeamento publicitário é terminantemente proibido envelhecer. Tratar-se de poupar, em cada qual, um «capital-juventude» que, por ter sido mediocremente empregado, não pode pretender adquirir a realidade durável e cumulativa do capital financeiro. Esta ausência social da morte é idêntica à ausência social da vida.

161

O tempo é a alienação necessária, como o mostrava Hegel, o meio pelo qual o sujeito se realiza perdendo-se, tornando-se outro para se tornar a verdade de si mesmo. Mas o seu contrário é justamente a alienação dominante, que é suportada pelo produtor de um presente estranho. Nesta alienação espacial, a sociedade que separa na raiz o sujeito e a atividade que ela Ihe furta, separa-o antes de tudo do seu próprio tempo. A alienação social superável é justamente aquela que interditou e petrificou as possibilidades e os riscos de alienação viva no tempo.

162

Sob os modos aparentes que se anulam e se recompõem à superfície fútil do tempo pseudocíclico contemplado, o grande estilo da época está sempre no que é orientado pela necessidade evidente e secreta da revolução.

163

A base natural do tempo, o dado sensível do correr do tempo, torna-se humana e social ao existir para o homem. É o estado acanhado da prática humana, o trabalho em diferentes estágios. Que até aqui humanizou e desumanizou também o tempo, como tempo cíclico e tempo separado e irreversível da produção econômica. O projeto revolucionário de uma sociedade sem classes, de uma vida histórica generalizada, é o projeto de uma extensão progressiva da medida social do tempo em proveito de um modelo Iúdico de tempo irreversível dos indivíduos e dos grupos, modelo no qual estão simultaneamente presentes tempos independentes federados. É o programa de uma realização total no meio do tempo, do comunismo que suprime «tudo o que existe independentemente dos indivíduos»

164

O mundo já possui o sonho de um tempo que ele deve possuir agora, e a consciência para o viver realmente.

GUY DEBORD

(*) Em inglês no original (N. T.).


A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

GUY DEBORD

Capitulo VII

A ORDENAÇÃO DO TERRITÓRIO

E quem se torna senhor de uma cidade habituada a viver livre, se não destruí-la, acabará sendo destruído por ela, porque ela, em suas rebeliões, sempre terá refúgio na expressão da liberdade e nos seus velhos costumes, os quais nem pela vastidão dos tempos nem por nenhuma mercê jamais serão esquecidos. E por mais que se faça ou precavenha, se não expulsar ou dispersar seus habitantes, eles jamais esquecerão essa expressão nem esses costumes...

Maquiavel - O Príncipe

165

A produção capitalista unificou o espaço, que não é mais limitado pelas sociedades exteriores. Esta unificação é, ao mesmo tempo, um processo extensivo e intensivo de banalização. A acumulação das mercadorias produzidas em série para o espaço abstrato do mercado, do mesmo modo que quebrou todas as barreiras regionais, legais, e todas as restrições corporativas da Idade Média que mantinham a qualidade da produção artesanal, também dissolveu a autonomia e a qualidade dos lugares. Este poder de homogeneização foi semelhante à artilharia pesada que derrubou todas as muralhas da China.

166

Tornando-se cada vez mais idêntico a si mesmo, e aproximando-se o máximo possível da monotonia imóvel, o espaço livre da mercadoria é a cada instante modificado e reconstruído.

167

Esta sociedade que suprime a distância geográfica, amplia a distância interior, na forma de uma separação espetacular.

168

Subproduto da circulação das mercadorias, a circulação humana considerada como consumo, o turismo, reduz-se fundamentalmente à distração de ir ver o que já se tornou banal. A ordenação econômica dos frequentadores de lugares diferentes é por si só a garantia da sua pasteurização. A mesma modernização que retirou da viagem o tempo, retirou-lhe também a realidade do espaço.

169

Essa sociedade que modela tudo o que a rodeia edifica sua técnica especial trabalhando a base concreta deste conjunto de tarefas: o seu próprio território. O urbanismo é a tomada do meio ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver-se em sua lógica de dominação absoluta, refaz a totalidade do espaço como seu próprio cenário.

170

A necessidade capitalista satisfeita no urbanismo, enquanto glaciação visível da vida, exprime-se -- empregando termos hegelianos -- enquanto predominância absoluta da «plácida coexistência do espaço» sobre «o inquieto devir na sucessão do tempo».

171

Todas as forças técnicas da economia capitalista devem ser compreendidas como agentes de separação, o urbanismo é o equipamento da sua base geral, que prepara o solo que convém ao seu desenvolvimento; a própria técnica da separação.

172

O urbanismo é a concretização moderna da tarefa ininterrupta que salvaguarda o poder de classe: a manutenção da pulverização dos trabalhadores que as condições urbanas de produção tinham perigosamente reunido. A luta constante que teve de ser levada a cabo contra todos os aspectos desta possibilidade de encontro descobre no urbanismo o seu campo privilegiado. O esforço de todos os poderes estabelecidos desde as experiências da Revolução francesa, para aperfeiçoar os meios de manter a ordem na rua, culmina finalmente na supressão da rua. «Com os meios de comunicação de massa a grande distância, o isolamento da população torna-se um meio de controle bastante eficaz», constata Lewis Mumford em Através da História, ao descrever um «mundo doravante único». Mas o movimento geral do isolamento, que é a realidade do urbanismo, deve também conter uma reintegração controlada dos trabalhadores, segundo as necessidades planificáveis da produção e do consumo. A integração no sistema deve apoderar-se dos indivíduos isolados em conjunto: fábricas, casas da cultura, colônias de férias, todas essas coisas devem funcionar como «grandes conjuntos habitacionais», especialmente organizados para os fins desta pseudocoletividade que acompanha também o indivíduo isolado na célula familiar: o emprego generalizado dos receptores da mensagem espetacular faz com que o seu isolamento se encontre povoado pelas imagens dominantes, imagens que somente através deste isolamento adquirem seu pleno poderio.

