(Fonte na internet:http://www.unicamp.br/~jmarques/cursos/rousseau2001/mdn.htm)
Professor de Filosofia do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal da Paraíba UFPB Campus V
É desse entendimento que partimos para a compreensão daquilo
que Rousseau propôs para a educação da criança,
fazendo uma certa revolução copernicana no tratamento dado
à infância. Preferimos nos referir a uma certa "revolução"
por sabermos das mudanças que já se processavam no trato
com as crianças por parte de pais e professores. É o próprio
Montaigne que nos permite considerar este fato. Paradoxalmente, até
poderíamos dizer, ele apresenta a sua rejeição a uma
forma mais afetiva no tratamento das crianças ainda muito novas,
sendo exemplo destas as recém-nascidas, a quem ele não concebia
que fossem beijadas por estarem "ainda sem forma definida, sem sentimento
nem expressão que as tornem dignas de amor. Por isso mesmo foi com
desagrado que as tive educadas ao meu lado" [p. 180]. Esta última
afirmação expressa muito bem o fato de que já havia
um tratamento mais afetivo dispensado às crianças desde a
sua mais tenra idade. No entanto, conforme podemos entender, compreendia,
por outro lado, a necessidade desta afetividade à proporção
em que fossem as crianças tomando forma definida, ao adquirirem
sentimento e expressão que as fizessem dignas de amor.
É também o mesmo Montaigne que nos chama a atenção
para a necessidade de educarmos a criança logo cedo, para que se
torne possível dar a ela a formação que seja peculiar
a sua natureza. É neste sentido que nos diz o seguinte: "Os filhotes
de ursos e de cães mostram sua tendência natural; os homens,
porém, metendo-se desde logo em hábitos, preconceitos, leis,
mudam
ou se mascaram facilmente". [I, p. 74].
É nesta direção que encontramos Jean-Jacques Rousseau,
compreendendo que se faz necessário pensar seriamente no significado
da infância que começa com o nascimento da criança
que, por sua vez, deve ser também educada a partir daí. Ou
seja: a educação deverá começar a partir do
memento em que a criança vem ao mundo. Assim deve ser por se tratar
da necessidade de formamos o homem, antes que este possa se inserir na
sociedade como cidadão. No Emílio, diz-nos da impossibilidade
de formar ao mesmo tempo o homem e o cidadão. Mas, considerando,
por outro lado, a necessidade de termos homens capazes de assumir sua cidadania,
faz-se necessário também compreender a necessidade de formar
o homem, o que não poderá ser feito concomitantemente à
formação do cidadão, nem muito menos em um momento
posterior. O ser, que desde o seu surgimento no mundo, é designado
como ser humano, não poderá prescindir da sua formação
de homem, carecendo assim da sua educação a partir do seu
nascimento.
A necessidade de compreender o significado dessa formação
do homem, conforme o proposto por Rousseau, exige de nós o lançarmo-nos
sobre o que ele nos diz em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos
da desigualdade entre os homens. Neste, damo-nos conta da condição
natural em que está posto o ser humano, se considerarmos o mesmo
em sua origem. Assim, ao pensarmos na formação do homem,
que tem início com o seu nascimento, pensamos, na verdade, no que
pode ser compreendido como homem natural. É este que terá
de se fazer do seu nascimento até a adolescência, quando passa
a adquirir as qualidades que o permitem inserir-se na coletividade dos
homens, abrindo espaço para a construção da sua cidadania,
conforme podemos ver no Livro Quarto do Emílio.
Voltando-nos, pois, para o significado do que ficou compreendido por
Rousseau como homem natural, temos diante de nós a estátua
de Glauco. Esta, depois de ter sido desfigurada pelo tempo, bem como pelo
mar e todas as intempéries, tornou-se um referencial com que deve
ser confrontado o homem conforme o conhecemos hoje. Para que este homem
possa se ver agora tal como o fez a natureza, faz-se necessário
retornar àquilo que ele foi originalmente, pondo à parte
toda sucessão do tempo e das coisas, separando, a partir daí
tudo pertencente à sua própria essência daquilo que
foi acrescentado do seu estado primitivo pelas circunstâncias e os
seus semelhantes. Assim, temos que considerar o fato de que, no seio da
sociedade que conhecemos, há uma enorme distância entre o
homem
natural e o homem social configurada pela alteração
da alma humana
A partir do momento em que Rousseau considera a necessidade de se pensar
na formação deste homem natural, que conhecemos na infância,
passa a se perguntar pelo que seria do homem se não lhe fosse dada
uma educação conforme à natureza. Esta educação
deixa de existir quando o homem passa a se formar de acordo com as determinações
do meio social em que está inserido. Mas, por que não isolá-lo
deste meio? Se, ao invés de isolarmos o homem de tudo aquilo que
conhecemos da sociedade, deixarmos o mesmo entre os demais, teremos como
conseqüência a sua desconfiguração. Isto nos diz
Rousseau, quando nos chama a atenção para o seguinte:
Mas, se queremos pensar na formação do homem, com vistas
a sua cidadania, é preciso considerar que o mesmo deve ser educado
para ser o homem natural para o qual aponta as determinações
da natureza, ratificando-se assim o que já havia sido proposto por
Montaigne, conforme vimos anteriormente, quando diz da necessidade de educarmos
o homem desde sua primeira infância, para que lhe seja garantida
a preservação de todas as suas inclinações
naturais, que podem ser corroídas pelo meio social, revestido de
hábitos e costumes que imprimem os vícios e os preconceitos
no indivíduo.
