> Coluna do Arnaldo Jabor - Jornal O Globo
> 15/05/2001
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> O apagão poderá nos trazer alguma luz.
> Nossa ilusão de Primeiro Mundo falsificado caiu por terra.
> Não tivemos guerra, não tivemos revolução, mas teremos o apagão. O apagão
> vai ser uma porrada na nossa auto-estima, mas terá suas vantagens. Com o
> apagão, ficaremos mais humildes, como os humildes. A grande onda
narcisista
> da democracia liberal ficará mais cabreira,
> as gargalhadas das colunas sociais ficarão menos luminosas, nossas
> dentaduras menos brancas, nossos flashes menos gloriosos. Baixará o
>  astral das estrelas globais, dos grandes comedores, as bundas ficarão
mais
> tímidas, os peitos de silicone menos arrebitados, ficaremos menos
arrogantes
> dentro da escuridão que se abaterá em nossas vidas de classe média. Há
algo
> de castigo de Deus nesta porra toda, pois ficaremos mais parecidos com as
> periferias, para quem sempre houve o apagão de vidas e sonhos, haverá algo
> de becos escuros, de becos sem saída,
>  de favelas tristes, haverá um baque em nosso egoísmo, nossas peruas e
> nossos cafajestes terão de maneirar um pouco. A euforia de Primeiro Mundo
> falsificado cairá por terra e dará lugar a uma belíssima e genuína
> infelicidade.
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> O Brasil se lembrará do passado agropastoril que teve e que,
escondidamente,
> ainda tem; teremos saudades do matão, do luar do sertão,
> da Rádio Nacional, do acendedor de lampiões da rua, dos candeeiros, das
> lâmpadas de carbureto dos carrinhos de pipoca, lembraremos das tristes
> noites dos anos 40, como das noites dos blackouts da Segunda Guerra, mesmo
> sem os submarinos, sem navios alemães, apenas sinistros assaltantes nas
> esquinas apagadas.  O apagão nos lembrará dos velhos carnavais: "tomara
que
> chova três dias sem parar." Ou: "Rio, cidade que nos seduz, de dia falta
> água, de noite falta luz!" Lembraremos dos velhos discos de 78 rpm, dos
> cantores com som precário, das TVs preto e branco, de um Brasil mais
micha,
> mais pobre, cambaio, troncho, mas bem mais brasileiro em seu caminho da
> roça, que o Golpe de 64 interrompeu, que esta mania prostituída de
Primeiro
> Mundo matou a tapa.
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> Há algo de maldição nisso tudo, castigo pela destruição de Sete Quedas, o
> preço a pagar pelos demônios ecológicos de Itaipu, de Tucuruí, do tal
> "Brasil potência", das grandes gorjetas, das represas, dos 50 bilhões de
> dólares de Angra 1 e 2, dos bilhões roubados nas grandes hidrelétricas
> arcaicas já na época em que se sabia da melhor utilidade das pequenas
usinas
> e de outras fontes de energia. Lembraremos de Geisel, de Médici,
>  dos milicos que nos marcam a vida até hoje, nos entregando uma democracia
> de caixa quebrada, nos lembraremos também dos canalhas que pilharam o
> Tesouro, com sua fome de 20 anos, dos corruptos, das instituições
vagabundas
> que nos ajudaram a falir, nos obrigando a um ajuste fiscal desumano, nos
> obrigando a uma governança miserável, sem desenvolvimento, sem projeto,
> limitada a arrumar as contas da falência.
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> O apagão nos mostra que somos subdesenvolvidos sim, que toda esta
> superestrutura de delírios modernizantes está em cima de pés de barro. O
> apagão é um upgrade nas periferias, nos "bondes do Tigrão", no mundo funk,
> nos lembrando da escuridão física e mental em que eles vivem, do lado de
> fora de nossas cercas e avenidas iluminadas. O apagão nos fará mais
> pensativos, mais metafísicos, mais conscientes de nossa pequenez no mundo.
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> Não temos terremotos e vulcão, mas temos apagão. Seremos mais poéticos,
> olharemos as noites estreladas e pensaremos: "a solidão dos espaços
> infinitos nos apavora", como disse Pascal ou ainda, se mais líricos,
> recitaremos Victor Hugo: "a hidra-universo torce seu corpo cravejado de
> estrelas..."
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> O apagão nos fará pensar em Deus; não este "deus" das classes médias, da
> missa de domingo, sempre pedindo amor, saúde e dinheiro, nem do "deus" dos
> universais dos 10% para os bispos da TV, mas o Deus-natureza que tem uma
> vida própria, um ritmo seu, o Deus-universo que despreza nosso progresso
> dependente. O apagão nos dará medo de um grande flagelo que poderá nos
fazer
> migrar das grandes cidades, deixando para trás as avenidas paulistas secas
e
> mortas. O apagão nos fará entender a vida dos flagelados do Nordeste, que
> sempre olharam o nosso lindo céu de anil como uma ameaça. O apagão nos
fará
> contemplar o azul sem nuvens, pois aprendemos o que a natureza é quando
não
> obedecida e respeitada.
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> O apagão nos fará mais parcimoniosos, mais respeitosos, mais públicos, e
> acreditaremos menos nos arroubos de auto-suficiência. O apagão vai
> dividir nossas vidas, de novo, em dia e noite. As noites e os dias serão
> nítidos, sem esta orgia de luzes que a modernidade celebra para nos
fascinar
> como diamantes sobre o pano negro de sujeira, que nos fazem esquecer as
> cidades que, de perto, são feias e injustas. Vai diminuir a féerie do
> capitalismo enganador.
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> Vamos dormir melhor com o apagão, talvez amemos mais a verdade dos dias e
> menos a mentira das nites . Acabará a ilusão de clubbers e playboys que
> terão medo dos "manos" em cruzamentos negros e talvez o amor fique mais
> recolhido, mais sussurado, mais trêmulo e desamparado. Talvez o sexo se
> revalorize como prazer calmo e doce, talvez fique menos rebolante e voraz.
> Talvez aumente a população,
> com a diminuição das diversões eletrônicas noturnas.
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> O apagão nos fará mais inseguros na rua mas, talvez, mais amigos nos lares
e
> bares. Estaremos de volta a nossa Idade da Pedra, aos fundos de
> caverna onde nós, macacos, nos protegíamos, mais solidários, com pavor das
> grandes feras.
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> Finalmente, o apagão nos fará mais perplexos, pois descobrimos que o
Brasil
> é mais absurdo que pensavámos, pois nunca entenderemos como, com três
> agências cuidando da energia, o governo foi pego de surpresa por essas
> trevas tão longamente anunciadas. Só nos resta o consolo de saber que, no
> fim, o apagão vai nos trazer alguma luz sobre quem somos.
 
 

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