O sexo moderno e a cultura do sentimento

Jurandir Costa Freire

(Jornal Folha de São Paulo, Caderno MAIS!, 31 de julho de 1994, p. 6-3)

 

"Amor e Restos Humanos", de Denys Arcand, e "Quatro Casamentos e um Funeral", de Mike Newell, são filmes interessantes. Ambos tratam de um mesmo assunto: as relações afetivo-sexuais entre indivíduos urbanos. Mas a distância entre os dois é enorme. O primeiro descreve o que é; o segundo antecipa ou inventa o que pode ser. Em "Amor e Restos Humanos" a vida gira em torno do moderno mito da sexualidade. As personagens têm o sexo nos poros e gargantas. Tudo vem do sexo e chega ao sexo. O sexo é o "mana". Ordena a hierarquia do que se faz, do que se diz, e define quem é quem na cidade sexual; uns são "heterossexuais", outros "bissexuais", outros "homossexuais", outros "qualquer-coisa-sexuais" etc. A proliferação dos "sexuais" é infinita, pois, como todo mito, o mito da sexualidade está no princípio e no fim de todas as coisas. Em consequência, relações humanas e disputa pelo sexo tornaram-se sinônimos. Quem domina o sexo domina a si e ao outro. A posse do "mana" sexual dá ao proprietário o poder de reter ou distribuir sexo a quem quer e como quer. Quanto aos despossuídos, resta a submissão, a infelicidade ou a morte. O universo dos "seres sexuais" é desesperado, cruel, competitivo e insossamente monotemático. Sem sexo ou fora do sexo, tudo são "restos humanos".

No filme de Mike Newell ocorre o exato oposto. O sexo é dessacralizado. Sua nova visibilidade, entretanto, não é a do mistério que se revela, ofuscando os mortais. Tampouco é a do sexo científico, objetivado, desmembrado em conceitos e fórmulas, rapidamente postos a serviço da pornografia ou da publicidade. O sexo em "Quatro Casamentos..." não é mais fetiche religioso, comercial ou científico. É algo simples sem ser banal; importante sem ser mortal ou vital. É assim como jogos e brincadeiras. Não podemos passar sem eles, mas aprendemos que nada neles deve ser levado muito a sério. As personagens de Newell fazem sexo e falam de sexo em tom lúdico, desmontando comicamente velhos tótens e tabus sexuais. Numa dada cena, uma delas narra, com um riso lindo e cândido, como e quando teve relações sexuais com os 33 homens de sua vida. O mundo não vem abaixo, e o candidato a namorado, embora surpreso, não responde em tom de rivalidade narcísica.

Em uma outra cena, uma mulher pergunta à vizinha de mesa que acabara de conhecer se ela era lésbica, e tem como resposta: "Fui lésbica na escola, durante 15 minutos!" Num outro momento, uma mulher observa que o irmão mais jovem do herói é um "gato" e um outro rapaz replica: "É..., eu também sempre achei!"

O sexo faz rir, chorar ou gozar mas não qualifica ninguém de "qualquer-coisa-sexual" nem precipita os indivíduos no inferno da posse e do controle de "suas verdades sexuais". As personagens definem-se pelos sentimentos, e aqui está a novidade de Newell. Numa espécie de revolução "à inglesa", o diretor, sem esperneios, passeatas ou manifestos leva-nos a um romantismo de pés no chão, junto com sujeitos sentimentais adoravelmente simpáticos. Faz o que Neil Jordan procura fazer, mas com vidas e cotidianos ao alcance da mão. Propõe novos horizontes e fronteiras de sentimentalidades onde a sexualidade não seja déspota e soberana. Em "Quatro Casamentos e um Funeral", ninguém exibe a identidade com a etiqueta "sexual" colada ao nome ou à pessoa. Todos têm sexo, gostam de sexo, fazem sexo e são sexualmente diferentes nas preferências e inclinações, mas ninguém é "isto-ou-aquilo-sexual". Não por silêncio ou recalque puritanos, mas porque o "sexo-rei", na história de Newell, ficou nu.

A mudança é sutil, porém vira de ponta cabeça nossos cacoetes mentais. Sexo nada mais é do que aquilo que podemos dizer dele. Podemos defini-lo como anjo, demônio ou meramente como um ingrediente agradável de nossa vida sentimental. Somos "seres sexuais" como podemos ser "seres sentimentais", mostra Newell. Basta uma leve volta do parafuso.

No filme de Denys Arcand, por exemplo, as amizades são pactos instrumentais de condenados do sexo. No filme de Newell, são laços autônomos em suas origens e objetivos. Às vezes são mais fortes e persistentes do que os laços sexuais. O romantismo amoroso, por seu turno, aposentado no filme de Arcand como obsoleto e ridículo, em Newell volta a trabalhar.

Mas, desta feita, contra o monopólio das imagens que tradicionalmente encamparam sua significação. A família ou a vida familiar não são mais as concessionárias exclusivas do amor romântico. Todos podem representá-lo, desde que apostem em sua viabilidade sentimental.

Por fim, a morte, que aparece em "Amor e Restos Humanos" como sequela de desencontros, frustrações e obsessões sexuais, em Newell é término e apogeu de vidas amorosas exemplares. O funeral de um dos amigos mostra o que pode ser um ritual de adeus na "cultura do sentimento". A despedida, com trechos do poema "Two Songs for Heidli Anderson", de Auden, comove, emociona e faz acreditar num mundo mais delicado, mais bonito e diferente para melhor.

Newell inventa uma nova crença, cujos referentes, causas e justificações são colhidos no que é visto como irrelevante o minoritário. Pinça nas frestas da cultura o que existe e não é notado ou o que é novo mas ouvido como música antiga. As parcerias amorosas dadas como exemplo são formadas por pessoas que se amam e não por "heterossexuais" ou "homossexuais", como costumamos ver em filmes sobre "maiorias" ou "minorias".

Do mesmo modo, o modelo de compromisso sentimental é o da promessa feita na encantadora cena do "happy end". Debaixo de chuva, "comme il fallait", Andie MacDowell e Hugh Grant invertem a fórmula canônica do casamento religioso, pondo o sexo e a lei sob as asas de novos desejos e sentimentos. Newell cria uma despretensiosa "utopia do presente", desfazendo o nó que nos aprisiona ao exasperado mito da sexualidade.

Mais do que isso, sua deliciosa história é protagonizada por gente como nós. O que muda é a forma preguiçosa e viciada de dizer quem somos. Seu olhar criativo viu sentimentalidades onde só vemos sexualidades.

Comparada à mesmice sufocante dos "sexos e restos", a fábula de Newell é puro oxigênio em terra poluída. Um convite aos melhores sentimentos; um doce sopro no coração. A democracia dos sentimentos; ele nos convence, é bem mais suave do que a tirania dos sexos. Por que não experimentá-la fora das telas?