Assim, o processo educacional em Rousseau pode ser dividido em dois
momentos distintos. O primeiro destes vai do zero aos quinze anos, quando
o indivíduo atinge a adolescência, e o outro que vai daí
até o momento em que se tem o homem adulto, o que acontecerá,
segundo o entendimento rousseauniano, por volta dos vinte cinco anos de
idade. Mas é da primeira educação que depende a segunda,
de forma que podemos afirmar ser somente possível o exercício
da cidadania plena mediante a preparação do homem para a
sua condição de cidadão, o que não ocorrerá
se, antes, o indivíduo não for devidamente preparado para
se firmar como homem, simplesmente, o que guarda neste simplesmente
a sua condição natural de ser. Deste modo, antes de pensarmos
no desenvolvimento do intelecto, havermos de pensar no desenvolvimento
de todos os aspectos físicos que constituem o indivíduo como
homem, no seu sentido mais natural que se possa imaginar no seio da sociedade
que conhecemos.
Reportar-se a esta sociedade que conhecemos se faz necessário,
tendo em vista o fato de que é para ela que se educam os homens.
Se partimos deste entendimento, podemos compreender que a educação
primeira é imprescindível, o que seria diferente, se, hipoteticamente,
pensamos na possibilidade de uma preparação do homem para
habitar simplesmente na selva, digamos assim, onde somente poderíamos
contar com o meio natural, para o qual se tornou impossível o retorno
do homem com o advento da sociedade, o que muito bem ficou demonstrado
no Segundo Discurso. Considerando, portanto, a importância
desta primeira educação, Rousseau nos diz o seguinte:
A questão que fica posta está voltada para o significado
de um contrato que se faz entre pessoas de diferentes condições
em termos de liberdade. De um lado, temos o adulto, educador, que, em primeiro
momento, é identificado com os pais, e mais precisamente com a mãe.
Por outro lado, temos a criança que, como bem o diz Rousseau, não
é um adulto em miniatura, mas um ser com características
próprias, isto é, um homem ainda em sua infância, momento
em que há uma desproporção entre suas forças
e os seus desejos ou necessidades. Neste sentido, a criança, em
um primeiro momento, se encontra a mercê do adulto que lhe aprece
como educador; mas, por outro lado, ainda não pode ser considerado
um ser livre, uma vez que não se encontra em condições
de fazer as escolhas que lhe são necessárias à satisfação
dos seus desejos; estas condições lhe faltam tanto porque
não dispõe da força necessária para viabilizar
esta satisfação, como também não viveu ainda
o suficiente para conhecer a experiência humana de modo a ser capaz
de discernir com precisão o sim e o não em
suas escolhas. Poderíamos, portanto, falar de inviabilidade de qualquer
contrato entre estas partes, já que entendemos ser o contrato
um acordo afirmado entre pessoas livres, que assim o são devido
às possibilidades de livres escolhas por parte delas. Para que se
torne compreensível a possibilidade deste contrato, conforme o entendimento
de Rousseau, há de considerarmos as condições que,
direta ou indiretamente, ele nos apresenta para a viabilização
do mesmo. Temos assim de voltarmos a questão da mãe,
isto é, ao significado do primeiro educador.
Se refletirmos a respeito do lugar da mãe no processo de formação
do indivíduo, veremos em que nível se dá a relação
entre mãe e filho para que se torne possível uma sadia
formação desse indivíduo. Entendendo por indivíduo
o ser que se faz homem a partir do seu nascimento, voltamo-nos para o modo
pelo qual começa o processo educativo que o leva a uma formação
específica do caráter ou da personalidade com que passa ser
identificada a pessoa. Como uma criança, que ainda não está
experienciando a sua liberdade em toda sua extensão, de modo que
muito bem podemos ter como indivíduo ainda sem liberdade,
por não dispor ainda das suas possibilidades de escolha, pode afirmar
um acordo com um sujeito livre, seja este sua mãe ou simplesmente
um educador, que poderia ser identificado como preceptor, conforme o exemplo
posto por Rousseau em o Emílio?
