A compaixão no poder médico-assistencial

Sandra N. C. Caponi

Professora do Departamento de Saúde Pública - Universidade Federal de Santa Catarina

(Fonte na Internet: http://www.fflch.usp.br/df/gen/cn4_caponi_p.htm)

- Cadernos Nietzsche 4 (1997) -

Interessa-nos problematizar a lógica interna da compaixão piedosa, pois ela instaura uma modalidade peculiar de exercício do poder que se estrutura a partir do binômio servir- obedecer, multiplicando assim a existência de relações dissimétricas, entre quem assiste e quem é assistido. Se acreditamos que é necessário excluir do discurso médico a caridade cristã e a piedade religiosa, aquela que costumava situar o doente no lugar da debilidade mais absoluta e da mais extrema impotência, então será mister que possam ser desenvolvidas estratégias capazes de fazer que a palavra dos doentes possa formar parte de uma rede dialógica, que permita instituir um genuíno consenso, onde hoje existe aceitação passiva.

Mas, para que este objetivo seja atingido, acreditamos que é preciso analisar a estrutura e o modo de funcionamento dessa compaixão piedosa.


As estratégias de poder que no dia-a-dia percorrem o âmbito dos saberes médico-assistenciais situam-nos perante conflitos urgentes que, longe de emergir sob circunstâncias excepcionais e limites, definem a maior parte de nosso cotidiano. E, se isto é possível, é porque as tecnologias médicas apontam para essa dimensão do humano que mais nos aproxima de uma coisa manipulável: nosso corpo. Para que este controle possa ser aceito, para que essa manipulação possa ser entendida e até exigida, é mister apresentá-la sob a forma, dificilmente objetável, de uma compaixão piedosa para com as pessoas que estão, atual ou virtualmente, em posição de inferioridade pela sua condição de doentes. Acreditamos que é mister problematizar o fato de que, quase invariavelmente, a assistência compulsiva encontra sua justificativa e se faz aceitável, por referência a um sentimento de piedade pelos necessitados e pelos sofredores.

É mister sublinhar que não pretendemos aqui descobrir, finalmente, este véu que tem a forma da piedade, para poder mostrar assim, em toda sua crueldade, a verdade nua da coerção e da hipocrisia. Não pretendermos desmascarar, finalmente, uma ideologia por trás da qual o controle social gosta de se apresentar. Muito pelo contrário, nosso interesse aqui é poder tematizar a própria compaixão piedosa como uma estratégia de poder que, originariamente, e pela sua própria lógica, reproduz e afirma um tipo de racionalidade fundada em distinções subordinantes, que excluem e anulam a existência de vínculos legítimos entre iguais.

Empreender uma crítica da ética da caridade e da compaixão exige que nos lembremos de Nietzsche, pois é mérito seu ter sabido iniciar, com lucidez e firmeza, um estudo demolidor destas estratégias de poder que, no preciso momento em que nos prometem auxílio e assistência, multiplicam os mecanismos de coerção, docilização e submissão.

As perguntas que Nietzsche faz a respeito da caridade e da compaixão podem ser resumidas nestas duas: "É conveniente ser antes de mais nada homens compassivos?"; "É conveniente para os que padecem que deles vos compadeçais?". A resposta a esta questão será, por sua vez, determinante:

"Nossos benfeitores diminuem nosso valor e nossa vontade, ainda mais que nossos próprios inimigos"(FW/GC §338).


O que acontece é que eles estão impossibilitados, a partir do início, de interpretar corretamente em toda sua complexidade a dor de quem padece, e é ali que radica uma característica que define o compassivo: "pois o próprio do sentimento de compaixão é despojar à dor alheia do que ela tem de pessoal", de individual, de único e irrepetível. Quando o sentimento de piedade pretende superar este limite, ele se faz intolerável e é por isso que "na maior parte dos benefícios aos necessitados existe algo que indigna, pela indiferença intelectual com que o compassivo julga o destino, sem saber nada das conseqüências e complicações interiores que para mim e para você se chamam infortúnio" (FW/GC § 338).

A pessoa compassiva tem o impulso de socorrer, quanto antes melhor, mas o que não existe é o tempo para medir se as conseqüências deste socorro imediato são ou não desejadas por aquele que padece um infortúnio.

Para Nietzsche, a figura do homem piedoso é a de alguém que não pode tolerar uma mínima margem de dor, que não pode desfrutar ou aprender de sua solidão, é alguém que "quer socorrer e não pensa que o infortúnio pode ser uma necessidade pessoal e que você e eu podemos necessitar tanto do terror, das privações, da pobreza, das aventuras, dos perigos, dos desenganos quanto dos bens contrários" (idem).

Enfim, trata-se de alguém cuja única religião não é a caridade, pois ele professa também a "religião do bem-estar", ficando assim impossibilitado de entender aqueles para os quais o bem-estar, seja ele imediato ou possível, longe de representar um valor, representa uma ameaça, algo assim como a calma que precede a nada.

É por isso que quotidianamente podemos assistir a imorais mas piedosas atitudes que respondendo à força da compaixão e à procura do bem-estar, reproduzem a mais ilegítima ainda que legalizada coerção: aquela que pessoas caridosas exercem sobre os infortunados. Nietzsche se defronta com esses mecanismos obscuros e cotidianos, através dos quais a piedade e a compaixão se revelam como uma perigosa e temível tecnologia de poder que, no entanto, insiste em aparecer com a máscara de um desapaixonado e necessário "humanismo".