173

Pela primeira vez, aquela nova arquitetura que no passado era reservada à satisfação das classes dominantes, encontra-se diretamente destinada aos pobres. A miséria formal e a extensão gigantesca desta nova experiência de habitat provêm em conjunto do seu caráter de massa, que está implícito, ao mesmo tempo, na sua destinação e pelas condições modernas de construção. A decisão autoritária, que ordena abstratamente o território em território da abstração, está, evidentemente, no centro destas condições modernas de construção. A mesma arquitetura aparece por toda parte no processo de industrialização dos países atrasados, o terreno adequado ao novo gênero de existência social que se pretende implantar. Tão nitidamente como nas questões do armamento termonuclear ou da natalidade -- que já alcançou a possibilidade de uma manipulação hereditaria -- o limiar transposto pelo crescimento do poder material da sociedade e o atraso da dominação consciente deste poder estão expostos no urbanismo.

174

O momento presente é o momento do autofagismo do meio urbano. O rebentar das cidades sobre campos recobertos de «massas informes de resíduos urbanos» (Lewis Mumford) é, de um modo imediato, presidido pelos imperativos do consumo. A ditadura do automóvel, produto-piloto da primeira fase da abundância mercantil, estabeleceu-se na terra com a prevalescência da auto-estrada, que desloca os antigos centros e exige uma dispersão cada vez maior. Ao passo que os momentos de reorganização incompleta do tecido urbano polarizam-se passageiramente em torno das «fábricas de distribuição» que são os gigantescos supermercados(*), geralmente edificados em terreno aberto e cercados por um estacionamento;(*) e estes templos de consumo precipitado estão, eles próprios, em fuga num movimento centrífugo, que os repele à medida que eles se tornam, por sua vez, centros secundários sobrecarregados, porque trouxeram consigo uma recomposição parcial da aglomeração. Mas a organização técnica do consumo não é outra coisa senão o arquétipo da dissolução geral que conduziu a cidade a consumir-se a si própria.

175

A história econômica, que se desenvolveu intensamente em torno da oposição cidade-campo, chegou a um tal gráu de sucesso que anula ao mesmo tempo os dois termos. A paralisia atual do desenvolvimento histórico total, em proveito da exclusiva continuação do movimento independente da economia, faz do momento em que começam a desaparecer a cidade e o campo, não o momento de superação da sua cisão, mas o momento de seu desmoronamento simultâneo. A autofagia recíproca da cidade e do campo, produto do desfalecimento do movimento histórico pelo qual a realidade urbana existente deveria ser superada, aparece na mistura eclética dos seus elementos decompostos que recobre as zonas mais avançadas na industrialização.

176

A história universal nasceu nas cidades e atinge a maioridade no momento da vitória decisiva da cidade sobre o campo. Marx considerava este fato como um dos maiores méritos revolucionários da burguesia: «ela submeteu o campo à cidade» cujo ar emancipa. Mas se a história da cidade é a história da liberdade, ela é também a da tirania, da administração estatal que controla o campo e a própria cidade. A cidade é o campo de batalha da liberdade histórica, não sua posse. A cidade é o meio da história, porque ela é ao mesmo tempo concentração do poder social, que torna possível a empresa histórica, e consciência do passado. A tendência presente à liquidação da cidade não faz, pois, senão exprimir de um outro modo o atraso de uma subordinação da economia à consciência histórica, de uma unificação da sociedade reassenhorando-se dos poderes que dela se tinham desligado.

177

«O campo mostra justamente o fato contrário, o isolamento e a separação» (Ideologia alemã). O urbanismo que destrói as cidades, reconstrói um pseudocampo, no qual estão perdidas tanto as relações naturais do antigo campo como as relações sociais diretas da cidade histórica, diretamente postas em questão. É um novo campesinato fictício, recriado pelas condições de habitat e de controle espetacular no atual «território ordenado»: a dispersão no espaço e a mentalidade acanhada, que sempre impediram o campesinato de empreender uma ação independente e de se afirmar como potência histórica criadora, retornando à condição de produtores -- o movimento de um mundo que eles próprios fabricam, ficando tão completamente fora do seu alcance como quanto o ritmo natural dos trabalhos para a sociedade agrária. Mas este campesinato, outrora a inabalável base do «despotismo oriental», cujo próprio estilhaçamento provocou a centralização burocrática, reaparece como resultado das condições de aumento da burocratizarão estatal moderna, a sua apatia teve de ser agora historicamente fabricada e alimentada; a ignorância natural cedeu o lugar ao espetáculo organizado do erro. As «cidades novas» do pseudocampesinato tecnológico inscrevem claramente a ruptura com o tempo histórico sobre o qual são construídas; seu lema bem que podia ser: «Aqui não aconteceu nada, nem nunca acontecerá». Porque a história da necessidade de libertar as cidades ainda não foi desencadeada. As forças da ausência histórica começam a compor a sua própria e exclusiva paisagem.

