O rio São Francisco no Paraná
O erro sorridente da aeromoça gentil foi, para mim, símbolo do que acontece com a educação |
RUBEM ALVES
Jornal "Folha de São Paulo", 11/07/1999
O vôo era de São Paulo para Londrina. Já estava quase chegando. Lá embaixo, um rio serpenteava no meio dos
campos. Qual seria? Eu sabia os nomes
dos grandes rios de cor e podia localizá-los num mapa virtual na minha cabeça.
Mas aquele eu não conhecia. Nisso, a
aeromoça passou. Ela fazia aquela viagem quase todo dia, com certeza sabia
o nome. Eu a chamei. Ela veio sorridente. "Que rio é aquele?", perguntei. Sem
perder o sorriso, ela me respondeu:
"Acho que é o rio São Francisco!".
Meu espanto ficou evidente no meu
rosto, embora eu tivesse ficado mudo.
Ela percebeu e, embora estivesse quase
certa do que me dissera, prontificou-se
a procurar confirmação numa autoridade superior. "Vou me certificar com
o comandante", disse. Voltou logo a seguir. "Não é o São Francisco", ela me
reassegurou. "É o Paranapanema."
Era uma aeromoça. Para isso, tinha
de ter alguma escolaridade -não sei se
1º ou 2º grau. Estudara geografia. Vira o
São Francisco nos mapas, rio enorme,
que nasce em Minas, na serra da Canastra. Se fosse, como no poema do Alberto Caeiro, o rio da minha aldeia, tudo
bem que ninguém soubesse o nome.
Nem Caeiro diz esse nome. Rios de que
todo mundo sabe são o Tejo ou o São
Francisco. Este nasce no meio de Minas
e vai para o norte. A gente estava no
norte do Paraná. E a aeromoça pensava
que aquele era o São Francisco.
Posso jurar que ela não colou para
passar de ano. Ela sabia direitinho os
nomes. Sabia também olhar os mapas.
Nas provas, marcou certo o rio São
Francisco. Na escola, tirou dez. Então,
como explicar que ela visse o São Francisco no norte do Paraná? A resposta é
simples: não foi ensinado a ela que o
mapa, coisa que se faz com símbolos
para representar o espaço, só tem sentido se estiver ligado a um espaço que
não é símbolo, feito de montanhas, rios
de verdade, planícies e mares. Saber
um mapa é ver, pelos símbolos, o espaço que ele representa. Pobre aeromoça!
Se o avião caísse, ela pensaria que estava caindo ao lado do rio São Francisco e
invocaria o santo do mesmo nome.
Nietzsche disse que as palavras são
pontes iridescentes que ligam coisas separadas. Símbolo é ponte: tem de me
levar a algum lugar. Quem se contenta
com símbolos é louco. Psicóticos vivem
de símbolos. Até Álvaro de Campos,
poeta, profissional dos símbolos, disse
estar farto deles. "Símbolos! Estou farto
de símbolos... todos me dizem nada."
Símbolos que não são pontes? Passagens que não levam a um destino? Repentinamente, o erro sorridente da aeromoça gentil foi, para mim, símbolo
do que acontece com a educação. As
crianças e os adolescentes aprendem
símbolos (e bem:
com eles passam
no vestibular, essa
monstruosidade
escolar) que não
significam nada.
Não sei explicar
isso, mas os seres
humanos têm a
capacidade de armazenar conhecimentos inúteis,
guardados num "arquivo" sem conexões com a vida. Quantos símbolos
inúteis carrego! Alfred North Whitehead se referia às "idéias inertes", que
carregamos como malas cheias de tijolos. Não servem para nada. Só tornam
pesado o caminhar. Símbolos inúteis
que carrego: as fases da mitose. O seno
e o co-seno que nunca usei nem vou
usar. Causas da Guerra dos Cem Anos.
As pirâmides de Malpighi. A lista é interminável.
Que diferença há entre essas coisas
que "sei" e o rio São Francisco no Paraná da aeromoça? Se, pelo menos, elas
nos dessem prazer! Carrego muitas coisas que não servem para nada, mas são
objetos de deleite: poemas, sonatas,
biografias, informações. São meus
brinquedos. Brinquedo é o nome dos
objetos inúteis que dão prazer.
Mas brincar com tijolos? Só um tolo
montaria uma oficina com todas as ferramentas existentes e se dedicaria a
aprender seu uso sob a alegação de que
talvez algum dia precise delas. Mas é essa, precisamente, a filosofia dos nossos
currículos! O aumento da eficácia do
ensino é o aumento dos tijolos na mala.
O símbolo, para ser bom, tem de ser luz
que ilumina o mundo. O certo seria que
provas e provões fossem feitos não sobre os símbolos ensinados, mas sobre o
mundo não ensinado, para ver se os
símbolos iluminam o mundo.
Olho com desconfiança para os laboratórios que as escolas exibem com orgulho. Eles ensinam, antes que entremos, que ciência é uma coisa que se
produz dentro deles. Isso é mentira.
Mário Turassi, extraordinário matemático, inquirido por arquitetos acerca
das necessidades do departamento que chefiava, respondeu, curto e preciso:
"Para fazer matemática,
três coisas são necessárias:
papel, lápis e cérebro".
Parodio. Para fazer ciência, duas coisas são necessárias: olho e cérebro.
Ciência não é algo que se faz em laboratórios nem o resultado desse fazer. É
um jeito de ver as coisas, que nasce dos
objetos do cotidiano, na casa, na rua, na
oficina. Os olhos produzem o jeito
científico de ver as coisas quando estão
a serviço da inteligência. Por esse jeito
científico, o mundo inteiro ganha sentido, o mapa explica o espaço. A aeromoça aprendeu o mapa. Não aprendeu a
olhar para o espaço por meio do mapa.
Muito saber científico é símbolo que
não sai do laboratório. Como o rio São
Francisco da aeromoça, que não saiu
do mapa. Não ilumina nem o mundo
nem a vida. Conhecimento que não decifra a vida e não ilumina o mundo não
é conhecimento. É enganação. Não importa que tire nota alta no provão.
Rubem Alves, 64, educador, escritor e psicanalista, é
professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual
de Campinas). É autor de "Entre a Ciência e a Sapiência: o Dilema da Educação" (Loyola).