É provável que, quotidianamente, descubramos a existência desses espetáculos de coerção e submissão, mas a força da freqüência nada nos diz a respeito dos motivos que levam esses homens e mulheres comuns e benfeitores a compartilhar a crença de que, por trás dessas inclinações caridosas, eles realizam atos morais e que é através dessas realizações que eles podem converter-se e afirmar-se como pessoas virtuosas. É preciso descartar a existência de um maquiavelismo consciente que prefere se apresentar como compassivo para poder exercer assim, mais livremente, o domínio e o poder.

Quiçá os motivos sejam mais simples, e é outra vez em Nietzsche que devemos procurar alguma resposta à pergunta pela conveniência em ser homens compassivos.

Veremos então que as conveniências são múltiplas: "O contratempo sofrido por outra pessoa nos ofende, nos faz sentir nossa impotência e talvez nossa covardia, se não acudirmos em seu auxílio. (...) Ou na dor alheia vemos algum perigo que também nos ameaça, ainda que sejam somente sinais da insegurança e da fragilidade humanas, os infortúnios alheios podem produzir em nós penosos efeitos. Rejeitamos esse gênero de ameaça e de dor e lhe respondemos por meio de um ato de compaixão, no qual pode existir uma sutil defesa de nós mesmos e até algum resquício de vingança" (M/A § 133). Em todos esses e outros fenômenos que se resumem na palavra "caridade", o que se evidencia é que, na realidade, "pensamos muito mais em nós mesmos que nos outros". O que fazemos no momento de realizar um ato de caridade é libertar-nos de um sentimento de dor que é absolutamente nosso, a dor que inspira o espetáculo da miséria, e ficamos assim livres de um padecimento ou de um medo que é individual e pessoal.

O problema aparece quando elevamos essa compaixão - que sabemos inútil e ineficiente, que reconhecemos como um pobre instrumento para suprir qualquer necessidade - ao nível de uma categoria moral ou social: quando acreditamos que a mesma é capaz e eficiente a ponto de nos construir como agentes "morais", ou quando pretendemos fundamentar nela uma ordem social mais justa.

O que está em jogo ali é a lógica interna da moral da compaixão. Uma lógica que, como já foi dito, pode e deve ser analisada como sendo a racionalidade própria de uma estratégia de poder. Como afirma Nietzsche, "ao realizar atos de caridade o que fazemos é libertar-nos de um padecimento que é nosso. No entanto, não agimos nessa direção impulsionados por um único motivo, e ainda quando seja verdade que queremos nos libertar de uma dor, também é verdade que agimos impulsionados pelo júbilo provocado pelo espetáculo de uma situação oposta à nossa, pela idéia de poder socorrer àquele infortunado se assim o desejarmos, pela esperança da gratidão que haveremos de obter pela atividade do socorro" (M/A § 133).

Ainda que nos horrorizemos perante a idéia desse júbilo, não é outra coisa que se evidencia na enunciação de algumas frases tais como: "deves sacrificar-te com entusiasmo", "deves imolar-te a ti mesmo". A moral da compaixão, que apregoa a entrega e a mortificação, detesta reconhecer que por trás de um ato de piedade e na própria entrega de si (quanto maior o sacrifício, maior a dívida gerada), o que se afirma é a existência de uma dívida que haverá de ser paga com eterna gratidão e com humildade.

Por isso, sentimos o pior ressentimento quando alguém se nega a aceitar nosso sacrifício. "O homem caridoso satisfaz uma necessidade de sua alma fazendo o bem. Quanto maior for essa necessidade menos se posiciona no lugar daquele que socorre e que lhe serve para satisfazer essa necessidade, e até reage duro e ofensivo em certos casos" (M/A § 134).

Limitamo-nos aqui à tentativa de responder à primeira das duas perguntas formuladas por Nietzsche, aquela que se refere especificamente à conveniência em sermos homens compassivos.

Para resumir, digamos que essa conveniência pode ser analisada como uma dívida que se impõe à pessoa auxiliada e, na medida em que se trata de uma dívida contraída por alguém, cuja condição é de precariedade extrema, esta retribuição esperada não haverá de ser outra que um estado de gratidão permanente.

Porém, e ao mesmo tempo, o que ali está em jogo é uma perigosa tranqüilidade de consciência, que impossibilita a análise das conseqüências de nossas ações caridosas: "Em si própria a compaixão não tem de benfeitora mais do que qualquer outro instinto. Só quando a exigimos e a elogiamos - e isto acontece quando não se compreende o prejuízo que produz, quando é olhada como fonte de prazer - é que ela vem acompanhada da tranqüilidade de consciência e então nos entregamos a ela sem temer suas conseqüências" (M/A § 134). Fica ainda por delimitar em que consiste a conveniência de ser objeto de compaixão para aqueles que padecem.

Se quisermos aventurar alguma resposta a essa questão, não poderemos prescindir de uma problematização da distinção existente entre aquele que se compadece e aquele que é compadecido.