178

A história que ameaça este mundo crepuscular é também a força que pode submeter o espaço ao tempo vivido. A revolução proletária é a crítica da geografia humana, através da qual os indivíduos e as comunidades constróem os lugares e os acontecimentos na medida em que se apropriam deles, não apenas pelo seu trabalho, mas pela sua história total. Neste espaço dinâmico do jogo, e das variações livremente escolhidas das regras do jogo, a autonomia do lugar pode reencontrar-se sem reintroduzir uma afeição exclusiva à terra, restabelecendo a realidade de uma viagem que tem em si própria todo o seu sentido.

179

A idéia mais revolucionária a respeito do urbanismo não é nem urbanística, nem tecnológica, nem estética. É a decisão de reconstruir integralmente o território segundo as necessidades do poder dos Conselhos de trabalhadores, da ditadura anti-estatal do proletariado, do diálogo executório. E o poder dos Conselhos não pode ser efetivo senão transformando a totalidade das condições existentes, não poderá atribuir-se-lhes uma tarefa menor do que ser reconhecido e reconhecer-se a si mesmo no seu mundo.

GUY DEBORD

(*) Em inglês no original (N. T.).


 

 

 

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

GUY DEBORD

Capitulo VIII

A NEGAÇÃO E O CONSUMO NA CULTURA

Viveremos o suficiente para ver uma revolução política? Nós, contemporâneos destes alemães? Meu amigo, você crê o que deseja . . . Observe a Alemanha do ponto de vista de sua história recente, e concordará comigo que toda esta história está falsificada e que toda a vida pública atual não representa a realidade do povo. Leia os jornais que quizer, eles não vão parar de celebrar a liberdade e a felicidade nacional, a censura não vai impedir ninguém de fazer isso . . .

Ruge - Carta a Marx, Março de 1844

180

A cultura é a esfera geral do conhecimento e das representações da vivência na sociedade histórica dividida em classes; o que significa dizer que ela é o poder de generalização existente à parte, cisão entre o trabalho intelectual e trabalho intelectual dividido. A cultura desligou-se da unidade da sociedade do mito, «quando o poder da unificação desaparece da vida do homem, os contrários perdem sua relação, sua interação viva, e adquirem autonomia...» (Diferença entre os sistemas de Fichte e de Schelling). Ao ganhar sua independência, a cultura inaugura um movimento imperialista de enriquecimento, que é, ao mesmo tempo, o declínio da sua independência. A história, que cria a autonomia relativa da cultura e as ilusões ideológicas desta autonomia, exprime-se também como história da cultura. E toda a história conquistadora da cultura pode ser compreendida como a história da revelação da sua insuficiência, como uma marcha para a sua auto-supressão. A cultura é o lugar da procura da unidade perdida. Nesta procura da unidade, a cultura como esfera separada representa sua própria negação.

181

A luta entre a tradição e a inovação, que é o princípio do desenvolvimento interno da cultura das sociedades históricas, não pode ter andamento senão através da vitória permanente da inovação. A inovação na cultura, porém, não vem senão trazida pelo movimento histórico total que, ao tomar consciência da sua totalidade, tende à superação dos seus próprios pressupostos culturais e caminha para a supressão de toda a separação.

182

O progresso dos conhecimentos da sociedade, que contem a compreensão da história como o coração da cultura, adquire por si próprio um conhecimento sem retorno que é expresso pela destruição de Deus. Mas esta «condição primeira de toda a crítica» é de igual modo a obrigação primeira de uma crítica infinita. Lá onde nenhuma regra de conduta pode manter-se, cada resultado da cultura a faz avançar para a sua dissolução. Como a filosofia no instante em que conquistou a sua plena autonomia, toda a disciplina tornada autônoma deve desmoronar-se, inicialmente enquanto pretensão de explicação coerente da totalidade social, e, finalmente, enquanto instrumentação parcelar utilizável dentro das suas próprias fronteiras. A falta de racionalidade da cultura separada é o elemento que a condena a desaparecer, porque, nela, a vitória do racional está já presente como exigência.

183

A cultura emanada da história que dissolveu o gênero de vida do velho mundo, enquanto esfera separada, é a inteligência e a comunicação sensível que continuam parciais numa sociedade parcialmente histórica. Ela é o sentido de um mundo bem pouco sensato.

184

O fim da história da cultura manifesta-se em dois aspectos opostos: o projeto da sua superação na história total e a organização da sua manutenção enquanto objeto morto na contemplação espetacular. No primeiro caso liga seu destino à crítica social e no outro à defesa do poder de classe.

185

Cada um dos dois aspectos do fim da cultura existe de um modo unitário, não apenas em todos os aspectos do conhecimento, mas também em todos os aspectos da representação sensível -- ou seja, arte no sentido mais geral. No primeiro caso, opõe-se a acumulação de conhecimentos fragmentários que se tornam inuteis, porque a aprovação das condições existentes deve finalmente renunciar aos seus próprios conhecimentos. Assim, a teoria da práxis detém sozinha toda a verdade e o segredo da sua utilização. No segundo caso, opõe-se à autodestruição crítica da antiga linguagem comum da sociedade e à sua recomposição artificial no espetáculo mercantil, a representação ilusória do não vivido.

