A Igreja Católica passou 2000 anos descrevendo o inferno como um lugar cheio
de fogo e tortura. Os protestantes ainda se apegam a essa idéia e é assim
que ele foi mostrado aos pastores de Fátima durante uma das supostas
aparições da Virgem. Agora a Igreja diz que o sofrimento é apenas a ausência
de Deus, o arrependimento por se ter escolhido a opção errada. Não uma
condenação, mas uma escolha individual.
Se só ao chegar lá os pecadores vão realmente entender que estavam errados,
como afirmar que a escolha foi consciente e informada? Pelo contrário, em
Lucas 16:19-31 conta-se a parábola do rico no inferno que pede que seus
irmãos ainda vivos sejam sejam avisados do que lhe aconteceu para que não
acabem como ele, o que lhe é negado. A explicação, ridícula, é a de que, se
não acreditaram em Abraão e nos profetas, também não vão acreditar se os
mortos lhes aparecerem (por que não?!). Conclui-se que seus irmãos não
sabiam do risco que corriam (mesmo porque, para os judeus, a noção de céu e
inferno era um tanto confusa). E não é permitido ajudá-los. Deixem que se
danem.
Note-se que o condenado tinha bom coração. Ele poderia perfeitamente
desejar que seus irmãos sofressem também. Outro absurdo é que Lázaro, o
pobre, foi para o céu após uma vida de sofrimento enquanto que o rico foi
para o inferno após uma vida de prazeres. Em outras palavras, por um
instante de sofrimento, uma eternidade no céu e, por um instante de prazer,
uma eternidade no inferno. Uma punição infinitamente desproporcional por uma
falta cometida por quem não tinha total consciência de seus atos. E uma
recompensa também desproporcional por uma vida de sofrimentos não
necessariamente escolhida pelo sofredor e sim imposta a ele.
O castigo eterno é uma punição grande demais para faltas tão pequenas. Como
podem leis absolutas ser aplicadas a seres finitos, limitados e nem um pouco
absolutos como nós? Se Lúcifer, um ser de luz, um puro espírito, face a face
com Deus, pôde errar, por que simples criaturas materiais devem ser tratadas
do mesmo modo que ele? Onde está nosso livre arbítrio se nosso espírito está
aprisionado nesta carcaça de carne, numa luta constante contra o
apodrecimento? Se nossa visão das coisas é limitada pelos nossos sentidos
limitados e nossos instintos animais? Se uma decisão inabalável pode ser
destruída por uma enxaqueca ou uma diarréia?
O mundo que a Igreja descreve é como uma arena onde somos jogados para lutar
contra os leões, mas com armas limitadas e contra a nossa vontade. Obrigados
a participar de um jogo mortal, com regras injustas, obscuras e mutáveis e
que nos foram impostas. E ainda temos que louvar o promotor do jogo. Kafka
não faria melhor.
Um livre arbítrio bem entendido deveria começar pela escolha entre nascer ou
não, receber este "presente" do "amor" de Deus ou escapar dele, de uma vida
de sofrimentos que talvez seja seguida de uma tortura eterna que nós
"escolhemos por vontade própria".
Em que medida uma criança é responsável pela educação que recebe e pelo meio
social e familiar em que é criada, o que vai determinar que tipo de adulto
será mais tarde? Que grau de responsabilidade tem ela por estes fatores que
não estão sob seu controle? Mesmo que lhe falem de céu e inferno, será que
ela está em condições de entender, qualquer que tenha sido sua educação?
Será que lhe apresentam provas tão convincentes que ela não possa alegar que
não viu motivos para crer?
O livre arbítrio é, na verdade, a possibilidade que Deus nos deu de irmos
para o Inferno. Um pai que realmente ama seus filhos não apenas os alerta
sobre o perigo mas também acaba com ele. Um pai amoroso não cria novos
perigos propositalmente.
Suponhamos que o inferno exista. Uma pessoa só pode ir para lá se decidir,
de livre e expontânea vontade, cometer atos que ela sabe, de plena
consciência, que vão levá-la ao castigo eterno. Quem tomaria tal decisão,
sabendo de todas as consequências de seus atos? Mesmo que alguém afirme: "Eu
quero ir para o inferno!", não podemos acreditar em que esta pessoa saiba do
que está falando. Para que sua escolha fosse válida, ela teria que ser
levada ao inferno, ver e sentir o que significa ir para lá e só então
decidir. Entretando, tudo o que temos são lendas para assustar os crédulos.