Em outras palavras: entre aquele que se afirma, em seu gesto de entrega, como um benfeitor e aquele que, por receber assistência (ainda que esta não seja solicitada), se diz beneficiado. Esta distinção parece estar fundamentada em uma dissimetria que, na perspectiva de Nietzsche, é insuperável. Para ele, "compadecer eqüivale a depreciar". Por isso, "entre os selvagens, o homem pensa com terror em quais poderão ser as causas que o levariam a ser compadecido, pois isso seria considerado como prova de que ele carece de qualquer virtude" (M/A § 134).

A partir do momento em que alguém pode manifestar piedade por outra pessoa, a caracteriza como sujeita a uma debilidade, como alguém que só pode superar suas limitações pelo socorro que a pessoa compassiva pode oferecer. Então, com um mesmo gesto se estabelece uma divisão binária entre aquele que se engrandece ao realizar a ação e aquele que se diminui ao recebê-la. Como já dissemos, conceder à compaixão, à caridade ou à piedade um valor moral pode levar a crer, erradamente, que ao socorrer aos outros nos engrandecemos como agentes morais, e que, deste modo, podemos converter-nos em sujeitos moralmente inobjetáveis. Mas, é justamente esta ilusão, baseada no suposto engrandecimento "moral" de si, que nos impede de pensar que, talvez, nosso gesto de compaixão não seja desejado; que, quiçá, ele possa ter conseqüências negativas para o "beneficiário"; ou que, simplesmente, possa gerar e promover estados de dependência e de submissão.

Nesse jogo perverso o infortúnio do semelhante corre o risco de converter-se em "edificante" para os seres compassivos. Então, pode tornar-se viável esse irônico e implacável aforismo nietzschiano: "quando um homem é infortunado, acodem as pessoas piedosas e lamentam seu infortúnio. Quando elas saem, no fim satisfeitas e edificadas, ficaram fartas do espanto do infortunado, como se fosse seu próprio espanto, e passaram uma boa tarde" (M/A § 224).

Podemos, então, formular algumas perguntas: será que sempre e fatalmente depreciamos o beneficiário de nossa piedade? Não existe um sentimento legítimo através do qual me reconheço como igual ao outro, no momento em que me compadeço de seu sofrimento?

Aparentemente não é possível responder afirmativamente a nenhuma dessas questões se tomarmos como ponto de partida o aforismo nietzschiano antes citado. Porém, haverá de ser o próprio Nietzsche quem fornecerá um suporte para refletir sobre um modo legítimo de piedade.

Este pode ser um sentimento capaz de gerar vínculos positivos e moralmente legítimos, só em certos casos singulares: ali onde exista proximidade e identificação com essa pessoa que consideramos como infortunada.

Então, quando um amigo admirado ou um inimigo respeitado viverem uma situação de infelicidade ou se vejam forçados a padecer algum tipo de sofrimento, é que minha compaixão pode ser definida como legítima, pois ali é minha própria desgraça que sofro.

Isso poderá acontecer cada vez que, por causa de um infortúnio, deva enfrentar a privação desse afeto e dessa amizade que me alegra e gratifica.

Mas também pode existir um modo legítimo de piedade quando vejo "padecer um inimigo a quem considero um igual em orgulho e a quem o tormento não derrota, e em geral quando vemos padecer a um ser que não quer pedir compaixão, que é a humilhação mais vergonhosa e mais baixa" (FW/GC § 324).

Ali parece que nos enfrentamos com um sentimento próximo da admiração, mas que, no entanto, não pode ser inteiramente separado de uma forma de piedade que é menos "compassiva" do que "apaixonada".


O que diferencia este sentimento legítimo da piedade compassiva é que não existe nada ali que possa ser associado ao desprezo; muito pelo contrário, ele se funda em um sentimento que é próximo da admiração. Esse infortúnio não nos enaltece nem nos faz mais humanos ou mais virtuosos, simplesmente nos iguala com aquele que padece. A compaixão assim como pode gerar atos virtuosos também pode representar uma debilidade moral. E é assim como os estóicos a vêem; para eles não existe distinção entre a piedade e a inveja: "Pois o homem que se compadece de outro, também pode ficar aflito pela prosperidade dos outros" (Szasz 10, p.25).

Mas, a piedade é sempre uma debilidade "para aquele que, num sentido ou em outro, quer servir de médico à humanidade. Ele tem que tomar precauções contra esse sentimento que o paralisa nos momentos decisivos, que ata sua consciência e sua mão hábil" (M/A § 134).

Trata-se de um sentimento que não é, em si próprio, nem bom nem ruim. Mas, no momento em que ele é exigido e exaltado como um valor moral, na medida em que fazemos desse sentimento uma regra de comportamento capaz de definir por si própria um parâmetro do que é moralmente desejável para um grupo humano, corremos o risco de legitimar certas estratégias de coerção que se exercem em nome e pelo bem dos considerados beneficiários.

A Piedade como Virtude

Alguma coisa parece unificar a todos e a cada um dos benfeitores: "Os bons sentimentos", a compaixão pelos doentes. Ou como diria Rousseau "uma repugnância inata em ver o sofrimento de um semelhante". É assim que os filantropos ingleses se unificam com os revolucionários franceses, no momento em que se identificam com aqueles princípios que Rousseau isolou e caracterizou melhor que qualquer outro pensador.