186

Quando a sociedade perde a comunidade do mito, perde também todas as referências de uma linguagem realmente comum no momento em que a cisão da comunidade inativa é superada pelo acesso à comunidade histórica real. A arte, que foi essa linguagem comum da inação social, no momento em que ela se constitui em arte independente no sentido moderno, emerge do seu primeiro universo religioso e torna-se produção individual de obras separadas, a saber, o movimento que domina a história do conjunto da cultura separada. A sua afirmação independente é o começo da sua dissolução.

187

A perda da linguagem da comunicação exprime positivamente o movimento de decomposição moderna de toda arte, o seu aniquilamento formal. O que este movimento exprime negativamente é o fato de que uma linguagem comum deve ser reencontrada, não mais na conclusão unilateral de que a arte da sociedade histórica chegava sempre demasiado tarde. Essa arte falava a outros aquilo que foi vivido sem diálogo real, admitindo esta deficiência da vida, embora ela reencontre na práxis a união entre a atividade direta e a sua linguagem. Trata-se de possuir efetivamente a comunidade do diálogo e de atuar com o tempo, representados na obra poético-artística.

188

Quando a arte tornada independente representa o seu mundo com cores resplandecentes, o momento da vida envelhece e não rejuvenesce com as cores resplandecentes. Ele deixa-se somente evocar na recordação. A grandeza da arte não começa a aparecer senão no poente da vida.

189

O tempo histórico que invade a arte exprime-se antes de tudo na própria esfera da arte, a partir do barroco. O barroco é a arte de um mundo que perdeu seu centro: a última ordem mítica reconhecida pela Idade Média, no cosmos e no governo terrestre -- a unidade da Cristandade e o fantasma do Império -- caem por terra. A arte da mudança deve trazer em si o princípio efêmero que ela descobre no mundo. Ela escolheu, conforme diz Eugênio d'Ors, «a vida contra a eternidade». O teatro e a festa, a festa teatral, são os momentos dominantes da realização barroca, na qual toda expressão artística particular não tem sentido senão pela sua referência ao décor de um lugar construído, uma construção que deve ser para si própria o centro de unificação; e este centro é a passagem que está inscrita como um equilíbrio ameaçado na desordem dinâmica de tudo. A importância, por vezes excessiva, adquirida pelo conceito de barroco na discussão estética contemporânea traduz a tomada de consciência na impossibilidade dum classicismo artístico: os esforços a favor dum classicismo ou neoclassicismo normativos, desde há três séculos, não foram senão breves construções fictícias falando a linguagem exterior do Estado, da monarquia absoluta ou da burguesia revolucionária vestida à romana. Do romantismo ao cubismo, é uma arte cada vez mais individualizada da negação, renovando-se perpetuamente até sua redução a migalhas e sua negação acabada da esfera artística que seguiu o curso geral do barroco. O desaparecimento da arte histórica, que estava ligada à comunicação interna duma elite, que tinha a sua base social semi-independente nas condições parcialmente lúdicas ainda vividas pelas últimas aristocracias, traduz também este fato: o capitalismo conhece o primeiro poder de classe que se confessa despojado de qualquer qualidade ontológica. A raiz do poder na simples gestão da economia é igualmente a perda de toda a maestria humana. O conjunto barroco, que para a criação artística é, em si próprio, uma unidade há muito tempo perdida, reencontra-se de algum modo no consumo atual da totalidade do passado artístico. O conhecimento e o reconhecimento históricos de toda arte do passado, retrospectivamente constituída em arte mundial, relativizam-na numa desordem global que constitui, por sua vez, um edifício barroco a um nível mais elevado, edifício no qual devem fundir-se a própria produção de uma arte barroca e todos os seus ressurgimentos. As artes de todas as civilizações e de todas as épocas podem, pela primeira vez, ser todas conhecidas e admiradas em conjunto. É uma «coleção das recordações» da história da arte que, ao tornar-se possível, é de igual modo o fim do mundo da arte. É nesta época dos museus, quando nenhuma comunicação artística pode mais existir, que todos os momentos antigos da arte podem ser igualmente admitidos, porque nenhum deles padece mais da perda das suas condições de comunicação em geral.

190

A arte na sua época de dissolução, enquanto movimento negativo que prossegue a superação da arte numa sociedade histórica em que a história não foi ainda vivida é ao mesmo tempo uma arte da mudança e a expressão pura da mudança impossível. Quanto mais a sua exigência é grandiosa, mais a sua verdadeira realização está para além dela. Esta arte é forçosamente de vanguarda, e não é. A sua vanguarda é o seu desaparecimento.

191

O dadaísmo e o surrealismo são as duas correntes que marcaram o fim da arte moderna. Elas foram contemporâneas do último grande assalto do movimento revolucionário proletário; contudo, o revés deste movimento confinou-as no mesmo campo artístico que proclamaram sua caducidade, o que constituiu a razão fundamental da sua imobilização. Tanto o dadaísmo como o surrealismo estão historicamente ligados e ao mesmo tempo em oposição um ao outro. Nesta oposição, que constitui para ambos a parte mais consequente e radical da sua contribuição, aparece a insuficiência interna da sua crítica, desenvolvida unilateralmente tanto por uma como por outra. O dadaísmo quis suprimir a arte sem a realizar; e o surrealismo quis realizar a arte sem a suprimir. A posição crítica elaborada posteriormente pelos situacionistas mostrou que a supressão e a realização da arte são aspectos inseparáveis de uma mesma superação da arte.