A formulação desta questão poderia se fazer de
uma forma mais simplificada, se perguntássemos pela possibilidade
da afirmação de um contrato em que somente de um lado se
encontra um ser livre, contradizendo o que é racionalmente permitido.
Para que bem se entenda isso, faz-se necessário considerar uma categoria
que é forte no pensamento de Rousseau: o sentimento. Temos que ver
a racionalidade humana revista pelo sentimento que a antecede. Neste sentido,
é possível compreender que, na afirmação de
um contrato, ao contrário do que parece a primeira vista, não
somente se encontra a racionalidade de ambos os lados; há também
sentimentos.
Se levarmos em consideração o significado dos sentimentos
nas decisões humanas, haveremos de ver que não há
ato humano, por mais frio ou racional que possamos imaginar, sem que, de
uma forma ou de outra, diretamente ou não, seja antecedido pelo
sentimento. De alguma forma, sentimos. É para este sentimento que
teremos que nos voltar para compreendermos que o homem, mesmo em sua mais
tenra infância, já é capaz de sentir.
Quando nos voltamos para esta questão de sentimentos,
que antecede a racionalidade, passamos a ver numa outra perspectiva a afirmação
do contrato pedagógico de Rousseau. Trata-se de um contrato que
terá necessariamente de estar fundado na afetividade entre
as partes, para que o mesmo possa ser viabilizado. O estudo feito por Georges
Snyders e apresentado em seu livro Alunos felizes nos coloca diante
desta questão de afetividade que está subentendida no pensamento
de Rousseau, quando a questão proposta é aquela que diz respeito
à educação, sobretudo àquela que se dá
na infância, e mais precisamente naquela primeiríssima. Snyders
chama muito bem a atenção para o fato de que o processo educativo
não se fará satisfatoriamente se não houver a devida
afetividade entre o aluno e o professor. O mesmo podemos dizer a respeito
do que vemos como contrato pedagógico em Rousseau, que, por sua
vez, antecede aquilo que posteriormente ele apresentou como contrato
social, o que já está anunciado mesmo no Emílio.
E daí vem-nos a lembrança de Antoine de Saint-Exupéry,
em seu O Pequeno Príncipe: para que seja possível
a conquista da amizade de alguém, o que implica na verdade a conquista
da confiança deste alguém em relação a nós,
precisamos antes cativá-lo, como o diz a raposa ao principezinho:
Chamamos a atenção para o significado deste "cativar"
posto no Pequeno Príncipe para enfatizar a habilidade necessária
de um educador para que se torne possível um contrato entre ele
e uma criança. Se ele não a cativa, de forma que possa se
falar da verdadeira afetividade referida por Snyders, não se torna
possível um contrato pedagógico entre um bebê
e sua mãe, por exemplo. Da mesma forma se torna inviável
qualquer tentativa de contrato entre um educando e um educador,
seja ele em sua fase mais infantil ou mesmo na adolescência, se é
que não queremos aqui também nos referir ao homem em sua
fase já adulta. A grande diferença no modo de estabelecer
o contrato está na manifestação do sentimento pela
via da racionalidade, quando o indivíduo já se encontra em
condições de verbalizá-lo, de modo que possa dizer
com todas as palavras alguma coisa que possa se expressar como cláusulas
de um contrato. Assim, pelo viés da afetividade, podemos compreender
como se firma o processo de educação em Rousseau, que começa
no memento do nascimento da criança, indo até a fase adulta,
quando o homem já é capaz de fazer suas escolhas e verbalizar
seus sentimentos através de diferentes argumentos que pode articular
diante do outro que lhe aparece como possível educador.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA E/OU
CITADA
. Ensaios. Tradução por Sérgio Milliet.5.
ed. São Paulo : Nova Cultural, 1991. p. 179-188 Lv. II. (Os Pensadores,
18).
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos
da desigualdade entre os homens. Tradução por Lourdes
Santos Machado. 5. ed. São Paulo : Nova Cultural, 1991. p. 215-320
(Coleção Os pensadores, 6 ).
. Emílio ou da educação. Tradução
por Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1995.
Tradução de: Émile; ou, De léducation.
SAINT-EXUPÉRY, Antoine. O Pequeno Príncipe. Tradução
por Dom Marcos Barbosa. 31. ed. Rio de Janeiro : Agir, 1987.
SNYDERS, Georges. Alunos felizes: reflexão sobe a alegria
na escola a partir de textos literários. Tradução
por Cátia Ainda Pereira da Silva. 2. ed. Rio de Janeiro: 1996. 208
p. Tradução de: Des elèves heureux Reflexion sur
la joie à lécole à partir de quelques textes littéraires. |