A partir de Rousseau, o interesse e a preocupação pelos outros vira uma paixão e um sentimento. Segundo a tese de G. Himmelfarb esta prioridade concedida à compaixão está longe de ser exclusiva de Rousseau; para ela, os filósofos morais ingleses, os filantropos, também sustentaram seus projetos e idéias "na benevolência, no humanismo, na simpatia, e nos afetos sociais: eles até usaram a palavra 'compaixão', no mesmo sentido".

Como Rousseau, eles situaram esse sentimento no coração da natureza humana, convertendo-o no atributo característico mais importante da humanidade, e encontrando evidências em todas as esferas da vida" (Himmelfarb 5, p.48). É verdade que os filósofos ingleses souberam sublinhar o caráter desinteressado e solidário da compaixão; porém, muitos dos projetos defendidos pareciam silenciar esse seu caráter igualador, e reforçar, em troca, sua face coerciva.

Isso não é um dado secundário; como já dissemos: no preciso momento em que a compaixão e a piedade se convertem em parâmetros de moralidade, no preciso momento em que faço extensivo um sentimento, que só pode existir na intimidade (entre sujeitos que se reconhecem semelhantes), para o largo mundo dos pobres ou dos sofredores, a piedade perde seu caráter de sentimento legítimo e se torna uma eficaz estratégia de poder.

Lembremo-nos mais uma vez de Nietzsche, que, em sua crítica à "benevolência", diz que devemos diferenciar ali duas coisas "o instinto de assimilação e o instinto de submissão, desde que se trate do mais forte ou do mais fraco.

O prazer e o desejo de abarcar o outro se juntam no mais forte que quer transformá-lo numa de suas funções, o prazer e o desejo de ser assimilado são próprios do fraco, quem gosta de ser uma função (um atributo) alheia. A compaixão é, essencialmente, o primeiro caso: uma emoção agradável que o instinto de assimilação experimenta quando vê o fraco. Mas, devemos levar em consideração que forte e fraco são sempre conceitos relativos" (FW/GC § 118).

O que Nietzsche soube destacar é o fato de que a compaixão parece apresentar-se sempre no interior de uma rede de poder; um jogo de forças da qual faz parte e não pode fugir. Por sua vez, Hannah Arendt resumiu em poucas palavras os perigos próprios da sobrevalorização da compaixão e da piedade quando elas pretendem aparecer como o fundamento do agir político: "A piedade, tomada como fonte de virtude, tem demonstrado possuir uma capacidade para a crueldade, maior do que a própria crueldade. 'Par pitié, par amour pour l'humanité, 'soyez inhumains'" (Arendt 3, p.71) .

Foi isto o que legitimou, para Arendt, o exercício do terror nos anos que sucederam à Revolução Francesa, crueldade que ficou para sempre associada com o nome de Robespierre. Para ele, a ação política deveria sustentar-se "naquele impulso imperioso que nos atrai para les hommes faibles", nessa capacidade de "sofrer com a imensa classe dos pobres" (Arendt 3, p.71).

Certamente, essa valorização da piedade como fonte de toda virtude é uma herança do pensamento de Rousseau; mais especificamente, provém da tese sobre a "comiseração" que aparece em Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens. Para ele, todos os valores humanos e todas as virtudes sociais se derivam de uma única virtude, que é a compaixão.

"Com efeito, que são a generosidade, a clemência, a humanidade, mais do que a piedade aplicada aos fracos, aos culpados ou à espécie humana em geral? (...) A comiseração não é mais do que um sentimento que nos posiciona no lugar daquele que sofre, sentimento escuro e vivo no homem selvagem, desenvolvido, porém mais fraco, no homem civilizado" (Rousseau 9, p. 93).

Perante a razão que isola, que estimula o amor próprio e o egoísmo, Rousseau venera a força niveladora de uma paixão primitiva e natural, a mais selvagem de todas as paixões, pois é o "sentimento primeiro de toda a humanidade". A piedade auxilia os homens racionais a moderar seu amor próprio e, na medida em que se trata de um sentimento natural, desnuda a valentia dos mais simples: "a ralé, as mulheres da feira são as que separam os combatentes, as que impedem os homens decentes seu mútuo extermínio" (Rousseau 9, p. 93).

Essa tese rousseauniana da comiseração é a mesma que Nietzsche critica duramente quando se refere ao sentimento da "simpatia". Assim, o aforismo 142 de Aurora parece refutar um a um os pressupostos que levaram Rousseau a afirmar a primazia de um sentimento, que nos unifica e iguala, por sobre a razão que nos diferencia.

Para ele essa primazia da simpatia, longe de ser gloriosa, mantém uma forte dívida com a predisposição ao temor que nos produz o desconhecido.

Através da simpatia, da comiseração, posso reproduzir em meu próprio corpo aquilo que o outro sente e pensa, e desse modo dominar o temor que ele poderia produzir. A simpatia foi estendida também para esses fenômenos temíveis da natureza, e isso explica a ilusão de que não existe na Natureza nenhuma coisa que seja verdadeiramente inanimada, nenhuma coisa que seja alheia aos sentimentos humanos. "Quanto entristece, depois de expor a teoria da simpatia, lembrar outra teoria muito estimada, que fala de um processo místico pelo qual a piedade faz com que dois sujeitos se fundam em um, sendo possível, assim, a compreensão imediata do outro?... Que grande deve de ser o deleite que proporciona o incompreensível" (M/A § 142).

