Contribuição de Rousseau aos pais e Educadores de hoje

na questão da educação sexual

Rosi Maria de Souza Pocovi (1)

(Fonte: http://virtual.udesc.br/html/Documentos/Artigo%20Rosi.doc)

 

Poderíamos dizer que para compreender a sexualidade é preciso compreender a dualidade corpo-mente, ou seja, conhecer o corpo e também os pensamentos, os medos e preconceitos do ser humano, ou de nós mesmos. Precisamos estar abertos ao diálogo, a informação e às diferenças de cada um.

Sabemos hoje que a questão da educação sexual não pode reduzir-se a informações meramente biológicas, e não basta somente reconhecer que todos nós somos seres sexuados, mas é necessário, também, compreender o ser humano na sua totalidade incluindo sua afetividade e o meio em que vive. É fundamental que cada um reflita sobre a riqueza de suas experiências interiores e exteriores se quiser entender-se como ser humano.

Portanto, como contribuição a essa questão, procurar-se-á enfocar algumas idéias de Rousseau, na sua obra "Emílio ou da Educação" (1762), que, embora produzidas nos inícios da modernidade, contribuem ainda hoje para vários níveis da Educação, entendida como um processo, um movimento constante, na produção individual e social do homem.

Nesta direção, abordam-se aspectos da educação rousseauniana da sexualidade e afetividade com referência especificamente, neste artigo, à sexualidade dos jovens. Pretende-se mostrar que o autor foi além de sua época, pois já colocava a Educação Sexual como um processo "espontâneo" e "normal" de educação, afirmando que se o filho ou educando não aprender com o pai ou educador, aprenderá com outras pessoas; e que se mentirmos para a criança, ou se não ouvirmos os jovens, certamente perderemos a sua confiança e afastaremos os jovens de nós. Portanto, para ele, Educação Sexual não é um processo isolado da vida das crianças bem como da vida de todos os seres humanos, e nem do contexto social em que estão inseridos. Esta educação ocorre também quando não temos consciência de que estamos educando.

Aos que se dedicam à educação dos jovens, Rousseau questiona: Mas por que o jovem escolhe confidentes particulares?

E o próprio autor responde que é:

"Sempre por causa da tirania dos que governam (...) Crede que se o jovem não receia de vossa parte nem sermão nem reprimenda, ele vos dirá sempre tudo, que não ousarão nada lhe confiar que ele deva vos calar, desde que tenham certeza de que nada vos esconderá". (p. 377).

Percebe-se que o jovem procura sempre, para conversar pessoas em quem realmente ele confia, e não pessoas que tenham a intenção de normatizar seu comportamento, de lhe dar conselhos ou até de querer brincar com seus sentimentos. Com referência a isto Rousseau nos diz que sim:

"Os mestres queixam-se de que o ardor dessa idade torna a juventude indisciplinável e bem o vejo: mas não será de sua culpa? Desde que deixam esse ardor invadir os sentidos, ignoram que não se pode mais apontar-lhes outro caminho? (p. 261-262) (...) Se exigirdes dele obediência em troca dos cuidados que lhe prestastes, ele acreditará que o enganastes: dir-se-á que fingindo auxiliá-lo gratuitamente pretendestes infligir-lhe uma dívida e amarrá-lo mediante um contrato a que não consentiu (...)" (p. 263).

Por que exigimos obediência? Quem nos auxilia nesta questão é BERNARDI (1992), com suas idéias sobre educação sexual, colocando que, para a maior parte das pessoas, educar significa amestrar a criança ou o jovem para que se comporte de um modo determinado, ou seja, de acordo com os costumes e padrões estabelecidos e considerados normais pela sociedade.

Em Rousseau surge o complemento de que

"(...) amamos o que nos faz bem; é um sentimento tão natural ! A ingratidão não está no coração do homem, mas o interesse está: há menos favorecidos ingratos do que benfeitores interessados (...) O coração só aceita leis de si mesmo; querendo acorrentá-lo, libertam-no; acorrentamo-lo deixando-o livre. "(p. 263).

