O abuso de confiança (24-03-2001) Saldanha Sanches * «Financeiramente, a retenção na fonte é uma percentagem do volume de negócios: não depende de uma coisa volátil e de difícil quantificação com o lucro, mas de uma coisa estável e que pode ser medida por um simples cálculo aritmético que é o pagamento de salários. Ou, no caso do IVA, do número de bilhetes vendidos. Só uma miopia muito acentuada pode levar a que um comportamento desses não seja detectado.» O CRIME de abuso de confiança fiscal tem dois lados: uma tentação permanente para uma empresa em apertos financeiros e um comportamento que deveria ser facilmente detectável pelo fisco. Financeiramente, a retenção na fonte é uma percentagem do volume de negócios: não depende de uma coisa volátil e de difícil quantificação com o lucro, mas de uma coisa estável e que pode ser medida por um simples cálculo aritmético que é o pagamento de salários. Ou, no caso do IVA, do número de bilhetes vendidos. Só uma miopia muito acentuada pode levar a que um comportamento desses não seja detectado. E esse é o primeiro dos mistérios do Benfica: sujeito a uma vigilância especial conseguiu durante meses e meses deixar de entregar o que devia sem que ninguém desse por isso. Praticando calmamente o mais facilmente detectável dos crime fiscais. Que parece que já era referido na auditoria encomendada pela direcção que o cometeu. Podemos comparar isso com um assalto à mão armada praticado diante de uma esquadra da polícia, com os ditos polícias a olharem para os suspeitíssimos movimentos. E sem repararem em nada. Qualquer circunstância estranha que lhes perturbava temporariamente a visão impedia que percebessem. Felizmente os vizinhos deram o alarme e vieram polícias de outro posto. O que põe em cena o segundo mistério do Benfica: largo tempo decorrido, os assaltantes, detidos em flagrante delito, não tinham sido ainda presentes ao juiz. Tinham sido libertados e mandados aguardar em liberdade a decisão. Da PSP. Passando da esquadra para a repartição, dos assaltos para os abuso de confiança, o que se passou foi quase isso. Assustados com a situação encontrada na confusão de papéis que passava por contabilidade, os sucessores dos presumíveis delinquentes actuam como os vizinhos que chamaram a polícia para não correrem o risco de serem cúmplices. E ansiosos em delimitar responsabilidades confiam a investigação a um polícia privado. No caso, uma respeitável multinacional de auditoria. Que recolhe as impressões digitais, produz a prova e publica o seu relatório. Nada feito: os assaltantes continuam a não ser entregues ao juiz. E a PSP publica um comunicado em que anuncia que o chefe da esquadra está estudar a questão e depois verá se entrega ou não os assaltantes ao poder judicial. Mal comparado, é o que se passa com os crimes fiscais no Benfica. Pelos quais respondem não apenas a direcção do momento em que o ilícito foi cometido - a culpa não se herda - e evidentemente o Conselho Fiscal: que existe precisamente para que essas coisas não possam acontecer. Cabendo a averiguação dos indícios - que neste caso transbordam por todos os lados - ao Ministério Público. Só ele poderá decidir se há ou não indícios de crime e contra quem. Como a Constituição entrega ao Ministério Público o monopólio da acção penal, à administração fiscal cabe participar os indícios do crime. Ou, mais exactamente, dos dois crimes: e aqui é que a porca torce o rabo. O abuso de confiança fiscal e a estranha miopia dos encarregados da fiscalização, que não conseguiam perceber que estava a haver um assalto e que até passaram um certificado de boa conduta moral e cívica aos assaltantes. E que agora pretendem também decidir a questão. Mas não podem. A separação de poderes tem destas coisas: era capaz de ser mais prático se fosse a PSP a julgar os assaltantes e a administração fiscal a julgar os crimes fiscais. Mas como algumas minúcias constitucionais impedem esses tipos de optimização financeira (pública/privada) terá que haver a entrega dos processos a quem tem poderes para os instruir: cabendo ao Ministério Público decidir se há ou não indícios. Uma decisão tanto mais oportuna quanto sabemos que nesta zona, tal como em muitas outras, pela deficiente formação técnica e pela ausência de especialização dos seus quadros, o Ministério Público funciona francamente mal. Levando a uma extrema raridade de processos bem sucedidos. Lembremo-nos da quase singularidade do caso Cebola. Até porque a administração fiscal também fundamenta mal as suas decisões: mas neste caso com uma fiscalização feita por especialistas competentes, com a denúncia feita pelos sucessores e com todas as demais circunstâncias existentes, será possível que se não consiga uma condenação exemplar? Desde que ao crime do abuso de confiança não suceda o crime do abuso de poder. * Fiscalista E-mail: ssanches@mail.telepac.pt