Para Rousseau será justamente esse caráter incompreensível e quase místico da mais natural e selvagem das paixões que conferirá à piedade seu verdadeiro valor. A piedade se apresentará assim como uma ousadia irracional e primitiva. Perante essa ousadia da piedade, e como sua outra face, obscura e covarde, Rousseau decide situar a racionalidade sob a figura do filósofo que prefere tapar seus ouvidos ao clamor do sofrimento alheio e "argumentar um pouco para impedir que a natureza, que nele se subleva, o identifique com o culpável". Estes e outros exemplos falam da grandiosidade dessa virtude natural que é a piedade, ela nos leva "sem reflexão, ao socorro dos outros" (Rousseau 9, p. 94), ao auxílio imediato, não mediado pela razão, daquele que vemos sofrer.

Assim sendo, acreditamos poder fazer extensivo a Rousseau aquilo que Nietzsche afirmava a respeito de Schopenhauer:

"Deixo à consideração do leitor se é que pode ter verdadeira vontade de conhecer as coisas morais aquele que fica, a partir do primeiro momento, gratificado com a idéia da 'ininteligibilidade' das mesmas! Somente pode pensar assim aquele que acredite sinceramente nas revelações do céu, na magia, nas aparições e na fealdade metafísica do sapo" (M/A § 142).


Em sua exaltação da piedade como virtude, Rousseau se opõe ao pensamento grego. No Discurso podemos ler que

"Ainda que possa corresponder a Sócrates a aquisição da virtude pela razão, faz muito tempo que o gênero humano não existiria se sua conservação tivesse dependido exclusivamente dos argumentos dos indivíduos que o compõem" (Rousseau 9, p. 95).

Contra essa afirmação Hannah Arendt lembrará um fato significativo:

"A história nos diz que de modo algum é uma coisa natural que o espetáculo da miséria mova os homens à piedade; mesmo durante os longos séculos em que a religião cristã de misericórdia impôs padrões morais à civilização ocidental, a compaixão se manifestava fora do domínio político" (Arendt 3, p.56).

Mas voltemos agora aos gregos e lembremos que, segundo Aristóteles, "nem as virtudes nem os vícios são paixões, não somos chamados de bons ou de maus em razão de nossas paixões.... Pois aquele que vive conforme manda a paixão não ouvirá argumentos que venham a dissuadi-lo, nem os compreenderá.... A paixão parece conduzir, não ao argumento, mas à força" (Aristóteles 4 ).

E isso mesmo poderia ser dito a respeito dos instintos, pois a partir do momento em que um mesmo instinto pode ter mais de um significado moral, a partir do momento em que pode dar lugar, em circunstâncias diferentes, ao sentimento deprimente da covardia ou ao elogio cristão da humildade, a partir do momento em que "pode conduzir, segundo seja o caso, à tranqüilidade ou intranqüilidade de consciência", devemos concluir, com Nietzsche, que

"sendo assim, e como todo instinto é independente da consciência, não pode possuir caráter nem determinação moral alguma" (M/A § 38).

Por sua vez, o elogio de Rousseau à pureza e à espontaneidade natural do sentimento também precisa ser questionado. A oposição entre o sentimento de compaixão, que nos unifica prescindindo da mediação de razões, e os argumentos, que nos isolam parece desconsiderar um fato: por trás de todo sentimento existe sempre uma aceitação não reflexiva de um juízo.

Por trás do sentimento não se esconde a natureza nua, mas sim juízos que não foram questionados, que foram aceitos como naturais e necessários. "Os sentimentos não são coisas definitivas ou originais; por trás deles estão os juízos e as apreciações que nos foram transmitidas como sentimentos (preferências, antipatias).

A inspiração que emana de um sentimento é a neta de um juízo. E muitas vezes de um juízo equivocado! Mas em todos os casos, de um juízo que não é próprio. Ter por guia o sentimento significa obedecer aos avós, e a seus avós mais do que aos deuses que moram em nós: a nossa razão e a nossa experiência" (M/A § 35). O sentimento não prescinde dos julgamentos, mas o substitui pela aceitação sem questionamento daquelas preferências que algumas vezes apreendemos e aceitamos sem crítica alguma. Nietzsche coincide com Rousseau na distinção entre o sentimento e a razão; o primeiro vê a verdade nua da natureza por trás do sentimento, enquanto que o segundo prefere ver a aceitação passiva dessa autoridade que é a força do costume.

Como Hannah Arendt soube mostrar, a esfera de discussão e diálogo, o jogo de perguntar e responder, faz parte desse âmbito da existência que os gregos isolaram como o âmbito do "propriamente humano". Ele define-se por um modo de existir entre iguais, que exige o uso dessas artes que são a dialética e a retórica.

A Polis era esse espaço onde tudo devia ser enunciado, onde a violência podia ser excluída para o exterior de seus muros. "Para o modo de pensar grego, obrigar as pessoas pela força, mandar em lugar de persuadir, eram formas pré-políticas para tratar com pessoas cuja existência estava nas margens da Polis" (Arendt 1, p. 33).