192

O consumo espetacular que conserva a antiga cultura congelada, compreendendo nela a repetição remendada das suas manifestações negativas, torna-se abertamente no aspecto cultural o que ele implicitamente é na sua totalidade: a comunicação do incomunicável. A destruição extrema da linguagem pode encontrar-se aí insipidamente reconhecida como um valor positivo oficial, pois trata-se de apregoar uma reconciliação com o estado dominante das coisas, no qual toda a comunicação é alegremente proclamada ausente. A verdade crítica desta destruição, enquanto vida real da poesia e arte modernas, está evidentemente escondida, porque o espetáculo, que tem a função de fazer esquecer a história na cultura, aplica na pseudonovidade dos seus meios modernistas a própria estratégia que o constitui em profundidade. Assim, uma escola de neoliteratura tida como nova, simplesmente auto-contempla seus escritos. Aliás, ao lado da simples proclamação da beleza suficiente da dissolução do comunicável, a tendência mais moderna da cultura espetacular - e a mais ligada à prática repressiva da organização geral da sociedade - procura recompor, através de «trabalhos de conjunto», um meio neo-artístico complexo a partir dos elementos decompostos; procurando integrar detritos ou híbridos estético-técnicos no urbanismo. Traduzindo, no plano da pseudo-cultura espetacular, o projeto geral do capitalismo desenvolvido que visa ocupar-se do trabalhador pulverizado como «personalidade bem integrada no grupo», tendência descrita pelos recentes sociólogos americanos (Riesman, Whyte, etc.). Trata-se, em toda a parte, do mesmo projeto -- uma reestruturação sem comunidade.

193

A cultura tida integralmente como mercadoria deve tomar-se também a mercadoria vedete da sociedade espetacular. Clark Kerr, um dos ideólogos mais avançados desta tendência, calculou que o complexo processo de produção, distribuição e consumo dos conhecimentos, açambarca anualmente 29% do produto nacional nos Estados Unidos; e prevê que a cultura deve desempenhar na segunda metade deste século o papel motor no desenvolvimento da economia, como o automóvel o foi na sua primeira metade, e as ferrovias na segunda metade do século precedente.

194

O conjunto dos conhecimentos, que continua a desenvolver-se atualmente como pensamento do espetáculo, deve justificar uma sociedade injustificável, e constituir-se em ciência geral da falsa-consciência, inteiramente condicionada pelo fato de não poder nem mesmo querer pensar na sua própria base material no sistema espetacular.

195

O próprio pensamento da organização social da aparência está obscurecido pela subcomunicação generalizada que ele defende. Ele não sabe que o conflito está na origem de todas as coisas do seu mundo. Os especialistas do poder do espetáculo, poder absoluto no interior do seu sistema de linguagem mão única, estão absolutamente corrompidos pela sua experiência do desprezo e do êxito do desprezo; porque reencontram o seu desprezo confirmado pelo conhecimento do homem desprezível que é realmente o espectador.

196

No pensamento especializado do sistema espetacular opera-se uma nova divisão das tarefas na medida em que o próprio aperfeiçoamento deste sistema situa os novos problemas: por um lado, a critica espetacular do espetáculo é empreendida pela sociologia moderna, que estuda a separação com o auxílio de seus instrumentos conceituais e materiais da separação; por outro lado, a apologia do espetáculo constitui-se em pensamento do não-pensamento, em esquecimento registrado da prática histórica, nas diversas disciplinas onde se enraíza o estruturalismo. Porém, o falso desespero da crítica não dialética e o falso otimismo da pura publicidade do sistema são idênticos enquanto pensamento submisso.

197

A sociologia que começou a questionar, inicialmente nos Estados Unidos, as condições resultantes do atual desenvolvimento, embora tenha apresentado muitos dados empíricos, nunca conheceu a verdade do seu próprio objeto, porque não encontrou no mesmo a crítica que Ihe é imanente. Assim, a tendência francamente reformista desta sociologia não se apoia senão na moral, no senso comum, e em apelos à moderação completamente fora de propósito. Tal maneira de criticar, desconhecendo o negativo que está no coração do seu mundo, nada faz senão insistir na descrição de uma espécie de excedente negativo que o mantém deploravelmente na superfície, como uma proliferação parasitária irracional. Esta boa vontade indignada, que mesmo enquanto tal não consegue vituperar senão as consequências exteriores do sistema, embora julgue-se crítica, esquece o caráter essencialmente apologético dos seus pressupostos e do seu método.

198

Aqueles que denunciam o absurdo ou os perigos do incitamento à dissipação na sociedade da abundância econômica, não sabem para que serve a dissipação. Eles acusam de ingratidão, em nome da racionalidade econômica, os bons guardas irracionais sem os quais o poder desta racionalidade econômica se desmoronaria. Boorstin, por exemplo, que descreve em A Imagem o consumo mercantil do espetáculo americano, nunca atinge o conceito de espetáculo, por achar poder deixar a vida privada do lado de fora, em sua noção de «mercadoria honesta». Não compreende que a própria mercadoria fez as leis cuja aplicação «honesta» contamina tanto a realidade da vida privada como a sua conquista ulterior pelo consumo social das imagens.