A Igreja afirma que a escolha é nossa, que somos nós que decidimos e não
Deus; isto é uma ofensa à nossa (ainda que limitada) inteligência. Admitir a
existência do inferno significa admitir que o Deus infinitamente
misericordioso é também infinitamente vingativo.
Algumas citações:
"Qual é o propósito de um castigo eterno depois do fim do mundo? Se não
serve para recuperar os pecadores ou como advertência para os demais,
trata-se de simples vingança e é moralmente incorreto"(1)
"Nosso tempo de vida é limitado e nós somos limitados, o que limita a
quantidade de pecados que podemos cometer. Mas o castigo do inferno é
infinito, o que o torna infinitamente injusto" (2)
"Deus diz: "Faça o que você quiser mas, se escolher errado, você será
torturado no inferno por toda a eternidade". Isto não é liberdade de
escolha. Equivale a um homem que diz a sua namorada: "Faça o que você quiser
mas, se escolher me deixar, eu vou atrás de você e estouro seus miolos".
Quando um homem diz isto, nós o chamamos de psicopata e exigimos sua prisão.
Quando Deus diz isto, nós dizemos que ele nos ama e construímos igrejas em
seu louvor" (3)
"Acredite em Jesus sem provas e evidências ou seja torturado eternamente.
Ameaças em lugar de argumentos. Os homens inteligentes são os pecadores e os
crédulos, os santos. O inferno é o lugar para onde os covardes enviam os
heróis" (4)
Diz a Bíblia:
Marcos 16:15-16: "Então Jesus disse-lhes: "Vão pelo mundo inteiro e anunciem
a Boa Notícia para toda a humanidade. Quem acreditar e for batizado, será
salvo. Quem não acreditar, será condenado".
João 15:06: "Quem não fica unido a mim será jogado fora como um ramo, e
secará. Esses ramos são ajuntados, jogados no fogo e queimados."
Mensagem: acredite sem questionar ou queime no inferno para sempre. Isto são
Boas Novas ou o decreto de um tirano?
Se Jesus manda perdoar os inimigos e oferecer a outra face, como ele poderia
condenar ao castigo eterno alguém que honestamente não viu motivos para
acreditar nele? O que ele responderia se isto lhe fosse perguntado pelo
penitente na hora do Juízo Final? Ou ele não é obrigado a seguir seus
próprios mandamentos?
Muitos crentes se dizem "salvos" porque "aceitaram Jesus como seu salvador"
e acham que não precisam fazer mais nada, já que eles se agarram ao
Evangelho segundo João, que diz que o importante é a fé e não as boas obras,
que os ateus irão para o inferno por mais virtuosos que sejam. Boa parte dos
crentes parece considerar o Juízo Final como o momento da vingança, o
momento em que serão glorificados diante de todos e irão para o céu enquanto
a escumalha, os descrentes, os infiéis, serão jogados no inferno. Os
católicos também já foram assim, como se vê por estas duas citações:
"Para que os santos possam desfrutar de sua beatitude e da graça de Deus
mais abundantemente, lhes é permitido ver o sofrimento dos condenados no
inferno" (5)
"Ah, que cena magnífica! Como eu vou rir e ser feliz e exultar quando eu vir
esses filósofos tão sábios, que ensinam que os deuses são indiferentes e que
os homens não tem alma, assando e torrando diante de seus discípulos no
inferno" (6)
Outros crentes dizem que não há desculpa para quem não quer "aceitar Jesus",
já que a Bíblia está ao alcance de todos e as igrejas estão por toda a
parte, de portas abertas. Dizem que têm pena dos que serão condenados mas
que é a escolha deles. E que os milhões de descrentes terão uma surpresa
muito desagradável no final dos tempos. Por mais que digam o contrário, a
impressão que se tem ao ouví-los é de que estão esfregando as mãos de
felicidade, na expectativa do dia da vingança.
Como disse Mark Twain, "as pessoas que me dizem que eu vou para o inferno e
que elas vão para o céu de certa forma me deixam feliz por não estarmos indo
para o mesmo lugar".
Fernando Silva (lochnar@ig.com.br)
Fontes:
(1) Lord Byron, "Detached Thoughts", no.96 (1821-
22) em "Byron's Letters and Journals", vol. 9,
1979.
(2) Dennis McKinsey, "Biblical Errancy - My two
pamphlets".
(3) William C. Easttom II
(4) Lemuel K. Washburn, "Is The Bible Worth Reading
And Other Essays"
(5) Tomás de Aquino, 1225-1274, "Summa Theologica"
(6) Tertuliano, "De Spectaculis"