Certamente era isto o que permitia aos gregos conviver com formas despóticas de organização, como a escravidão ou o patriarcado. Coexistiam, assim, espaços onde regia a violência muda junto com espaços de diálogo entre iguais, que eram considerados como a esfera do propriamente humano. Escravos, bárbaros e mulheres eram "aneu logou" (sem logos); e claro que isto não significa que eles estivessem "desprovidos da faculdade do discurso, mas sim de uma forma de vida na qual o discurso e só ele tinha sentido, e onde a preocupação primeira entre os cidadãos era falar entre eles" (Arendt 1, p. 44).

Segundo H. Arendt "os filósofos gregos, seja qual for sua posição a respeito da Polis, não duvidaram de que a liberdade se localiza exclusivamente na esfera política, que a necessidade é de maneira fundamental um fenômeno pré-político (...) e que a força e a violência se justificam nessa esfera porque são os únicos meios para dominar a necessidade e chegar a ser livres" (Arendt 1, p. 41). Ali está a maior dificuldade em pensar a compaixão dentro da esfera da política. Ela permanece alheia a esse âmbito que é próprio do diálogo entre iguais. Pretende superar uma necessidade que é urgente e imediata. Enfrenta-se com o sofrimento e com a miséria, mas não com o sofrimento singular de determinado indivíduo, com o qual posso me identificar, mas sim com o sofrimento de um grupo, aquele dos chamados "miseráveis".

Assim sendo, quando aquele que vemos sofrer já não é um sujeito individual e próximo, quando os sofredores são o conjunto de um povo chamado também de "pobres", "miseráveis", "homens fracos" e "desgraçados", esse socorro imediato e irrefletido, essa piedade apaixonada, quase inevitavelmente se converterá numa escusa para legitimar o exercício da violência.

Superar esse sofrimento através da compaixão significa excluir o diálogo e a argumentação da cena política e substitui-los pela imediatice da força. Implica também sair do âmbito da liberdade para ingressar no registro da violência, pois essa esfera da liberdade estava signada pela palavra, pelo diálogo entre iguais, um diálogo que nem sempre significava harmônica convivência, mas sim exclusão de formas pré-políticas e mudas de violência.

Para o pensamento de Rousseau, e daqueles que levaram seus ensinamentos para a cena política, era preciso liberar a mais primitiva e natural das paixões humanas dos grilhões que a razão impõe; então poderia lograr-se que essa "repugnância inata em olhar o sofrimento de um semelhante" possa substituir à indiferença reinante.

Como já assinalamos, é pela razão que, para Rousseau, o homem se transforma em "egoísta" e perde sua capacidade para "se identificar com o infortunado" (Arendt 3, p. 63).

Da perspectiva de Arendt, só se pode concluir que a capacidade de refletir nos isola e nos faz despreocupados em relação aos outros, porque se desconhece que o pensamento político é essencialmente representativo, que é um diálogo sempre mediatizado por "numerosos pontos de vista que tenho presentes em meu espírito , no momento em que avalio uma questão; e, quanto melhor posso imaginar de que modo sentiria se estivesse no lugar desses outros, tanto mais forte será minha capacidade de pensamento representativo (Arendt 2, p. 300).

O que caracteriza nosso pensamento é seu caráter discursivo, a possibilidade de deslocar-se de um ponto de vista até outro, passando por pontos de vista diferentes e antagônicos tentando atingir uma generalidade imparcial.


O pensamento, longe de isolar-nos na interioridade do eu, nos obriga a fazer um esforço por integrar posições diversas, por imaginar como atuaríamos no lugar dos outros. Ele estabelece um diálogo com aqueles outros que estão presentes em meu espírito, quando avalio uma questão, embora isso não implique que devamos recorrer ao sentimento de "empatia". Existe uma única condição para esse processo de "formação de uma opinião refletida" que é o desinteresse, a libertação de nossos interesses privados, ou a capacidade de tornar minha posição a mais universal possível.

À diferença do que acontece com o pensamento político, a compaixão nunca pode ir para além do individual, ela implica nessa capacidade de sentir, na própria pele e no próprio corpo, o sofrimento alheio: "como se fosse alguma coisa contagiosa" (Arendt 3, p. 67).

A compaixão caracteriza-se, como foi explicitado a partir de Rousseau, por "uma aversão a qualquer espécie de diálogo conciliatório e argumentativo, onde alguém fala com outro sobre alguma coisa que é de interesse de ambos. Esse interesse no mundo, loquaz e argumentativo, é inteiramente alheio à compaixão, que se dirige unicamente e com veemente intensidade ao próprio homem que sofre" (Arendt 3, p. 70).

Ela é sempre e necessariamente um co-sofrimento que não pode ir além do padecimento de um semelhante.

A compaixão apaga as diferenças, elimina o espaço material que separa os homens entre eles, aproxima as pessoas, não pela palavra, mas sim pelos gestos ou pelos silêncios. "Sua força reside na força da própria paixão, que, à diferença da razão, só pode olhar para o particular, pois não possui noção do geral nem capacidade de generalização" (Arendt 3, p. 68).