199

Boorstin descreve os excessos de um mundo que se tornou estranho para nós, excessos estranhos ao nosso mundo. Mas a base «normal» da vida social a que ele se refere implicitamente quando qualifica o reino superficial das imagens -- em termos de julgamento psicológico e moral e como produto das «nossas extravagantes pretensões» -- não é real nem no seu livro nem na sua época. A vida humana real mencionada por Boorstin está para ele no passado, inclusive no passado da resignação religiosa, de forma que não pode compreender toda a profundidade da sociedade da imagem. A verdade desta sociedade não é mais do que a negação desta sociedade.

200

A sociologia, que julga poder extrair do conjunto da vida social uma racionalidade industrial funcionando à parte, apenas extrai do movimento industrial global as técnicas de reprodução e transmissão. Assim, Boorstin toma como causa dos resultados que descreve, o encontro infeliz, quase fortuito, do gigantesco aparelho técnico de difusão de imagens e da gigantesca propensão dos homens da nossa época ao pseudo-sensacional. Assim, o espetáculo surge devido ao fato do homem moderno ser demasiado espectador. Boorstin não compreende que a proliferação dos «pseudo-acontecimentos» pré-fabricados que ele denuncia deriva deste simples fato: que os próprios homens, na realidade concreta da atual vida social, não vivem os acontecimentos. O fato da história perseguir a sociedade moderna como um espectro, resulta em uma pseudo-história construída em todos os níveis do consumo da vida, para preservar o equilíbrio ameaçado do atual tempo congelado.

201

A afirmação da estabilidade definitiva de um curto período de congelamento do tempo histórico é a base inegável, inconsciente e conscientemente proclamada, da atual tendência a uma sistematização estruturalista. O ponto de vista em que se coloca o pensamento anti-histórico do estruturalismo é o da eterna presença de um sistema que nunca foi criado e que nunca acabará. O sonho da ditadura de uma estrutura prévia inconsciente sobre toda a práxis social pôde ser abusivamente tirada dos modelos de estruturas elaborados pela linguística e pela etnologia (e mesmo pela análise do funcionamento do capitalismo), modelos já abusivamente compreendidos nessas circunstâncias, simplesmente porque um pensamento universitário de quadros médios, rapidamente satisfeitos, pensamento integralmente submerso no elogio maravilhado do sistema existente, reduz à vulgaridade toda a realidade em torno da existência do sistema.

202

Como em qualquer ciência social histórica, é preciso ter sempre em vista, para a compreensão das categorias «estruturalistas», o fato de que tais categorias exprimem formas de existência e condições de existência. Assim como não se aprecia o valor de um homem pela concepção que ele tem de si próprio, não se pode apreciar e admirar determinada sociedade aceitando como indiscutivelmente verídica a concepção que ela tem de si mesma. «Não se pode apreciar épocas de transformação pela consciência que essas épocas tiveram dessa transformação; pelo contrário, a consciência deve ser explicada com a ajuda das contradições da vida material...». A estrutura é filha do poder presente. O estruturalismo é o pensamento garantido pelo Estado, que pensa as condições presentes da «comunicação» espetacular como um absoluto. Sua maneira de estudar o código das mensagens não é outra coisa senão o produto e o reconhecimento duma sociedade em que a comunicação existe sob a forma duma cascata de sinais hierárquicos. Assim, o estruturalismo não prova a validade trans-histórica da sociedade do espetáculo; pelo contrário, é a sociedade do espetáculo, impondo-se como realidade concreta, que serve para provar o sonho frio do estruturalismo.

203

Sem dúvida, o conceito crítico de espetáculo pode também ser vulgarizado numa fórmula oca qualquer de retórica sociológica-política para explicar e denunciar tudo abstratamente e, assim, servir para a defesa do sistema espetacular. Porque é evidente que nenhuma ideia pode conduzir para além do espetáculo, mas somente para além das ideias existentes sobre o espetáculo. Para destruir efetivamente a sociedade do espetáculo, são necessários homens pondo em ação uma força prática. A teoria crítica do espetáculo não é verdadeira senão unida à corrente prática da negação na sociedade, e esta negação, o retomar da luta de classe revolucionária, terá consciencia de si própria ao desenvolver a crítica do espetáculo, que é a teoria das suas condições reais, das condições práticas da opressão atual, desvendando o segredo daquilo que ela pode ser. Esta teoria não espera milagres da classe operária. Ela encara a nova formulação e a realização das exigências proletárias como uma tarefa de grande alento. Para distinguir luta teórica e luta prática na base aqui definida, a própria constituição e a comunicação de tal teoria não pode ser concebida sem uma prática rigorosa. O percurso obscuro e difícil da teoria critica deverá também ser o âmago do movimento prático, atuando em escala de sociedade.

204

A teoria crítica deve comunicar-se na sua própria linguagem. É a linguagem da contradição, que deve ser dialética na sua forma como o é no seu conteúdo. Ela é a crítica da totalidade e a critica histórica. Não é um «grau zero da escrita» mas o seu contrário. Não é uma negação do estilo, mas o estilo da negação.

205

Mesmo no seu estilo, a exposição da teoria dialética é um escândalo e uma abominação segundo as regras da linguagem dominante, e também para o gosto que elas educaram, porque no emprego positivo dos conceitos existentes ela inclui ao mesmo tempo a inteligência da sua fluidez reencontrada, e da sua destruição necessária.