Se atribuirmos ao jovem responsabilidades e se confiarmos em que ele mesmo se oriente, teremos nisto uma forma de liberdade responsável.

Pois, para Rousseau

"(... ) até o momento de tratá-lo como homem, que nunca se mencione o que ele vos deve e sim o que ele deve a si mesmo. (...) Ora, nada pesa tanto no coração humano como a voz da amizade, pois bem sabemos que só fala para nosso bem. Podemos acreditar que um amigo se engane, não que nos queira enganar. Por vezes resistimos a seus conselhos mas nunca os desprezamos." (p. 264).

E como se mantém esta confiança?

"(...) a confiança que deve ter no seu governante é de outra espécie: deve assentar na autoridade da razão, na superioridade dos conhecimentos, nas vantagens que o jovem está em condições de compreender e cuja utilidade sente(...) "(p. 280).

Ou seja, a educação é uma operação dialética onde o ser humano é o sujeito e não o objeto: é um processo evolutivo constante de crescimento onde o adulto também está inserido. Segundo Rousseau:

"a existência dos seres acabados é tão pobre, tão limitada, que, quando só vemos o que é, não nos comovemos nunca(...)" (p. 164).

Por que adquirimos o hábito de querer que todo ser em crescimento pense como nós e que não avance dentro de suas potencialidades, que siga seu próprio caminho? Rousseau nos fala:

"(...) Ora, se o mestre se deixasse enganar como o discípulo, perderia o direito de exigir sua deferência e de dar-lhe lições. E menos ainda deve o aluno supor que o mestre o deixa propositadamente cair em armadilhas oferecidas a sua simplicidade. Que é preciso fazer então para evitar estes dois inconvenientes ao mesmo tempo? O que há de melhor e de mais natural: ser simples e verdadeiro como ele, adverti-lo dos perigos a que se expõe, mostrá-los claramente, sem exibição de pedantismos, sem principalmente, dar conselhos como ordens, até que assim se tenha tornado e o tom imperativo necessário (...) E não digais mais nada; deixai-o em liberdade, acompanhai-o, imitai-o, tudo alegremente, francamente, diverti-vos tanto quanto ele, se possível (...) Todos os seus erros são laços que vos fornece para tê-lo em mãos se necessário (...)" (p. 280-281).

Nossa prática é quase sempre punitiva. Quase que inconscientemente temos um compromisso firmado com a moral e a ética vigente, e principalmente com a opressão. Estas normas opressivas apresentadas pela sociedade hoje são quase sempre embasadas na temática da ética sexual ocidental ou sexo-moral. Com referência a esta postura moralista e quanto a reclamações feitas por pais/educadores que alegam não compreender por que seus filhos/educandos são tão rebeldes, não os procurando para o diálogo, Rousseau nos leva a refletir::

"Adverti-o de seus erros antes que neles caia: em caindo, não o censureis; só serviria para inflamar e revoltar seu amor-próprio. Uma lição que revolta não é proveitosa. Nada sei de nada mais inepto do que esta frase : bem que eu disse. O melhor meio de fazer com que se lembre do que lhe foi dito é parecer esquecê-lo. Ao contrário, quando vereis envergonhado por não ter acreditado em vós, apagai docemente essa humilhação com boas palavras. Ele se afeiçoará seguramente a vós, vendo que vos esqueceis por ele e que ao invés de acabar de esmagá-lo vós o consolais. Mas se à sua tristeza acrescentais censuras, ele vos odiará e fará questão de não mais ouvir, como que para vos provar que não pensa como vós acerca de vossos conselhos. (p. 281). (...) Não há conhecimento moral que não se possa adquirir pela experiência de outrem ou da própria (...)" (p. 282).