Para que esses gestos e silêncios possam resultar significativos é preciso que esse co-sofrimento associe entre si os sujeitos que se reconhecem como semelhantes. Só então, como diz Nietzsche, estaremos frente a uma compaixão legítima, onde não existem relações dissimétricas, onde os vínculos não encontram seu fundamento no desprezo, mas sim na admiração.

Essa legitimidade nunca poderá exceder o vínculo que se estabelece entre duas pessoas que se reconhecem mutuamente como iguais em orgulho e dignidade. Mas, nesse preciso momento no qual a compaixão se faz extensiva às relações sociais, nesse momento em que um sentimento privado, às vezes legítimo e outras ilegítimo, ingressa no âmbito do público e se constitui no centro da cena política, ingressaremos, quase que inevitavelmente, na legitimação do exercício da violência.

Assim, para Hannah Arendt só é possível falar de compaixão quando existe esse vínculo imediato a que já fizemos referência. E isso implica, é claro, que fica "eliminado o espaço material entre os homens, onde se localizam os eventos políticos e todo o universo das relações humanas". Poderá afirmar então que "do ponto de vista político a compaixão é irrelevante e sem conseqüências" (Arendt 3, p. 68). E que, se de fato existem conseqüências dessas atitudes compassivas, elas serão inevitavelmente negativas; no momento em que se propõem a assistir e a auxiliar os que sofrem, acabarão por reforçar a coerção e a submissão. Efetivamente, não será a partir da compaixão que podem ser iniciadas modificações reais nas "condições materiais", capazes de aliviar o sofrimento das pessoas. Mas no momento em que se pretende fazê-lo, é inevitável que sejam "eliminados os extenuantes processos de persuasão, negociação e acordo, que são próprios da lei e da política, e que se empreste a voz ao próprio sofrimento, que clama por ação direta e rápida, isto é, ação com os meios da violência" (Arendt 3, p. 79).

Diante disto, podemos dizer que Hannah Arendt parece ter levado os ensinamentos de Nietzsche do domínio da ética para o âmbito da cena e da ação política. Ela parece ter evidenciado os riscos efetivos que decorrem da pretensão de fundamentar a ação política no sentimento de compaixão pelos que sofrem.

Na medida em que a piedade estende ao âmbito do público um sentimento que pertence inicialmente ao privado, se torna indispensável que ela saia da "obscuridade do coração", onde encontrava seu local, e fique exposta ao mundo público. A compaixão que, como vimos, pretendia ser refratária a todos os argumentos e palavras, precisa ser enunciada quando entra no mundo das relações sociais. Mas, assim sendo, a declamação de que cada ato que se realiza está motivado por um sentimento piedoso faz aparecer a suspeita da falsidade, da mentira, e da hipocrisia.

Sabemos que, quase inevitavelmente, a enunciação pública da própria bondade é a forma mais usual de ocultar outras "motivações sub-reptícias". Sabemos também que são muitos os sentimentos, entre eles a compaixão, que, na medida em que permanecem ocultos podem ser corretos, mas que deixam de sê-lo no momento preciso em que decidimos comunicá-los publicamente, e então começam a ter aquele gosto desagradável da "hipocrisia".

Declamar nossa bondade, torná-la pública, parece legitimar nosso direito de exigir que os outros reconheçam, também, suas motivações ocultas. Porém todos ficam, assim, sob suspeita: tanto aquele que declara suas motivações bondosas, altruístas e piedosas como aquele que prefere calar-se e reservar suas paixões, sejam elas compassivas ou não, ao silêncio do privado.

Como afirma Arendt: "A exigência de que todos anunciem em público suas motivações íntimas transforma todos os atores em hipócritas; no instante em que se inicia a exibição dos motivos, a hipocrisia começa a envenenar as relações humanas. Ademais, o esforço por arrancar o que está obscuro e escondido para a luz do dia só pode resultar numa livre e ruidosa manifestação daqueles atos cuja própria natureza os leva a procurar a proteção da escuridão" (Arendt 3, p. 79).

Outorgar prioridade à monotonia do diálogo entre iguais, sobre a aparente luz do sentimento, nos permite excluir qualquer forma de glorificação da miséria e, consequentemente, qualquer interesse sentimental em sua existência.

"Por tratar-se de um sentimento, a piedade pode encontrar em si própria seu prazer; isso leva, quase que automaticamente, a glorificar sua causa: o sofrimento alheio" (idem, p. 71).

Pela própria existência da miséria e do sofrimento, o homem compassivo se reconhece como um benfeitor, e consequentemente se pode regozijar com sua bondade caridosa. Assim, e pela lógica perversa da piedade, a miséria e a dor terminam por legitimar a mesma dissimetria de poder que as gerou.

Como vemos, as premissas nietzschianas que possibilitaram a crítica da compaixão parecem ter sido transladadas por Arendt até o âmbito da ação política, deslegitimando-se assim o recurso a políticas e ações benfeitoras que pretendam achar seu fundamento moral ou político na "piedade".

Uma vez mais, lembremo-nos de Nietzsche: "A compaixão, por pouca dor que engendre, é uma debilidade, como todo abandono a uma paixão prejudicial. Acrescenta a dor no mundo, se aqui ou ali produz o efeito de diminuir indiretamente alguma dor, não bastam essas conseqüências ocasionais e insignificantes em conjunto, para justificar os casos nos quais ela é perigosa. Se estes últimos casos predominam, poderiam levar o mundo a sua perdição" (M/A § 134).