206

Este estilo, que contém a sua própria crítica, deve exprimir a dominação da crítica presente sobre todo o seu passado. Por ele, o modo de exposição da teoria dialética é testemunha do espírito negativo que nela reside. «A verdade não é como o produto no qual não se encontra o traço do instrumento» (Hegel). Esta consciência teórica do movimento, na qual o próprio traço do movimento deve estar presente, manifesta-se pela inversão das relações estabelecidas entre os conceitos e pelo desvio de todas as aquisições da crítica anterior. A inversão do genitivo é a expressão das revoluções históricas, consignada na forma do pensamento, que foi considerada como o estilo epigramático de Hegel. O jovem Marx, ao preconizar, conforme o uso sistemático que dela tinha feito Feuerbach, a substituição do sujeito pelo predicado, atingiu o emprego mais consequente desse estilo insurreicional que, da filosofia da miséria, tira a miséria da filosofia. O desvio submete à subversão as conclusões críticas passadas que foram petrificadas em verdades respeitáveis, isto é, transformadas em mentiras. Kierkegaard já tinha feito deliberadamente uso disto, ao associar-Ihe a sua própria denúncia: «Mas não obstante as voltas e reviravoltas, na medida em que o doce volta sempre para o armário, tu acabas sempre por introduzir uma pequena palavra que não é tua e que perturba pela recordação que desperta» (Migalhas filosóficas). É a obrigação da distancia para com o que foi falsificado em verdade oficial que determina este emprego do desvio, assim confessado por Kierkegaard no mesmo livro: «Um único reparo visa censurar o que foi dito, emprestar expressões. Não nego nem escondo que isso foi voluntário e que na continuação desta brochura, se algum dia a escrever, chamarei o objeto pelo seu verdadeiro nome e revestirei o problema com um traje histórico».

207

As idéias se aperfeiçoam. O sentido das palavras também. O plagiato é necessário. O avanço implica-o. Ele acerca-se estreitamente da frase de um autor, serve-se das suas expressões, suprime uma idéia falsa, substitui-a pela idéia justa.

208

O desvio é o contrário da citação. A autoridade teórica sempre é falsificada no momento em que ela se torna citação; fragmento arrancado do seu contexto, do seu movimento, e, finalmente, de sua época, enquanto referência global e opção precisa que ela constituía no interior desta referência. O desvio é a linguagem fluida da anti-ideologia. Ele aparece na comunicação sem garantir nada por si mesmo e definitivamente. Ele é a linguagem que nenhuma referência antiga e supracrítica pode confirmar. É a sua própria coerência, para consigo e para com os fatos praticáveis, que procura confirmar o antigo núcleo de verdade que carrega consigo. O desvio não funda a sua causa sobre nada externo à sua própria verdade enquanto crítica presente.

209

Aquilo que, na formulação teórica, se apresenta abertamente como desviado, ao desmentir toda a autonomia durável da esfera da expressão teórica, desencadeia, por esta violência, a ação que perturba e varre toda a ordem existente, faz lembrar que esta existência do teórico não é nada em si mesma, e não se faz conhecer senão pela ação histórica, e pela correção histórica que é a sua verdadeira fidelidade.

210

A negação real da cultura é a única coisa que lhe conserva o sentido. Ela já não pode ser cultural. Assim, ela é aquilo que permanece de algum modo ao nível da cultura, embora numa acepção totalmente diferente.

211

Na linguagem da contradição, a crítica da cultura apresenta-se unificada: enquanto dominar o todo da cultura -- tanto seu conhecimento como sua poesia -- e não se separar da crítica da totalidade social, é somente esta critica teórica unificada que vai ao encontro da prática social unificada.

GUY DEBORD


A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

GUY DEBORD

Capitulo IX

A IDEOLOGIA MATERIALIZADA

A auto-consciência existe em si e para si quando e porque ela existe em si e para si para uma outra auto-consciência; ou seja, ela não existe enquanto não for reconhecida.

Hegel - Fenomenologia do Espírito

212

A ideologia é a base do pensamento duma sociedade de classes, no curso conflitual da história. Os fatos ideológicos não foram nunca simples quimeras, mas a consciência deformada das realidades, e, enquanto tais, fatores reais exercendo, por sua vez, uma real ação deformada; na medida em que a materialização da ideologia na forma do espetáculo, que arrasta consigo o êxito concreto da produção econômica autonomizada, se confunde com a realidade social, essa ideologia que pode talhar todo o real segundo o seu modelo.

213

Quando a ideologia, que é a vontade abstrata do universal, e a sua ilusão, se legitima pela abstração universal e pela ditadura efetiva da ilusão na sociedade moderna, ela já não é a luta voluntarista do parcelar, mas o seu triunfo. Daí a pretensão ideológica adquire uma espécie de fastidiosa exatidão positivista: ela já não é uma escolha histórica, mas uma evidência. Numa tal afirmação, os nomes particulares das ideologias desvanecem-se. Mesmo a parte operante propriamente ideológica ao serviço do sistema já não se concebe senão enquanto uma «base epistemológica» que se pretende além de qualquer fenômeno ideológico. A própria ideologia materializada não tem nome, da mesma forma que não tem qualquer programa histórico enunciável. Ou seja, a história das ideologias inexiste.

214

A ideologia, que toda a sua lógica interna conduzia à «ideologia total», no sentido de Mannheim, o despotismo do fragmento que se impõe como pseudo-saber dum todo petrificado, a visão totalitária, é agora realizada no espetáculo imobilizado da não-história. A sua realização é também a sua dissolução no conjunto da sociedade. Com a dissolução prática desta sociedade deve desaparecer a ideologia, o último contra-senso que bloqueia o acesso à vida histórica.