Faz-se necessário estar aberto ao diálogo e principalmente, buscar compreender o ser humano, pois, como afirma o autor:

"(...) é preciso aprender a ver nas ações humanas os primeiros traços do coração do homem, antes de querer fazer sondagens em profundidade; é preciso saber ler muito bem nos fatos antes de ler nas máximas (...) A juventude não deve nada generalizar: toda a sua instrução deve obedecer as regras particulares (p. 270). (...) O talento de instruir está em fazer com que o discípulo se compraza na instrução (...) É preciso fazer-se entender sempre, mas não dizer tudo sempre: quem diz tudo, diz pouca coisa, pois ao fim não o ouvem mais (...) (p. 282). ?(...)Tratai de ensinar às crianças tudo o que é útil a sua idade e vereis que todo seu tempo estará mas do que cheio(...)" (p. 190-191).

Rousseau, que em todo momento se apresenta contrário à educação dogmática e castradora, questiona a postura do educador frente aos dogmas transmitidos ao educando:

"Não posso impedir-me de apontar aqui a falsa dignidade dos governantes que, a fim de parecerem totalmente sábios, rebaixam seus alunos, insistem em tratá-los sempre como crianças e buscam distinguir-se sempre deles em tudo o que os obrigam a fazer. Longe de diminuir assim suas jovens coragens, nada poupeis para elevar-lhes a alma; fazei deles vossos iguais, a fim de que se tornem iguais; e se eles não puderem ainda erguer-se até vós, descei a eles sem vergonha, sem escrúpulo (...) Não é que o aluno deva supor em seu mestre conhecimentos tão limitados quanto seus próprios, nem a mesma facilidade em se deixar seduzir. Esta opinião é boa para uma criança que, não sabendo ver nada, nada comparar, põe todo mundo a seu alcance e só confia nos que sabem assim se colocar (...)" (p. 279-280).

É preciso ter prazer em educar, e o autor reforça isto dizendo que

"Não me canso de repeti-lo: ponde todas as lições aos jovens em ações e não em discursos; que nada aprendam nos livros do que a experiência lhes pode ensinar(...)" (p. 287).

O que se pode perceber é que na época de Rousseau a aprendizagem era mais positiva na prática do que na compreensão de doutrina e dogmas repassados aos educandos.

O educador hoje preocupa-se muitas vezes, e até em demasia, em repassar aos educandos conteúdos específicos e fragmentados e principalmente em cobrá-los, pois conteúdo decorado é tarefa cumprida. O que realmente seria essencial para a vida, necessário para que o ser humano fosse um cidadão sem fronteiras, capaz de adaptar-se a qualquer cultura respeitando o outro, está cada dia mais esquecido. Rousseau chama atenção para esta questão dizendo:

"(...) ensinai a vosso aluno a amar todos os homens, inclusive os que os desdenham; fazei com que ele não se coloque em nenhuma classe, mas que se encontre em todas; falai diante dele, e com ternura, do gênero humano, com piedade até, mas nunca com desprezo. Homem, não desonres o homem (...)" (p. 253).

O autor acrescenta ainda que devemos tornar

"(...) os progressos lentos e seguros; impedi que o adolescente se faça homem no momento em que nada lhe resta por fazer, a fim de o ser (...)" (p. 261).

Alerta também para que o adulto relembre sua infância e sua adolescência. Será que o comportamento dele era diferente? Reflitamos sobre isso lendo este trecho belíssimo do autor:

"Homens, sejais humanos, é vosso primeiro dever; e o sejais em relação a todas as situações sociais, a todas as idades, a tudo o que não seja estranho ao homem. Que sabedoria haverá para vós fora da humanidade? Amai a infância; favorecei seus jogos, seus prazeres, seu amável instinto. Quem de vós não se sentiu saudoso, às vezes, dessa idade em que o riso está presente nos lábios e a alma sempre em paz? Por que arrancar desses pequenos inocentes o gozo de que não podem abusar? Por que encher de amarguras e de dores esses primeiros anos tão rápidos, que não voltarão nem para vós nem para eles? Pais, sabeis a que momento a morte espera vosso abusar? Por que encher de amarguras e de dores esses pritantes que a natureza lhes dá; desde o momento em que possam sentir o prazer de serem, fazei com que dele gozem; fazei com que, a qualquer hora que Deus as chame, não morram sem ter gozado a vida." (p.61).

