arquivo situacionista brasileiro
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"A construção de situações tem início antes da recente demolição da noção de espetáculo. É fácil ver até que ponto vai a ligação entre a alienação do velho mundo e a base do espetáculo: a não intervenção. Vê-se também, o inverso, que as buscas revolucionárias mais válidas na cultura tem tentado romper a identificação psicológica do espectador com o herói para arrastá-lo à atividade... A situação se faz para ser vivida pelos seus construtores. O papel do «público», passivo ou até mesmo figurante, deve sempre diminuir, enquanto que aumenta a participação daqueles que já não podem chamar-se de atores mas, em um novo sentido do termo, de «vividores». -- Informe sobre a construção de situações
O conceito que temos de "situação construída" não se limita ao emprego unitário dos meios artísticos que concorrem em um ambiente, por maior que possa ser a amplitude espaço-temporal e a força do dito ambiente. A situação é ao mesmo tempo uma unidade de comportamento no tempo. É formada pelos gestos compreendidos na cena de um momento. Estes gestos são o produto da cena e de si mesmos. Produzem outras cenas e outros gestos. Como orientar estas forças? Não nos contentaremos com entornos experimentais produzidos mecanicamente se esperamos surpresas destes entornos. A meta realmente experimental da atividade situacionista é o estabelecimento, a partir de desejos mais ou menos conhecidos, de um campo de atividade temporal favorável a esses desejos. Ele apenas pode trazer consigo o esclarecimento dos desejos primitivos e a aparição confusa de outros novos cuja raiz material será precisamente a nova realidade constituída pelas construções situacionistas.
Há que afrontar portanto uma espécie de psicanálise com fins situacionistas, devendo encontrar cada um dos que participam nesta aventura desejos ambientais precisos para realizá-los, mas no sentido oposto aos fins perseguidos pelas correntes surgidas do freudianismo. Cada um deve buscar o que gosta, o que lhe atrai (e contrariamente a alguns intentos da moderna literatura, -- por exemplo Leiris -- o que nos importa não é a estrutura individual de nosso espírito nem a explicação de sua formação, mas sua possível aplicação nas situações construídas). Com estes métodos torna-se possível superar os elementos constitutivos das situações a edificar; projetos para o movimento destes elementos.
Uma investigação semelhante apenas tem sentido para indivíduos cujo trabalho se enfoque praticamente na construção de situações. Todos eles são, espontaneamente ou de forma consciente e organizada, pre-situacionistas, indivíduos que tem experimentado a necessidade objetiva desta construção através de um mesmo estado de carência na cultura e das mesmas expressões de sensibilidade experimental imediatamente anterior. Estão unidos por sua especialização e por sua pertinência a uma vanguarda histórica dentro dela. Portanto é provável que se encontrem em todos eles numerosos pontos em comum com o desejo situacionista, que se diversificará cada vez mais a partir de seu transito a uma fase de atividade real.
A situação construída é forçosamente coletiva em sua preparação e desenvolvimento. Sem embargo parece necessário, pelo menos nas primeiras experiências, que um indivíduo exerça certa proeminência sobre uma dada situação atuando como diretor de cena. A partir de um projeto de situação -- estudado por uma equipe de investigadores -- que combinaria, por exemplo, uma reunião emocionante de algumas pessoas durante uma filmagem, onde teria que distinguir-se sem duvida um diretor -- ou cenógrafo encarregado de coordenar os elementos prévios da construção do cenário e do planejamento de algumas intervenções sobre os acontecimentos (este processo poderia ser compartilhado por vários responsáveis que ignorem mutuamente seus planos de intervenção) --, uns agentes diretos que vivem a situação -- que tenham participado na criação do projeto coletivo e que tenham trabalhado na composição prática do ambiente --, e alguns espectadores passivos -- alheios ao trabalho de construção -- aos quais convirá reduzir a ação.
Naturalmente a relação entre o diretor e os "vividores" da situação não pode converter-se em uma relação entre especializações. Trata-se apenas de uma subordinação momentânea de toda uma equipe de situacionistas ao responsável de uma experiência isolada. Nem estas perspectivas nem seu vocabulário provisional devem dar a entender que se trata de uma continuação do teatro. Pirandello e Brecht já apontavam para a necessidade da destruição do espetáculo teatral entre outras reivindicações que iam ainda mais longe. Pode-se dizer que a construção de situações substituirá o teatro apenas na medida em que a construção real da vida vá substituindo cada vez mais a religião. Evidentemente o primeiro campo que vamos substituir e realizar é a poesia, que se consumiu a si mesma como vanguarda de nosso tempo, e que desapareceu por completo.
A realização efetiva do indivíduo, da mesma forma que a experiência artística que desvelam os situacionistas, passa forçosamente por seu controle coletivo: antes desse controle não há indivíduos, há apenas sombras que freqüentam os objetos que outros anarquicamente lhes proporcionam. Encontramos, em situações ocasionais, indivíduos isolados que se movem aleatoriamente. Suas emoções divergentes o neutralizam e mantêm seu sólido entorno de aborrecimentos. Aniquilaremos estas condições fazendo aparecer em alguns pontos o sinal incendiário de um jogo superior.
O funcionalismo, que é uma expressão necessária do avanço técnico, intenta eliminar em nossa época totalmente o jogo, e os partidários do "industrial design" lamentam a perversão de sua atividade pela inclinação do homem ao jogo. Esta inclinação, explorada rasteiramente pelo comercio industrial, põe imediatamente em questão resultados úteis e exigem novas formulações. Cremos que não há que alentar a constante renovação artística da forma dos frigoríficos, mas o funcionalismo moralizador não pode fazer nada a respeito. A única saída progressiva é liberar em outra parte, e de modo mais amplo, a tendência ao jogo. As ingênuas indignações da teoria pura do "industrial design" não tem impedido, por exemplo, que o automóvel individual seja principalmente um jogo imbecil, e apenas acessoriamente um meio de transporte. Contra todas as formas regressivas de jogo que supõem seu retorno a estágios infantis -- ligados sempre a políticas reacionárias -- há que se apoiar as formas experimentais de um jogo revolucionário.
Arquivo situacionista
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