215

O espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta na sua plenitude a essência de qualquer sistema ideológico: o empobrecimento, a submissão e a negação da vida real. O espetáculo é, materialmente, «a expressão da separação e do afastamento entre o homem e o homem». O «novo poderio do embuste» que se concentrou aí tem a sua base na produção onde surge «com a massa crescente de objetos... um novo domínio de seres estranhos aos quais o homem se submete». É grau supremo duma expansão que necessariamente se coloca contra a vida. «A necessidade de dinheiro é portanto a verdadeira necessidade produzida pela economia política, e a única necessidade que ela produz» (Manuscritos econômico-filosóficos). O espetáculo estende por toda a vida social o princípio que Hegel, na Realphilosophie de Iena, concebe quanto ao dinheiro; é «a vida do que está morto movendo-se em si própria» .

216

Ao contrário do projeto resumido nas Teses sobre Feuerbach (a realização da filosofia na práxis que supera a oposição entre o idealismo e o materialismo), o espetáculo conserva ao mesmo tempo, e impõe no pseudoconcreto do seu universo, os caracteres ideológicos do materialismo e do idealismo. O aspecto contemplativo do velho materialismo, que concebe o mundo como representação e não como atividade, e que finalmente idealiza a matéria, está realizado no espetáculo, onde as coisas concretas são automaticamente senhoras da vida social. Reciprocamente, a atividade sonhada do idealismo realiza-se igualmente no espetáculo pela mediação técnica de signos e de sinais, que finalmente materializam um ideal abstrato.

217

O paralelismo entre a ideologia e a esquizofrenia estabelecido por Gabel (A Falsa Consciência) deve ser inserido neste processo econômico de materialização da ideologia. O que a ideologia era, a sociedade acabou sendo. A desinserção da práxis e a falsa consciência antidialética que a acompanha, eis o que é imposto a cada hora da vida quotidiana submetida ao espetáculo; que deve ser compreendido como a organização sistemática do «desfalecimento da faculdade de encontro» que é substituido por um fato alucinatório social: a falsa consciência do encontro, a «ilusão do encontro». Numa sociedade em que ninguém pode mais ser reconhecido pelos outros, cada indivíduo torna-se incapaz de reconhecer sua própria realidade. A ideologia está em casa; a separação construiu o seu mundo.

218

«Nos quadros clínicos da esquizofrenia», diz Gabel, «a decadência da dialética da totalidade (tendo como forma extrema a dissociação) e a decadência da dialética do devir (tendo como forma extrema a catatonia) parecem bem solidárias». A consciência espectadora, prisioneira dum universo estreito, limitada pelo écran do espetáculo, para onde sua vida foi deportada, não conhece mais do que interlocutores fictícios que Ihe falam unilateralmente da sua mercadoria e da política da sua mercadoria. O espetáculo, em toda a sua extensão, é seu «sinal do espelho». Aqui se põe em cena a falsa saída num autismo generalizado.

219

O espetáculo que é a extinção dos limites do moi(*) e do mundo pelo esmagamento do moi(*) que a presença-ausência do mundo assedia, é igualmente a supressão dos limites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento de toda a verdade vivida sob a presença real da falsidade que a organização da aparência assegura. Aquele que sofre passivamente a sua sorte quotidianamente estranha é, pois, levado a uma loucura que reage ilusoriamente a essa sorte, ao recorrer a técnicas mágicas. O reconhecimento e o consumo das mercadorias estão no centro desta pseudo-resposta a uma comunicação sem resposta. A necessidade de imitação que o consumidor sente é precisamente uma necessidade infantil, condicionada por todos os aspectos da sua despossessão fundamental. Segundo os termos que Gabel aplica a este nível patológico completamente diferente, a necessidade anormal de representação compensa o sentimento torturante de estar à margem da existência.

220

Se a lógica da falsa consciência não pode reconhecer-se veridicamente a si mesma, a procura da verdade crítica sobre o espetáculo deve ser também uma critica verdadeira. É-lhe necessário lutar entre os inimigos irreconciliáveis do espetáculo e admitir estar ausente lá onde eles estão ausentes. São as leis do pensamento dominante, do ponto de vista exclusivo da atualidade, que reconhecem a vontade abstrata da eficácia imediata, quando ela se lança nos compromissos do reformismo ou da ação comum dos resquícios pseudo-revolucionários. Aí, o delírio reconstitui-se na própria posição que pretende combatê-lo. A crítica que vai além do espetáculo deve saber esperar.

221

Emancipar-se das bases materiais da verdade invertida, eis no que consiste a auto-emancipacão da nossa época. A «missão histórica de instaurar a verdade no mundo», nem o indivíduo isolado, nem a multidão atomizada, submetida às manipulações, a pode realizar, mas a classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes, ao reduzir todo o poder à forma desalienante da democracia realizada, o Conselho, é a instância onde a teoria prática se controla a si própria e vê sua ação. É lá, somente, onde os indivíduos estão «diretamente ligados à história universal»; É lá, somente, onde o diálogo se estabelece para fazer vencer as suas próprias condições.

(*) Mantém-se o original para não alterar a referência analítica donde provem (N.T.).

Fim de "A Sociedade do espetáculo" de GUY DEBORD


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