 

Outro ponto marcante e bastante contemporâneo, destacado por Rousseau, alerta para a necessidade de se buscar sempre a liberdade:

"(...) a faculdade distintiva do ser ativo ou inteligente está em poder dar um sentido à palavra ser (...)" (p. 310)

Podemos então concluir que o sentido de liberdade, para o autor é muito mais profundo do que se possa imaginar, ou de algumas leituras que dele se fazem. E um dos seus princípios é a permanência do ser humano no seu estado "natural" de pensar e agir, ou seja, agir e pensar por si próprio, e não pelas idéias alheias.

Vejamos o que ele diz ainda sobre esse aspecto:

"(...) Para ser alguma coisa, para ser si mesmo e sempre um, é preciso agir como se fala; é preciso estar sempre decidido acerca do partido a tomar, tomá-lo com altivez e segui-lo sempre (...)" (p. 13)

No que se refere à sexualidade, liberdade não significa um simples discurso ou práticas de "liberação", que foram sempre mal interpretadas e muito utilizadas atualmente, elas dão uma ilusão de liberdade e de descompressão como: banheiro sem porta, não usar calcinha, transar mecanicamente, usar palavrões, trocar de parceiros, entre tantas outras formas de extravasar o sentimento de repressão.

A "falsa descompressão" a que Rousseau se refere, é a mesma denunciada por Nunes, Foucault, Bernardi e outros tantos sérios pensadores, que nos alertam sobre a real necessidade de uma apropriação da liberdade de pensamento; da reflexão lúcida, coerente, sem manipulação prevalecendo sobre o interesse ideológico ou comercial, que nos manipula, e impede o ser humano de decidir seu próprio destino.

Juntamo-nos a Rousseau para fazermos um "apelo" a todos os educadores e pais: que ousem se esclarecer e se humanizar, pois para resgatar o pensamento humanista de Rousseau, o qual consideramos extremamente importante, ainda hoje, para a construção de uma nova sociedade e de um novo ser humano, é preciso romper com a ordem estabelecida. E colocamos os educadores e os pais como uma das "molas mestras" para estas transformações.

Rousseau também aponta que a educação sexual do adolescente deve iniciar já na infância, pois a adolescência é o resultado desta educação. Encontramos ainda a confirmação de que, praticamente, todos os nossos problemas são causados por nós mesmos seres humanos em nossas relações sociais. O que nos leva a refletir sobre a premissa de que, se desejarmos uma educação sexual emancipatória, devemos rever nossos próprios valores, a maneira como fomos educados e como educamos atualmente, pois educar para a liberdade e, consequentemente, para uma educação sexual crítica, consciente e humanizada, implica em rever o sentido e a importância que damos a estas palavras e a estas práticas.

Esses são compromissos que todo educador sério e comprometido com a temática educação sexual pode e deve buscar também em Rousseau, pois em suas obras podemos encontrar suporte para temas relacionados com a educação sexual e muitos outros, o que faz com que este autor tenha, realmente, no passado, escrito para o futuro.

Ele nos ajuda a compreender que educação sexual não é mera reprodução do que está posto na sociedade, e sim reconstrução de um saber amplo e universal, sem distinção de qualquer ordem. E esta reconstrução deve começar dentro de cada um.

Referências bibliográficas

BERNARDI, Marcello. A Deseducação sexual. São Paulo: Summus, 1985.

ROUSSEAU, Jean-Jaques. Emílio ou da Educação Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1992.

 

(1)POCOVI, Rosi Maria de S. Os discursos atuais sobre sexualidade humana frente aos pressupostos e paradigmas do naturalismo de Rousseau: Um estudo bibliográfico analítico. Monografia apresentada ao Centro de Ciências da Educação da UDESC para obtenção do título de "Especialista" em Educação Sexual, 1995.