Rousseau: Estado de natureza e contrato social

(Do livro Filosofando. Maria Lúcia de Arruda Aranha, M. Helena Pires, Ed. Moderna, 1993, p. 224-226)

O estado de natureza - Assim como seus antecessores Hobbes e Locke, Rousseau procura resolver a questão da legitimidade do poder fundado no contato social. No entanto, sua posição é, num aspecto, inovadora, na medida em que distingue os conceitos de soberano e governo, atribuindo ao povo a soberania inalienável.

No discurso sobre a origem da desigualdade Rousseau cria a hipótese dos homens em estado de natureza, vivendo sadios, bons e felizes enquanto cuidam de sua própria sobrevivência, até o momento em que é criada a propriedade e uns passam a trabalhar para outros, gerando escravidão e miséria.

Rousseau parece demonstrar extrema nostalgia do estado feliz em que vive o bom selvagem, quando é introduzida a desigualdade entre os homens, a diferenciação entre o rico e o pobre, o poderoso e o fraco, o senhor e o escravo e a predominância da lei do mais forte. O homem que surge da desigualdade é corrompido pelo poder e esmagado pela violência.

Trata-se de um falso contrato, esse que coloca os homens sob grilhões. Há que se considerar a possibilidade de outro contato verdadeiro e legítimo, pelo qual o povo esteja reunido sob uma só vontade.

O contrato social - O contrato social, para ser legítimo, deve se originar do consentimento necessariamente unânime. Cada associado se aliena totalmente, ou seja, abdica sem reserva de todos os seus direitos em favor da comunidade. Mas, como todos abdicam igualmente, na verdade cada um nada perde, pois

"este ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo composto de tantos membros quantos são os votos das assembléia e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade". (J. - J. Rousseau, Do contrato social, Col. Os pensadores, p.39)

Em outras palavras, pelo pacto o homem abdica de sua liberdade, mas sendo ele próprio parte integrante e ativa do todo social, ao obedecer à lei, obedece a si mesmo e, portanto, é livre: "A obediência à lei que se estatuiu a si mesma é liberdade". Isso significa que, para Rousseau, o contrato não faz o povo perder a soberania, pois não é criado um Estado separado dele mesmo.

Como isto é possível?

Soberano e governo - Mesmo quando cada associado se aliena totalmente em favor da comunidade, nada perde de fato, pois, enquanto povo incorporado, mantém a soberania. Ou seja, soberano é, para Rousseau, o corpo coletivo que expressa, através da lei, a vontade geral. A soberania do povo, manifesta pelo legislativo, é inalienável, ou seja, não pode ser representada. A democracia rousseauísta considera que toda lei não-ratificada pelo povo em pessoa é nula.

Por isso, o ato pelo qual o governo é instituído pelo povo não submete este àquele. Ao contrário, não há um "superior", já que os depositários do poder não são senhores do povo, mas seus oficiais, podendo ser eleitos ou destituídos conforme a conveniência.

Os magistrados que constituem o governo estão subordinados ao poder de decisão do soberano e apenas executam as leis, devendo haver inclusive boa rotatividade na ocupação dos cargos.

Rousseau preconiza, portanto, a democracia direta ou participativa, mantida por meio de assembléias freqüentes de todos os cidadãos.

Enquanto soberano, o povo é ativo e considerado cidadão. Mas há também uma soberania passiva, assumida pelo povo enquanto súdito. Então, o mesmo homem, enquanto faz a lei, é um cidadão e, enquanto ela obedece e se submete, é um súdito.

Além de inalienável, a soberania é também indivisível, pois não se pode tomar os poderes separadamente.

A vontade geral - O soberano, sendo o povo incorporado, dita a vontade geral, cuja expressão é a lei. O que vem a ser a vontade geral? É preciso antes fazer distinção entre pessoa pública (cidadão ou súdito ) e pessoa privada.

A pessoa privada tem uma vontade individual que geralmente visa o interesse egoísta e a gestão dos bens particulares. Se somarmos as decisões baseadas nos benefícios individuais, teremos a vontade de todos.

Mas cada homem particular também pertence a um espaço público, é parte de um corpo coletivo com interesses comuns, expressos pela vontade geral. Nem sempre o interesse de um coincide com o de outro, pois muitas vezes o que beneficia a pessoa privada pode ser prejudicial ao coletivo. Por isso, também não se pode confundir a vontade de todos com a vontade geral, pois a somatória dos interesse privados pode ter outra natureza que o interesse comum.

Explicando melhor:

"O interesse comum não é o interesse de todos, no sentido de uma confluência dos interesses particulares, mas o interesse de todos e de cada um enquanto componentes do corpo coletivo e exclusivamente nesta qualidade. Daí o perigo de predominar o interesse da maioria, pois se é sempre possível conseguir-se a concordância dos interesses privados de um grande número, nem por isso assim se estará atendendo ao interesse comum" (Nota de rodapé de Gomes Machado, in J. -J. Rousseau, Do contrato social, col. Os pensadores, p. 49)

Encontra-se aí o cerne do pensamento de Rousseau, aquilo que o faz reconhecer no homem um ser superior capaz de autonomia e liberdade, entendida esta como a superação de toda arbitrariedade, pois é a submissão a uma lei que o homem ergue acima de si mesmo. O homem é livre na medida em que dá o livre consentimento à lei. E consente por considerá-la válida e necessária.