Iniciamos este trabalho falando dos riscos implicados nesses vínculos singulares que podem ser estabelecidos entre o médico e o paciente onde a compaixão parece ser o fundamento. Assim como foi analisado por Thomas Szasz, entre outros, esse vínculo compassivo parece ser o que garante a existência de relações paternalistas e dissimétricas entre quem assiste e quem é assistido, seja no caso de uma assistência compulsória e não requerida, seja no caso de doenças mentais, adições ou dependências.

Sem dúvida Nietzsche parece ser um auxílio inelutável na hora de tematizar esses riscos. Por sua vez, Hannah Arendt nos fala dos perigos involucrados nas estratégias e ações político-assistenciais que pretendem justificar-se por uma generalização desse sentimento singular e privado de compaixão para o universo dos que sofrem; neste caso a compaixão dará lugar à piedade, que é considerada por Arendt como a universalização dessa paixão privada.

Essa crítica arendtiana recupera as observações que Nietzsche dirige à compaixão. Nos dois casos, na assistência individual e na assistência coletiva, a compaixão parece ser um instrumento eficaz para reforçar e reproduzir as dissimetrias.


Porém, não podemos concluir este trabalho sem fazer referência a um fato. Se nos perguntarmos qual é o uso que a medicina e a assistência poderiam vir a fazer do pensamento nietzschiano, é provável que nos defrontemos com duas críticas que convergem. De um lado aquela crítica à compaixão que já revisamos e, de outro, a crítica a uma idéia que ainda hoje está muito difundida entre leigos e profissionais da saúde: a suposição de que a doença é de algum modo um efeito de nossas atitudes, condutas e temores ou, dito de outro modo, a associação que ainda existe entre doença e culpabilidade. Trata-se de duas teses que podem ser pensadas como complementares, pois as duas são decorrentes do questionamento nietzschiano ao "ideal ascético", ideal que está a serviço de uma finalidade que não parece ser outra mais do que: "a exaltação do sentimento" (GM/GM III § 20).

Nietzsche dirá que a origem do vínculo entre a doença e a culpabilidade deve ser procurada no ascetismo cristão, no sentimento de compaixão pelos que sofrem.

"O homem doente, indeciso e turbado, ignorante de razões e de causas, procurando nelas seu consolo, concluiu por se entender com alguém que compreenda essas coisas e o sacerdote ascético deu-lhe a primeira indicação da "causa" de seu mal; fez com que ele procurasse essa causa nele próprio, nalguma falta cometida no passado, fez com que ele interpretasse a sua dor como um castigo" (GM/GM III § 20).

A tese da compaixão e o argumento da culpabilidade parecem ser complementares. Acontece que aquele sentimento de comiseração do qual nos falava Rousseau, aquele sentimento imediato, que prescinde de argumentos e razões para poder sentir a dor alheia em nosso próprio corpo, parece ser insuficiente na hora de procurar as causas dessa dor. Então o sentimento de compaixão deverá ter como aliado um outro sentimento que nos permite olhar para as causas, um sentimento que, como a compaixão, prescinde de argumentos e razões e os substitui por explicações mágicas e místicas que nos falam de "culpas" e de "castigos". Hoje, mais uma vez, poderíamos repetir a pergunta de Nietzsche: "Quem ousaria pretender que essa exaltação do sentimento tenha sido útil para o doente?" (GM/GM III § 20).

Tudo parece indicar, pelo contrário, que nesse jogo de dissimetrias a maior utilidade é para o próprio benfeitor. Pois, pela patética lógica da compaixão e da culpabilidade, a miséria e o sofrimento deixam de ser obstáculos que devem ser superados tecnicamente para se converter em uma realidade triste, que devemos tolerar. Em virtude de sua existência, o compassivo pode se reconhecer como um sujeito benfeitor, e se regozijar no prazer que decorre de sua bondade filantrópica e caridosa. Bondade que será ainda maior se pensamos que a dor e o sofrimento se convertem num signo de culpas que devem ser pagas ou de castigos que devem ser assumidos pelos que sofrem, se pensamos que a cura e a assistência prodigada pelos benfeitores resulta ser também uma forma de redenção e de salvação.


Referências Bibliográficas

1. ARENDT, H. La condicion humana. Mexico: Siglo XXI, 1993.

2. _______. "Verdade e política" em Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1992.

3. _______. A revolução. São Paulo: Atica, 1990.

4. ARISTÓTELES. Ética a Nicómaco. Buenos Aires: Aguilar, 1980.

5. HIMMELFARB, G. La idea de la pobreza. Mexico: FCE, 1986.

6. NIETZSCHE, F. La gaya ciencia. Madrid: Sarpe, 1984.

7. _______. Aurora. México: EMU, 1978.

8. _______. Genealogía de la moral. Valencia: Ed. Sempere, 1920.

9. ROUSSEAU, J.J. Discurso sobre el origen de la desigualdad entre los hombres. Buenos Aires: Hispamérica, 1984.

10. SZASZ, T. Cruel compaixão. Campinas: Papirus. 1994.