"Aquele que recusar obedecer á vontade geral a tanto será constrangido por todo um corpo, o que não significa senão que o forçarão a ser livre, pois é essa a condição que, entregando cada cidadão à pátria, o garante contra qualquer dependência pessoal" (Do contrato Social, p. 42, Col. Os Pensadores)

Rousseau pedagogo - Assim como imagina um homem em estado de natureza - pura hipótese de um ser primitivo que nunca existiu historicamente -, Rousseau também cria, ao elaborar o esboço de uma pedagogia, a figura de Emílio, modelo que o ajuda a procurar aquilo que o homem é antes de ser homem. Tudo se passa nesse romance como se o homem natural fosse o ideal que se submete à regra da educação.

Para não correr o risco de ser contaminado por preconceitos, Emílio é educado por um preceptor à margem do contato pernicioso da sociedade, seguindo a ordem da própria natureza, não a natureza do selvagem, mas a verdadeira natureza que responde à vocação humana.

A educação começa pelo desenvolvimento das sensações, dos sentimentos, pois, antes da "idade da razão" (15 anos), existe uma "razão sensitiva". É preciso não abafar os instintos, os sentidos, as emoções, os sentimentos que são anteriores ao próprio pensamento elaborado. A espontaneidade é valorizada e não há castigos, pois a experiência é a melhor conselheira. Por isso Rousseau não dá valor ao conhecimento livresco transmitido, pois quer que a criança aprenda a pensar por si própria.

É assim que imagina Emílio chegando por si só às noções e bem e mal e às concepções morais e religiosas, já que tratar de religião antes do desenvolvimento suficiente da razão é correr o risco de idolatria.

Costuma-se dizer que Rousseau provoca uma "revolução copernicana" na educação: tal como Copérnico, que ao propor a teoria heliocêntrica inverteu o centro do sistema astronômico, a concepção pedagógica rousseauísta não é magistrocêntrica, pois não é o mestre que se encontra no centro do processo educativo; esse lugar é reservado à criança.

Para ele, não se educa a criança nem para Deus, nem para a vida em sociedade, mas sim para si mesma: "Viver é o que eu desejo ensinar-lhe. Quando sair das minhas mãos, ele não será magistrado, soldado ou sacerdote, ele será, antes de tudo, um homem".

Rousseau revolucionário? - A concepção política de Rousseau, como todo pensamento liberal, é tramada contra o absolutismo, mas ultrapassa o elitismo de Locke e propõe uma visão mais democrática de poder. Sem dúvida, empolgou políticos como Robespierre e até leitores como o jovem Marx.

Os aspectos avançados do pensamento de Rousseau estão no fato de denunciar a violência daqueles que abusam do poder conferido pela propriedade, bem como por ter desenvolvido uma concepção mais democrática de poder, baseada na soberania popular e no conceito-chave de vontade geral.

Com isso, Rousseau representa já no seu tempo a crítica ao modelo elitista do liberalismo e antecipa sob alguns aspectos as propostas de solução para as questões sociais que irão surgir no século XIX.

Mesmo assim, Rousseau ainda é filho do seu tempo porque, ao partir da tese contratualista, de certa forma mantém a perspectiva individualista do pensamento burguês; ao denunciar a violência como resultado da natureza humana corrompida, mantém ainda a perspectiva de uma análise moral (e portanto pessoal) de um fenômeno que os teóricos socialistas e ele posteriores perceberão como resultante dos antagonismos sociais.

Conclusão - É bom lembrar que, mesmo para o próprio Rousseau, o projeto da democracia direta só seria possível em uma sociedade de reduzidas proporções. No entanto, isso não significa que suas idéias são desprezíveis e utópicas, porque sempre é possível combinar os mecanismos da democracia representativa com alguns recursos da democracia direta.

A professora Maria Victoria de Mesquita Benevides, ao defender a implantação da democracia semidireta, argumenta que "a maior parte das questões envolvidas na polêmica democracia representativa versus democracia direta é malposta, justamente porque traz implícita a alternativa radical - ou uma ou outra - e não considera a possibilidade do sistema misto" (M. V. De M. Benevides, A cidadania ativa, S. Paulo, Ed. Ática, 1991, p. 44)

No sistema misto da democracia semidireta, os mecanismos típicos de democracia direta atuariam como corretivos das distorções da representação política tradicional. Tais mecanismos são os conselhos populares, assembléias, experiências de autogestão e, na esfera do legislativo, o plebiscito, o referendo e o projeto de iniciativa popular.

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Observação do prof. Laerte: Acrescente-se a estes mecanismos a experiência de Orçamento Participativo em prefeituras como Porto Alegre. Na cidade de São Paulo esta experiência está no seu início.